A significação original de “democracia”

Ober, Josiah (2013) A significação original de “democracia”: Capacidade de fazer coisas, não regra majoritária

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Tradução do artigo “The Original Meaning of “Democracy”: Capacity to Do Things, not Majority Rule”, Constellations, Vol. 15 , No. 1 (2008), pp. 3-9. Publicado primeiramente em Direito, Filosofia, Ética e Linguagem . Cleyson de Moraes Mello e Nuno M. M; S. Coelho (coord. geral). Juiz de Fora (MG): Editar Editora, 2013, pp. 95-104). Tradução: Luci Rodrigues de Figueiredo[1] e Marcelo Garcia Santana[2] (Revisão: Theresa Calvet de Magalhães[3])

Resumo: Que a significação original de democracia é “capacidade de fazer coisas” e não “regra majoritária”, isso emerge de um estudo do vocabulário grego do quinto e quarto séculos a.C. para tipos de regime. Uma atenção especial é dada aos termos com a raiz –kratos e aos termos com a raiz –arche.

Palavras-chave: Democracia, “poder”, tipos de regime, domínio público, capacidade de fazer coisas.

Democracia é uma palavra que passou a significar muitas coisas diferentes para pessoas diferentes. Em sua origem, essa palavra, claro, é grega, um composto de demos e kratos. Uma vez que demos pode ser traduzido como “o povo” (enquanto “homens adultos residentes nativos de uma polis”) e kratos como “poder”, democracia tem uma significação raiz de “o poder do povo.” Mas poder em que sentido? Na modernidade, a democracia é muitas vezes construída como se referindo, em primeira instância, a uma regra de voto para determinar a vontade da maioria. O poder do povo é, assim, a autoridade de decidir questões por regra majoritária. Essa definição redutora deixa a democracia vulnerável no que diz respeito a dilemas, bem conhecidos, de escolha social, incluindo a ignorância racional de Downs [1957] e o teorema da impossibilidade de Arrow [1963][4]: se a democracia como um sistema político pode ser reduzida a um mecanismo de decisão que se apoia numa regra de voto, e se essa regra de voto é inerentemente falha como um mecanismo de decisão, então (como os críticos têm dito há muito tempo) a democracia é inerentemente falha como um sistema político. Se a democracia é, em seu cerne, algo de outro que um mecanismo de decisão baseado numa regra de voto, os dilemas de escolha social não podem provar ser falhas inerentes à democracia como um sistema.

Este texto trata da significação grega original de “democracia” no contexto da terminologia clássica (quinto e quarto séculos a.C.) para tipos de regime. A conclusão é que a democracia se referia, originalmente, a “poder” no sentido de “capacidade de fazer coisas”. “Regra majoritária” era uma diminuição intencionalmente pejorativa, exortada pelos críticos gregos da democracia (Raaflaub 1989, Ober 1998[5]). Não estamos, é claro, presos a nenhuma convenção do passado, e menos ainda à definição original dos inventores: se podemos criar uma significação melhor para um termo político, ela deveria ser preferida. Mas se usos comuns modernos não são particularmente bons, no sentido de serem “descritivamente corretos” ou “normativamente bem escolhidos”, então pode haver algum mérito em voltar à fonte. Reduzir a democracia a uma regra de voto elide, argumentativamente, muito do valor e do potencial da democracia. A significação grega original, embora não tendo nenhuma autoridade inerente para nós, sugere meios para expandir a nossa concepção moderna de democracia e, desse modo (incidentalmente), torná-la menos vulnerável a problemas associados com agregar diversas preferências pelo voto.

O vocabulário grego para regimes políticos tendia a focalizar, em primeira instância, o corpo no poder ou corpo dirigente [ruling body], que podia ser uma única pessoa (um), ou um número limitado de pessoas (os poucos), ou um largo e inclusivo corpo (os muitos).


Embora o vocabulário grego para tipos de regime seja extenso, os três termos chave para o governo de um, poucos e muitos são: monarchia, oligarchia, e demokratia. Mesmo nesta pequena amostra, duas coisas imediatamente se destacam:

Primeiro, diferentemente de monarchia (do adjetivo monos: solitário) e oligarchia (de hoi oligoi: os poucos), demokratia não se relaciona, em primeira instância, com “número”. O termo demos refere-se a um corpo coletivo. Diferentemente de monarchia e oligarchia, demokratia não responde, portanto, à questão: “quantos têm o poder?” O termo grego padrão para “os muitos” é hoi polloi e, no entanto, não há nenhum regime grego com o nome pollokratia ou pollarchia.

