FÍGADO

editar

FUNÇÕES HEPÁTICAS

editar

Localizado entre o tracto gastrointestinal e o resto do corpo, o fígado está posicionado estrategicamente de modo a permitir a manutenção da homeostasia. O sangue venoso proveniente do estômago e do intestino segue através da veia porta para o fígado e só depois de passar neste é que entra na circulação sistémica. Deste modo, o fígado é o primeiro órgão a contactar com os nutrientes ingeridos, as vitaminas, os metais, os compostos químicos e os tóxicos ambientais, assim como com os produtos metabólicos das bactérias que entram no sangue portal. O fígado desempenha aqui uma função primordial, permitindo a eficiente captação dos compostos absorvidos para o metabolismo, o armazenamento ou a sua excreção pela bílis. No entanto, todas as funções do fígado podem ser alteradas por lesões resultantes de uma exposição aguda ou crónica a gentes tóxicos. Deste modo a tabela seguinte pretende sistematizar as funções do fígado e as consequências da diminuição das suas funções.

Tipo de função

Exemplos

Consequências da diminuição da função

Homeostasia dos nutrientes

Armazenamento e síntese de glucose

Captação de colesterol

Hipoglicémia, confusão

Diminuição do metabolismo

Filtração de partículas

Produtos das bactérias intestinais (exemplo:endotoxinas)

Endotoxemia

Síntese de proteínas

Factores de coagulação

Albumina

Proteínas de transporte (exemplo: VLDL)

Aumento da hemorregia

Hipoalbuminémia, diminuição da pressão oncótica do plasma com formação de edema e derrames nas membranas serosas pleural, pericárdica e peritoneal. Aumento da fracção livre circulante de várias substâncias endógenas e exógenas. Ascite

Fígado gordo (esteatose hepática)

Biotransformação e destoxificação

Bilirrubina e amónia

Xenobióticos

Icterícia, coma relacionado com a hiperamonémia

Diminuição do metabolismo

Formação e excreção de bílis

Captação de lípidos e vitaminas dependentes dos ácidos biliares

Excreção de bilirrubina e colesterol

Excreção de metais e xenobióticos

Esteatorreia, incapacidade de solubilizar gorduras e vitaminas lipossolúveis da dieta.

- Síndrome de má absorção

- Deficiência em vitaminas lipossolúveis

Icterícia, cálculos biliares, hipercolesterolémia

Toxicidade induzida pelos metais e xenobióticos




ORGANIZAÇÃO ESTRUTURAL

editar

Existem dois conceitos para a organização do fígado em unidades operacionais: o lóbulo e o ácino (McCuskey, 2006b).


*Lóbulos

editar

Classicamente o fígado era dividido em lóbulos hexagonais orientados em volta de vénulas hepáticas terminais (também conhecidas como veias centrais), sendo que cada lóbulo está dividido em três regiões centro lobular, média e periportal. Nos cantos do lóbulo estão as tríades portais (ou tractos portais), que contêm um ramo da veia porta, uma arteríola hepática e um canal biliar. O sangue ao entrar pelo tracto portal pela veia porta e pela artéria hepática, mistura-se nas células parenquimatosas (hepatócitos), eventualmente flui para as veias hepáticas terminais e sai do fígado pelas veias hepáticas.


conceito funcionalmente mais correcto, embora seja mais difícil defini-lo histologicamente. A base do ácino é formada pelos ramos terminais da veia porta e da artéria hepática que se estendem a partir dos tractos portais. O ácino tem três zonas: a zona 1, a mais próxima da entrada do sangue, a zona 3 fica adjacente à veia hepática terminal e a zona 2 é intermédia.

Apesar da utilidade do conceito acilar, a terminologia lobular é ainda usada para descrever as lesões patológicas do parênquima hepático. Felizmente, as três zonas do ácino coincidem sensivelmente com as três regiões lóbulo. Durante o percurso para a veia central, o oxigénio deixa rapidamente o sangue para responder às elevadas necessidades metabólicas dos hepatócitos. Assim, os hepatócitos da zona 3 estão expostos a tensões de oxigénio substancialmente inferiores às dos hepatócitos da zona 1.

