Sociologia e Comunicação Cásper/Sociedade de Vigilância

Variações sobre o tema do Panóptico

Aula 8 - Variações sobre o tema do "Panóptico"

Regimes de vigilância: sistemas panópticos, escópicos e de rastreamento

O que é um dispositivo?

Nesta postagem vamos apresentar a ideia de dispositivo em MIchel Foucault (1926-1984) para podermos pensar um tema muito particular de sua obra “Vigiar e Punir”: o PANÓPTICO.

O poder gerado no dispositivo não delimita apenas uma forma de repressão ou interdição, não se trata, somente, de uma obrigação, mas de um regime de produção de saberes e controles, um poder que se apoia nos agentes sociais por ele mesmo investidos, que também os incitam, induzem e seduzem. Esse poder não é propriamente possuído, mas exercido em meio a um campo de posições e relações estratégicas dispersas pelo mundo social.

Para Foucault, os dispositivos são “operadores materiais do poder”. Eles estão presentes no discurso, nas instituições, nas tecnologias, organizações arquitetônicas, regulamentos e nas práticas cotidianas. Eles são “diagramas” de forças que produzem tipos particulares de “assujeitamento”, uma tecnologia do poder.

O dispositivo tem por função responder a um certo tipo de urgência.

A doença, a loucura, o trabalho, a pobreza, a racionalidade, a sexualidade etc. só aparecem a partir dos dispositivos que a configuram.[1]

Para o filósofo italiano Giorgio Agamben o dispositivo pode ser qualquer coisa capaz de “capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes.”[2]

Para ele, não somente as prisões, os manicômios, as escolas e as fábricas podem ser dispositivos, mas, também, uma caneta, um livro, a agricultura, celulares, códigos de programação. Até a linguagem poderia ser considerada um dispositivo.


O Panóptico

O Panóptico, tema da nossa aula, é um tipo particular de dispositivo.

Jeremy Bentham
Michel Foucault 1974 Brasil

Vamos desenvolver um pouco mais o modo pelo qual Foucault descobre essa ideia em uma obra do século XVIII do filósofo e jurista Jeremy Bentham. Seu título:  “O panóptico”.

Nos anos 60, Foucault fazia parte de uma comissão que avaliava as condições dos presídios na França e, nesse período, passa a se interessar cada vez mais por um tema que culminará na sua obra “Vigiar e Punir”. Em um de seus capítulos, “O Panoptismo”, ele procura entender como surgiram as novas formas de vigilância e punição modernas.

“O princípio é: na periferia, uma construção em anel; no centro, uma torre; esta possui grandes janelas que se abrem para a parte interior do anel. Basta então colocar um vigia na torre central e em cada cela trancafiar um louco, um doente, um condenado, um operário ou um estudante.”[3] [4] [5][6]

Foucault observa que o século XVIII é marcado por uma profunda aversão à escuridão (dos lugares, das coisas, das pessoas, da verdade). Um novo regime de visibilidade vai ser produzido. O Panóptico é o contrário das masmorras. Ele controla pela expansão da transparência, uma tecnologia que a tudo ilumina e torna visível.

O dispositivo panóptico faz com que tenhamos sempre a sensação de estarmos sendo vigiados. Essa sensação, por incrível que pareça, faz com que seja produzida por nós mesmos uma espécie de auto-vigilância.

Para isso, esse dispositivo produz uma dúvida fundamental: “Tem alguém olhando?”


Regimes panópticos, escópicos e de rastreamento

Lucia Santaella identifica três regimes de vigilância contemporâneos que se complementam de diversas formas:

1. o regime panóptico já foi identificado acima

2. o regime escópico é marcado pelo avanço das tecnologias eletrônicas e tem mudado radicalmente a paisagem urbana e, até mesmo, os espaços internos das casas, fábricas, escolas etc.: as câmeras de vigilância. Esse regime escópico recebeu um novo aliado: os drones.

3. o regime de rastreamento ou tracking é a marca das chamadas mídias digitais e caracteriza o regime de vigilância típico da internet. Ele está sob o domínio de especialistas em programação (hackers), monitoramento de redes sociais (SEO – Search Engine Optimization) e todos os debates sobre o direito ao uso da criptografia como um modo de se proteger do rastreamento de todos os nossos passos nas mídias e plataformas digitais.