Segundo, os nomes gregos de regimes dividem-se em termos com um sufixo -arche, e termos com um sufixo -kratos. Aristokratia (de hoi aristoi: o excelente), isokratia (de isos: igual) e anarchia são nomes clássicos de regime que se encontram fora do esquema um/poucos/muitos embora caiam no agrupamento -arche/-kratos. Nem todos os nomes de regime usam as raízes arche ou kratos; ver a Tabela: coluna IV. No entanto (com a exceção de tyrannia - que no período clássico teve, consistentemente, conotações pejorativas) as famílias -arche e -kratos tenderam a dominar o panorama terminológico. Já na época de Platão e Aristóteles, um número de novos termos de regime tinham sido criados por poetas cômicos, filósofos, e partidários políticos engajados em debates intelectuais. Timokratia (de time: honra) e gynkaikokratia (de gynaikos: mulher) foram inventados por filósofos clássicos e poetas cômicos para descrever regimes imaginários. Ochlokratia (de to ochlos: a plebe), era uma variante pós- clássica (aparecendo primeiro em Políbio: segundo século a.C.) e fortemente pejorativa de Demokratia.[6]

Tabela: terminologia grega (e neo-grega) para tipos de regime. Formas mais antigas (atestadas no século quinto) em negrito, invenções posteriores (século quarto) em fonte normal, invenções pós- clássicas/modernas em itálico.
I II III IV V
Corpo no poder raiz -kratos raiz -arche Outros termos de nomes de regime Termos políticos relacionados: pessoas, abstrações
A. Um autocracia monarchia tyrannia basileia Tyrannos basileus (rei)
B. Poucos aristokratia oligarchia dynasteia hoi oligoi (poucos)
C. Muitos demokratia

isokratia ochlokratia (plebe)

poliarquia isonomia (lei)

isegoria (fala) isopsephia (voto)

hoi polloi (muitos)

to plethos (maioria) to ochlos (plebe) isopsephos (votante)

D. Outro (exempli gratia) timokratia (honra)

gynaikokratia (mulheres) tecnocracia

anarchia isomoiria (partes)

eunomia (lei) politeia (mistura de democracia e oligarquia: como usado por Aristóteles)

dynamis (poder)

ischus (força) bia (força vital) kurios (mestre) exousia (autoridade, licença)

A Tabela apresenta um mapa aproximado do terreno terminológico. Eu foco em primeira instância os seis termos em negrito nas segunda e terceira colunas da Tabela: demokratia, isokratia e aristokratia entre [os termos que têm] as raízes –kratos, e monarchia, oligarchia, e anarchia entre [os que têm] as raízes –arche. Cada um destes termos é atestado no século quinto, embora oligarchia e aristokratia são, provavelmente, um pouco posteriores a demokratia, isokratia e monarchia. Dada a tendência grega para neologismo criativo, até mesmo no domínio da política, é notável que alguns termos “faltam” - eu já notei a ausência dos derivativos-polloi.

Nem monokratia, oligokratia, ou anakratia é alguma vez atestado. Demarchia refere-se não a um tipo de regime, mas a um cargo local relativamente menor (ho demarchos, significando algo como “o prefeito”).

Dado que grande parte do vocabulário grego para tipos de regime cai em dois grupos de sufixos, e que há “lacunas” notáveis em cada grupo, é razoável pressupor que kratos significava algo bastante diferente de arche e indicava uma concepção diferente de poder. Poderíamos tentar explicar os grupos –arche e –kratos por referência à legitimidade política – isto é, segundo a dicotomia familiar, de Max Weber, de Herrschaft [poder legítimo] e Macht [poder]. O pensamento filosófico grego (a Política de Aristóteles é o locus classicus) preocupava-se, de fato, em distinguir entre regimes “corretos” e “incorretos/corruptos”- e isso poderia ser visto como se aproximando da categorização de Weber baseada na legitimidade. Mas os termos que estamos principalmente focalizando não se encaixam perfeitamente nos grupos “legítimo” ou “ilegítimo” na base das raízes de seus sufixos.

Pode-se concluir, portanto, que não há nenhum sentido [rhyme] ou razão para o vocabulário grego de regimes, que kratos e arche eram termos abarcadores [catchall] para “poder” em algum sentido mal definido. Christian Meier (1970, 1972), um renomado especialista da Begriffsgeschichte [história conceitual], desesperou de colocar o vocabulário grego geral do poder em qualquer ordem sistemática e, portanto, concluiu que os gregos nunca tiveram uma ideia muito específica de poder.[7] No entanto, isso me parece ser muito pessimista.