O sangue que entra no ácino é constituído por sangue pobre em oxigénio da veia porta (60-70% do débito sanguíneo hepático) e sangue oxigenado da artéria hepática (30-40%). Em caminho para a vénula hepática terminal, o oxigénio deixa rapidamente o sangue para responder ao elevado nível metabólico das células parenquimatosas. A concentração aproximada de oxigénio na zona 1 é de 9-13% de O2, comparada com apenas 4-5% de O2 na zona 3. Em comparação com outros tecidos, a zona 3 é hipóxica. Outro gradiente acinar bem documentado é o dos sais biliares. As concentrações fisiológicas de ácidos biliares são extraídas eficientemente pelos hepatócitos da zona 1, com poucos ácidos biliares deixados no sangue que flui pelos hepatócitos da zona 3.

A heterogeneidade na concentração de proteínas nos hepatócitos ao longo do ácino gera gradientes nas funções metabólicas. Os hepatócitos na zona 1, rica em mitocôndrias, são predominantes na oxidação dos ácidos gordos, na gluconeogénese e na destoxificação da amónia em ureia. Os gradientes das enzimas activas na bioactivação e na destoxificação de xenobióticos são observadas ao longo dos ácinos por técnicas imunohistoquímicas. Gradientes importantes para as hepatotoxinas são os níveis mais elevados de glutationa na zona 1 e de proteínas do citocromo P450 na zona 3.

Os sinusóides hepáticos são os canais entre os cordões de hepatócitos, por onde o sangue passa até atingir a veia hepática terminal. Os sinusóides são maiores, mais largos e mais irregulares que os capilares normais. Os três principais tipos de células dos sinusóides são as:

· Células endoteliais – Células finas e descontinuas com poros que revestem os sinusóides. Os numerosos poros e a falta de membrana basal, que as separa dos hepatócitos, facilitam a troca de fluidos e moléculas tais como a albumina, entre os sinusóides e os hepatócitos. Contudo dificultam o movimento de partículas maiores. Para além destas funções, estas células são importantes na captação de lipoproteínas e de proteínas desnaturadas, sendo também secretoras de citoquinas.

· Células de Kupffer – São os macrófagos residentes no fígado e constituem aproximadamente 80% dos macrófagos fixos do corpo. As células de Kupffer estão situadas no lúmen dos sinusóides. A sua função primária é digerir e degradar partículas, contudo são também uma fonte de citocinas e podem actuar como células apresentadoras de antigénio.

· Células de Ito – Também conhecidas como células armazenadoras de lípidos e por células estreladas, estando localizadas entre as células endoteliais e os hepatócitos. As células de Ito sintetizam colagénio e são o principal local de armazenamento de vitamina A no organismo.

Formação de bílis

editar

A bílis é um fluido amarelo que contém ácidos biliares, glutationa, fosfolípidos, colesterol, bilirrubina e outros aniões orgânicos, proteínas, metais, iões e xenobióticos. A formação deste fluido é uma função especializada do fígado, sendo a sua formação essencial para a absorção de nutrientes lipídicos no intestino delgado e para a excreção de xenobióticos exógenos. Os hepatócitos começam o processo por transportar ácidos biliares, glutationa e outros compostos em solução para o lúmen dos canalículos, que é um espaço formado por regiões especializadas da membrana plasmática entre os hepatócitos adjacentes. Estas junções densas selam o lúmen canalicular dos materiais no sinusóide. A estrutura do tracto biliar é análoga às raízes e tronco de uma árvore, onde as pontas das raízes são o equivalente do lúmen canalicular. Os canalículos formam canais entre os hepatócitos que se ligam a uma série de canais cada vez mais largos ou ductos no fígado. Os grandes canais extrahepáticos juntam-se no canal biliar comum. A bílis pode ser armazenada e concentrada na vesícula biliar antes de ser libertada para o duodeno. Todavia, a vesícula não é essencial para a vida e está ausente em diversas espécies, incluindo o cavalo, a baleia e o rato.