Para Santaella: “O tratamento dos dados coletados engloba uma gama de procedimentos, potencializados pela digitalização, que se distribuem pela gravação, estocagem, transmissão, recuperação, verificação, comparação, análise, categorização e pelo monitoramento, processamento e uso, envolvendo sempre mais manipulação que coerção” [...] Numa sociedade de fluxos, a própria vigilância é parte do fluxo.Ela é invisível, mas torna tudo visível, é anônima e onipresente.” (Lucia Santaella. A Ecologia Pluralista da Comunicação. P. 162)

Vamos avançar um pouco mais nessa discussão.

A sociedade atual é marcada pela coleta constante de dados comportamentais, graças à expansão de infraestruturas de plataformas, como aplicativos, plugins, rastreadores e sensores ativos e passivos. Essas infraestruturas são integradas a uma variedade crescente de dispositivos, desde smartphones e smartwatches até eletrodomésticos e carros autônomos. Essa coleta de dados é parte de uma sociedade centrada no monitoramento constante, conhecida como "sociedade de sensores" ou "sociedade de vigilância" (Zuboff, 2020), que se desenvolve na onda de uma crise econômica e política que afeta profundamente o modo como vivemos.

A solução para essa crise seria um mundo de objetos "inteligentes", como self-monitoring analysis and reporting technology (o que chamamos de tecnologia SMART), que combinados com o uso de big data e inteligência artificial, poderiam trazer bem-estar social para todos. No entanto, essa solução também implica o que Zuboff chama de "renderização" da vida humana

Ao mesmo tempo, tudo isso é amarrado em um discurso que enfatiza o empreendedorismo, a desintermediação, a autonomia e a colaboração.


Bibliografia

AGAMBEN, Giorgio. O que é um dispositivo. In: ______. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009, p. 27-51.

BAUMAN, Zygmunt. Tempos líquidos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. CARIBÉ, João Carlos R. Ética na sociabilização mediada por algoritmos. IBICT, UFRJ, junho 2017 [sobre o Panspectro]

CHIGNOLA, Sandro. Sobre o dispositivo: Foucault, Agamben, Deleuze. Humanitas ano 12 · nº 214 · vol. 12 · 2014 DOYLE, A. Revisiting the synopticon: Reconsidering Mathiesen’s ‘The Viewer Society’ in the age of Web 2.0. Theoretical Criminology. V.15, N.3, P. 283-299, 2011.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis, Vozes, 1987.(Capítulo: O Panoptismo)

MACHADO, Arlindo. Máquinas de Vigiar. Revista USP set/out/nov. 1990

MATHIESEN, Thomas, (1997) “The viewer society: Michel Foucault’s ‘Panopticon’ revisited” from Theoretical criminology : an international journal 1 (2) pp.215-232, London: Sage (Artigo de Mathiesen sobre o Sinóptico)

SANTAELLA, Lucia. Ecologia Pluralista da Comunicação. São Paulo: Paulus, 2010

ZUBOFF, S. A era do capitalismo de vigilância: a luta por um futuro humano na nova fronteira do poder. Tradução: George Schlesinger. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020.

OUTRAS REFERÊNCIAS

‘Despreparada para a era digital, a democracia está sendo destruída’, afirma guru do ‘big data’ – Gerardo Lissardy – BBC Brasil, 09/04/2017

What Synthetic Biology Has in Common With Queer Theory -Deciding what organisms (and people!) are “related” to each other is more complicated than it seems. – By Sophia Roosth, Slate, 25/04/2017

Aniversário de George Orwell é comemorado com chapéus de festa em câmeras de vigilância (Ideia da dupla holandesa Front404 é chamar a atenção para a quantidade de câmeras que nos vigiam sem que percebamos)

Para pensar a ideia de dispositivo ver esta reportagem:The Subtle Sexism Of Your Open Plan Office (A remarkable new study documents the experiences of women in an open office designed by men) By Katharine Schwab, Co.Design, 05/07/2018

Referências

  1. Michel Foucault. Microfísica do Poder p. 244
  2. Giorgio Agamben. O que é um dispositivo? p.13
  3. Michel Foucault. Microfísica do Poder p. 210
  4. Jogo Panopticon Pandemonium do Bentham Project UCL https://www.ucl.ac.uk/bentham-project/who-was-jeremy-bentham/panopticon/panopticon-pandemonium-bringing-life-benthams-unrealised-prisoɳ
  5. What does the panopticon mean in the age of digital surveillance? - Thomas McMullan. The Guardian. 23/07/2015
  6. Pandemônio panóptico: com Bentham em um simulador disciplinar - 05/08/2016 · by Thiago Mota