Alguns dos “outros” termos para regime (coluna IV) encaixam-se na concepção weberiana de Macht [poder], como “poder sem legitimidade”: já no tempo de Aristóteles, tyrannia e dunasteia eram usados para formas severamente corruptas, muito “incorretas”, do governo de um e de poucos, respectivamente. Do mesmo modo, a confusa decisão de Aristóteles, na Politica, de usar o termo politeia – usualmente “constituição” ou “cultura política” – para um tipo de regime particular (variadamente definido em Aristóteles, mas basicamente uma “boa” mistura de oligarchia e demokratia) coloca “o regime chamado politeia” bem solidamente dentro da categoria weberiana de Herrschaft [poder legítimo].

Portanto, talvez uma categorização weberiana modificada ajudasse a explicar os termos com as raizes –arche e –kratos. Cada um dos três termos com a raiz –arche (III) parece estar relacionado com o “monopólio do cargo”. A palavra arche, em grego, tem várias significações correlacionadas: começo (ou origem), império (ou controle hegemônico de um Estado por outro), e cargo ou autoridade do magistrado. Um magistrado grego era um arche, os cargos públicos como um corpo constitucional eram (plural) archai. Um archon era um magistrado sênior: o titular de um cargo particular com deveres específicos (na Atenas clássica, por exemplo, havia nove archons escolhidos anualmente – juntamente com centenas de outros magistrados[8]).

Cada um dos três nomes de regime com a raiz–arche responde à questão: “quantos governantes?” O mais antigo desses nomes parece ser monarchia, que aparece na poesia arcaica, e é fortemente associado a governantes orientais, não gregos. Eu sugeriria que a significação primária de monarchia era “dominação do aparato oficial do governo por um homem”. Do mesmo modo, as descrições gregas clássicas de oligarchia se referem a uma forma de governo definida em primeira instância pelo acesso a direitos de participação em geral, e cargo de magistrado em particular. Uma oligarchia era um regime no qual o direito de ocupar um cargo era estritamente limitado a “uns poucos” com base numa qualificação de propriedade e muitas vezes, adicionalmente, com base na ocupação ou ancestralidade.

Do mesmo modo, anarchia descreve uma condição na qual os cargos de magistrado do governo estão vagos, geralmente devido a contenda civil sobre quem deve ocupá-los.

Embora não tendo a força de legitimidade especificamente weberiana, os termos com raiz –arche se referem a quantas pessoas podem ocupar posições oficiais de autoridade dentro de uma ordem constitucional de algum tipo. Não é, portanto, surpreendente que regimes oligárquicos eram muitas vezes denominados para um número fixo de potenciais titulares de cargo: Os Trinta, Os Quatrocentos, Os Três Mil, Os Cinco Mil, e assim por diante.

Ao contrário, a terminologia –kratos não parece ser sobre cargos enquanto tais.

Diferentemente de arche, a palavra kratos nunca é usada para “cargo”. Kratos tem uma significação raiz de “poder” – mas o uso linguístico grego do nome kratos e de suas formas verbais variam amplamente ao longo do espectro poder, de “dominação” a “governo” a “capacidade”. Podemos, no entanto, restringir a amplitude para –kratos como um sufixo.

Diferentemente do grupo com a raiz -arche, que, como vimos, é inteiramente composto de “termos numéricos”, nenhum dos termos no grupo -kratos é um termo numérico. O primeiro dos nossos três termos primários com a raiz -kratos (II), aristokratia, não nos leva muito longe. Mas é possível, por meio da analogia com oligarchia em que os hoi oligoi monopolizam cargos, imaginar que aristokratia seja apropriado apenas quando hoi aristoi (o excelente) tem um monopólio semelhante. Mas entre os outros prefixos com raiz no grupo -kratos, apenas gynaikokratia pode ser um plural, e assim se referir a potenciais titulares de cargos públicos.

Isokratia não se refere a um grupo de pessoas e sim a uma abstração, “igualdade”.