Os transportadores dos hepatócitos nas membranas do lado do sinusóide e do lado do canalículo são responsáveis pela captação dos ácidos biliares e da bilirrubina do sangue e pela anterior secreção destes compostos para o lúmen do canalículo. Os processos activos são importantes para a entrada de muitos outros constituintes na bílis. Os metabolitos dos leucotrienos, os fosfolípidos, os estrogénios e uma grande diversidade de outros compostos são transportados através da membrana canalicular por proteínas designadas como transportadores de múltiplos aniões orgânicos (MOAT) e as P-glicoproteínas resistentes a múltiplas drogas (MDR). Os fluídos e iões entram na bílis por difusão paracelular e endocitose. Os metais são excretados para a bílis por uma série de processos parcialmente conhecidos, que incluem a captação através da membrana sinusoidal por difusão facilitada ou endocitose mediada por receptor, armazenamento por ligação a proteínas ou lisossomas e secreção para os canalículos via lisossoma, um acontecimento ligado à glutationa ou um transportador específico na membrana canalícular. A bílis no lúmen canalicular é empurrada para os canais maiores por contracções dinâmicas do citoesqueleto paricanalicular dependentes do ATP. A bílis pode ser modificada por processos activos de absorção ou secreção enquanto percorre os túbulos biliares. A excreção biliar é geralmente um prelúdio para a excreção de fezes ou urina. Contudo, alguns tóxicos podem ser absorvidos de tracto biliar.

HEPATOTOXICIDADE DOS XENOBIÓTICOS

editar

Princípios gerais

As respostas hepáticas a agressões por compostos químicos dependem da intensidade da agressão, do tipo de células afectadas e do tempo de exposição (aguda ou crónica) ao xenobiótico. Contudo, não se pode deixar de considerar que também existem reacções intrínsecas, reacções previsíveis e normalmente dependentes da dose de xenobiótico (exemplo: paracetamol, tetraciclina, agentes antineoplásicos, Amanita phalloides, CCl4, etanol), e idiocráticas, imprevisíveis e dependentes do hospedeiro (exemplo: clorpromazina, sulfonamidas, alopurinol).


Factores de Risco

editar
  • Toxicidade do Xenobiótico

.Metabolitos reactivos .Acilglucoronatos .Efeitos mitocôndriais

  • Factores genéticos

.Metabolismo dos xenobióticos .Destoxificação .Transporte .Outros

  • Factores ambientais

.Outros xenobióticos .Etanol .Idade .Doenças subjacentes




Tipos de lesões e compostos tóxicos

editar

Tipo de Lesão

Tóxicos representativos

Fígado gordo

Amiodarona, tetracloreto de carbono, etanol, ácido valpróico

Morte do hepatócito

Paracetamol, alquil álcool, Cu, dimetilformamida, etanol, microcistina

Resposta Auto-imune

Diclofenac, etanol, halotano

Colestase canalicular

Clorpromazina, ciclosporina A, 1,1-dicloroetileno, estrogénios, Etanol

Lesão dos ductos biliares

Amoxicilina,

Fibrose e Cirrose

Tetracloreto de carbono, etanol, cloreto de vinílo,

Tumores

Aflotoxinas, androgénios, arsénio, dióxido de tório, cloreto de vinílo



*Fígado Gordo

editar

O Fígado gordo também conhecido como esteatose, é definido bioquimicamente como um aumento do conteúdo lipídico hepático (principalmente triglicerídeos) em 5%. Histologicamente, quando colocadas secções padrão em parafina e extraídas com solventes, os hepatócitos contendo um excesso de gordura parecem ter muitos vacúolos redondos e vazios que deslocam o núcleo para a periferia da célula. Secções sujeitas a congelação e corantes especiais permitem a identificação do conteúdo das vesículas como sendo gordura. O fígado gordo resulta de um excesso de aporte de ácidos gordos livres ao fígado, de uma interferência com o ciclo dos triglicerídeos, de aumento na síntese ou esterificação dos ácidos gordos, da diminuição da oxidação dos ácidos gordos, da diminuição da síntese de apoproteína e de uma diminuição da síntese ou secreção de lipoproteinas de muito baixa densidade. A esteatose pode ser resultado da exposição crónica a muitos, mas não a todos, os tóxicos hepáticos. A esteatose induzida por tóxicos é normalmente reversível e não conduz forçosamente à morte. Muitas outras situações, para além da exposição a tóxicos, tais como obesidade, estão associados a uma acentuada acumulação de gordura no fígado.