Isokratia partilha o prefixo do seu nome com raiz -kratos com dois outros termos usados pelo historiador do século quinto a.C, Heródoto, como perífrases para a democracia: isonomia e isegoria. Pela analogia de isonomia (“lei igual”), isegoria (“igual liberdade pública de falar”), e o termo evidentemente mais antigo isomoiria (“partes iguais”: atribuído ao legislador ateniense pré-democrático, Solon), parece provável que o prefixo iso dos termos que têm a raiz –kratos se refere à equidade distributiva no que diz respeito a acesso em um sentido de “direito de fazer uso de”. O acesso igual em cada caso é um bem público (lei,[7] fala, “partes”) que, quando distribuído equitativamente, conduz ao bem comum. Assim, isonomia é a distribuição equitativa de imunidades legais entre a população relevante e o acesso igual a processos jurídicos. Isegoria significa acesso igual a fóruns deliberativos: direito igual de falar sobre questões públicas e de estar presente e participar da fala de outros. Por analogia, isokratia é o acesso igual ao bem comum do kratos – ao poder público que conduz ao bem comum na medida em que permite que coisas boas aconteçam no domínio público.

Portanto kratos, quando é usado como um sufixo num tipo de regime, se torna o poder no sentido de força, habilitação, ou “a capacidade de fazer coisas”. Isso está bem dentro da extensão de como a palavra kratos e suas formas verbais foram usadas no grego clássico e arcaico. Sob esta interpretação para isokratia, cada pessoa que se encontra no âmbito “daqueles que eram iguais” (por exemplo, os cidadãos) desfrutaria de acesso ao poder público neste sentido de “capacidade”. Isso poderia incluir acesso a cargos públicos, mas não precisa se limitar a isso. Em suma, ao invés de imaginar o grupo–kratos como partilhando o interesse primário do grupo –arche no controle de um aparato constitucional (pré-existente), eu sugeriria que os termos com a raiz –kratos referiam-se originalmente a uma capacidade política (nova) ativada. Isso explicaria porque não há monokratia ou oligokratia: “o um” e “os poucos” eram considerados como inerentemente fortes e capazes, através do controle de riqueza, educação especial, e origem nobre. Não estava, portanto, em questão se o um ou os poucos possuiam uma capacidade de fazer coisas – a questão era se eles controlavam ou não controlavam o aparato do governo.

O que nos traz, finalmente, à demokratia. Demokratia não pode significar o “demos monopoliza os cargos” já que o demos (diferentemente dos implícitos plurais hoi oligoi, hoi aristoi) tem de referir-se a um corpo coletivo [corporate body] – a um “público” – e esse público não pode ser coletivamente um “detentor de cargo” no sentido ordinário. Mas se extrapolarmos da definição que eu propus para isokratia, o termo tem sentido ao mesmo tempo filológico e histórico: Demokratia, que emergiu como um tipo de governo com a histórica auto-asserção de um demos em um momento de revolução, refere-se à capacidade coletiva do demos de fazer coisas no domínio público, de fazer coisas acontecerem.[9] Se isto é correto, demokratia não se refere em primeira instância ao controle monopolístico do demos da autoridade constitucional pré-existente. Demokratia não é apenas “o poder do demos” no sentido de “o poder superior ou monopolístico do demos no que diz respeito a outros potenciais detentores do poder no Estado”. Antes significa, de forma mais abrangente, “o demos com poder” - é o regime no qual o demos ganha uma capacidade coletiva de efetuar mudanças no domínio público. E, assim, não se trata simplesmente de uma questão de controle de um domínio público, mas da força e capacidade coletiva de agir nesse domínio e, na verdade, de reconstituir o domínio público através da ação.

A capacidade do demos foi primeiro manifestada durante um levante popular que desencadeou a revolução democrática de 508/7 a.C. Mas momentos revolucionários são passageiros. Se o demos sustentasse uma capacidade coletiva de fazer coisas ao longo do tempo – formar planos e executá-los em circunstâncias ordinárias – então a demokratia, como uma forma de auto-governo popular, exigiria formas institucionais (pace Sheldon Wolin[10]). Mais particularmente, as instituições da demokratia ateniense nunca foram centradas em eleições. Votar sobre questões políticas era certamente importante – o cidadão ateniense poderia ser descrito não somente como isonomos e isegoros, mas também como isopsephos: um igual no que diz respeito ao seu voto. Mas ao contrário de isonomia e isegoria, isopsephia é um outro nome de regime grego clássico “ausente” : não é atestado até o 1o século a.C e nunca foi perífrase para demokratia.

O demos era composto de um corpo de indivíduos socialmente diverso, cada um capaz de escolher livremente em seu próprio interesse. Seus membros não eram unificados em seus desejos por uma ideologia “hegemónica” [“all the way down”]. Muitos deles necessitavam de alguma forma de subsídio se tivessem de participar em termos iguais.

Tudo isso significava que para o demos estar politicamente capacitado, de uma maneira sustentável e regular, alguma ação coletiva difícil e problemas de coordenação tinham de ser atendidos. O regime ateniense não tentou abordar tais problemas apenas através de regras de voto. Sorteios para cargos e corpos deliberativos para definições de pauta eram formas institucionais democráticas atenienses primárias. Mas até mesmo essas formas institucionais não captavam por completo a significação de demokratia enquanto capacidade de fazer coisas. Um sentido mais completo de demokratia é oferecido na oração fúnebre de Péricles em Tucídides (2.37), e em discursos preservados proferidos na assembleia e nos tribunais atenienses.

Como a passagem da oração fúnebre é muito conhecida, não a retomo mas citarei uma passagem tirada de um caso no tribunal em meados do século IV a.C (Demóstenes discurso 21: Contra Midias) Aqui, Demóstenes emprega um rico vocabulário de força, controle, habilidade, e proteção ao resumir o relacionamento democrático entre lei, ação e bens públicos:

Pois de fato, se vocês [jurados] tivessem o cuidado de considerar e investigar a questão sobre o que é que dá poder e controle (ischuroi kai kurioi) sobre todas as questões na polis para aqueles de vocês que são jurados em qualquer ocasião ... então descobririam que a razão não é que, dos cidadãos, apenas vocês estão armados e mobilizados em classes, nem que são, fisicamente, os melhores e mais fortes, nem que são mais jovens em idade, nem nada desse tipo, mas entenderiam que são poderosos (ischuein) através das leis (nomoi). E o que é o poder (ischus) das leis? É que, se algum de vocês for atacado e gritar, elas virão correndo para os ajudar? Não, elas são apenas letras inscritas e não têm habilidade (ouchi dunaint’) para fazer isso. Qual é, então, seu poder mobilizador (dunamis)? Vocês são, se as autorizarem a assim o fazer (kurioi) sempre que alguém pedir por ajuda. Assim as leis são poderosas (ischuroi) através de vocês e vocês são poderosos através das leis. Por isso vocês têm de protegê-las (toutois boethein) do mesmo modo como qualquer indivíduo protege a si mesmo se for injustiçado, e de considerar as violações das leis como crimes que atingem a toda comunidade (koina)... (21.223-225)

Portanto, se a significação original de democracia é a capacidade coletiva de um povo de fazer coisas boas acontecer no domínio público, de onde vem a ideia da democracia como definida em primeira instância por regras de voto e pelo monopólio de cargos por parte dos muitos? Responder a esta questão está além do objetivo deste texto, e basta então dizer que os críticos antigos do governo popular[11] buscaram reformular demokratia como o equivalente de uma tirânica “polloi-archia” – como a dominação monopolista do aparato do governo pelos muitos que eram pobres: esta é a estratégia, por exemplo, do assim chamado Velho Oligarca, um anônimo panfletário do quinto século.

Mas, do mesmo modo que kratos não é sinônimo de arche, assim também na Atenas clássica demos significava originalmente “o todo da cidadania” (enquanto população masculina livre nativa de um território nacional) - não um fragmento sociologicamente delimitado da cidadania. Colocar a democracia em pé de igualdade com a oligarquia, como pouco mais, em princípio ou prática, do que o monopólio sobre cargos governamentais estabelecidos por, respectivamente, os muitos (pobres) e os poucos (ricos), é aceitar as polêmicas antidemocráticas do século quinto como uma descrição correta da realidade política. Se a nossa meta ao retornar à Antiguidade grega é chegar a uma compreensão do poder político que possa ter valor para nós, temos de aprender a atender aos que defendiam a antiga democracia como também aos seus críticos.

Referências
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RAAFLAUB , Kurt A. “Democracy, Oligarchy, and the Concept of the ‘Free Citizen’ in Late Fifth- Century Athens”, Political Theory, Vol. 11, No. 4 (1983), pp. 517- 544.

WOLIN , Sheldon S. “Norm and Form: The Constitutionalizing of Democracy,” in Athenian Political Thought and the Reconstruction of American Democracy. J. Peter Euben, John Wallach, e Josiah Ober (eds.). Ithaca: Cornell University Press, 1994, pp. 29–58.

Thesaurus Lingaue Graecae [TLG] - http://www.tlg.uci.edu .

  1. Professora de Direito Civil e Introdução ao Estudo do Direito e Coordenadora do Curso de Direito na Universidade Estácio de Sá (Rio de Janeiro); Pós-graduada em Direito Civil e Processo Civil pela Universidade Estácio de Sá; Mestranda em Direito/Teoria do Direito na UNIPAC, em Juiz de Fora (MG).
  2. Professor de Ciência Política, Direito Constitucional e Direito Internacional na Universidade Estácio de Sá (Rio de Janeiro) e professor convidado do Curso de Pós-graduação do Centro Universitário Celso Lisboa (Rio de Janeiro); Pós-graduado em Direito Público pela Universidade Estácio de Sá; Mestrando em Direito/Teoria do Direito na UNIPAC, em Juiz de Fora (MG); Advogado e Consultor Jurídico.
  3. Docteur em Sciences Politiques et Sociales pela UCL (Univerité Catholique de Louvain) – Bélgica; Pós-doutorado em Filosofia Contemporânea (Institut Supérieur de Philosophie – UCL); Professora aposentada da UFMG (FAFICH - Departamento de Filosofia); Professora do Curso de Pós-Graduação em Direito da UNIPAC em Juiz de Fora (MG).
  4. A. Downs, An Economic Theory of Democracy. New York: Harper & Row, 1957; K. Arrow, Social Choice and Individual Values. New Haven: Yale University Press, 1963.
  5. J. Ober, Political Dissent in Democratic Athens: Intellectual Critics of Popular Rule. Princeton: Princeton University Press, 1998; K. Raaflaub, “Democracy, Oligarchy, and the Concept of the ‘Free Citizen’ in Late Fifth- Century Athens”, Political Theory, Vol. 1, No. 4 (1983), pp. 517-544.
  6. Os termos gregos primários são os seguintes (com citações, como exemplo, em autores clássicos): Anarchia: Heródoto 9.23; Ésquilo, As Supliantes 906. Aristokratia: Tucídides 3.82. Demokratia (e formas verbais): Heródoto 6.43, Tucídides 2.37. Gynkaikokratia: Aristóteles, Política 1313b. Dunasteia (como a pior forma de oligarchia): Aristóteles Política 1292b10, 1293a31. Isegoria: Heródoto 5.78, Demóstenes 21.124. Isokratia: Heródoto 5.92.a. Isomoiria: Sólon apud Aristóteles Athenaion Politeia. 12.3. Isonomia: Heródoto 3.80, 3.142 (oposta a dunasteia: Tucídides 4.78). Isopsephia: Dionísio de Halicarnasso 7.64. Isopsephos: Tucídides 1.141.  Monarchia: Alceu Fragmento 12; Heródoto 3.82. Oligarchia (e formas verbais ativas e passivas): Heródoto 3.82.2, 5.92.b’, Tucídides 6.38, 8.9, (como personificação (na lápide de Crítias): scholion de Ésquines 1.39). Ochlokratia como forma pejorativa de governo dos muitos: Políbio 6.4.6, 6.57.9. Timokratia: Platão República 545b, Aristóteles Ética a Nicômaco 1160a. Listas mais completas de citações encontram-se em Henry George Liddell, Robert Scott, e Henry Stuart Jones, A Greek-English lexicon (Oxford: Clarendon Press, 1968); Thesaurus Lingaue Graecae: http://www.tlg.uci.edu/.
  7. C. Meier, Entstehung des Begriffs Demokratie: Vier Prolegomena zu einer historischen Theorie. Frankfurt: Suhrkamp, 1970; “Macht und Herrschaft in der Antike,” in Geschichtliche Grundbegriffe: Historisches Lexikon zur politisch- sozialen Sprache in Deutschland, Otto Brunner e Reinhart Koselleck (eds.). Stuttgart: E. Klett, 1972, pp. 3820– 3830.
  8. M. H. Hansen, The Athenian Democracy in the Age of Demosthenes: Structure, Principles and Ideology. Norman: University of Oklahoma Press, 1999.
  9. J. Ober, The Athenian Revolution: Essays on Ancient Greek Democracy and Political Theory. Princeton: Princeton University Press, 1996, especialmente os capítulos 3, 4, e 7.
  10. S. S. Wolin, “Norm and Form: The Constitutionalizing of Democracy,” in Athenian Political Thought and the Reconstruction of American Democracy. J. Peter Euben, John Wallach, e Josiah Ober (eds.). Ithaca: Cornell University Press, 1994, pp. 29–58.
  11. J. Ober, Political Dissent in Democratic Athens [1998].10 R EFERÊNCIAS B IBLIOGRÁFICAS A RROW , Kenneth. Social Choice and Individual Values. New Haven: Yale University Press, 1963.