  • Morte do hepatócito

Os hepatócitos podem morrer por necrose ou apoptose. A necrose está associada ao aumento do volume da célula, levando ao aumento da permeabilidade da membrana, desintegração nuclear e por sua vez a um aumento do influxo de células inflamatórias. A necrose é geralmente o resultado de uma exposição a tóxicos ou a outras condições traumáticas. Por outro lado, a apoptose está associada à diminuição do volume celular, fragmentação nuclear e formação de corpos apoptóticos, sendo estes mecanismos activados por caspases, no caso da apoptose há falta de inflamação. A apoptose é assim mais difícil de detectar histologicamente, devido à rápida remoção das células afectadas sendo que, por outro lado, os restos lisados das células necróticas podem persistir durante dias. Quando a necrose ocorre nos hepatócitos, o aumento da permeabilidade da membrana plasmática pode ser detectado bioquimicamente pelo doseamento do plasma, ou soro, de enzimas derivadas do citosol hepático, incluindo a desidrogenase láctica e as transaminases. Os ensaios bioquímicos fornecem um meio relativamente simples de estudar populações quanto a potencial necrose hepática causada por tóxicos ambientais ou ocupacionais. Uma limitação dos índices bioquímicos da necrose hepática é a sua incapacidade de distinguir entre os efeitos induzidos quimicamente e outras causas como hepatites virais.

A morte do hepatócito pode ocorrer em regiões focais, zonais ou panacinares. A morte focal é caracterizada pela morte disseminada ao acaso dos hepatócitos isolados ou de pequenos grupos de hepatócitos. A necrose zonal refere-se à morte de hepatócitos predominantemente na zona 1 (periportal) ou zona 3 (centrolobular). Muitos tóxicos provocam uma necrose na zona 3, enquanto se conhecem menos agentes que lesem especificamente a zona 1 ou a zona 2. O mecanismo da necrose tóxica aguda inclui a peroxidação lipídica, a ligação a macromoléculas celulares, lesão mitocondrial, disrupção do citoesqueleto e influxo maciço de cálcio. O mecanismo da morte do hepatócito a uma exposição química repetida é o ataque imune mediado por anticorpos.


*Colestase Canalicular

editar

A colestase canalicular é definida histologicamente como uma diminuição do volume de bílis formada, ou de uma dificuldade em eliminar os compostos pela bílis. A colestase é caracterizada bioquimicamente com um aumento dos níveis séricos dos compostos normalmente eliminados pela bílis, como os ácidos biliares e a bilirrubina. Quando a excreção de bilirrubina (pigmento amarelado) pela bílis está diminuída, esta acumula-se na pele e nos olhos, provocando icterícia, e é eliminada pela urina, dando-lhe também uma cor amarelo brilhante ou castanho escura. As características histológicas da colestase podem ser muito subtis e difíceis de detectar sem estudos ultra-estruturais. As alterações estruturais incluem a dilatação dos canalículos biliares e a presença de cálculos biliares nos ductos e canalículos biliares. A colestase induzida quimicamente pode ser transitória ou crónica. Quando é importante está associada a necrose celular. Muitos tipos de compostos, incluindo metais, hormonas e medicamentos causam colestase.


*Lesão do ducto biliar

editar

Um indicador útil na lesão dos ductos biliares é a saída de enzimas localizadas nos ductos biliares, particularmente a fosfatase alcalina. As lesões iniciais, depois de uma dose única de agentes colangiodestrutivos (uma vez que outra denominação da lesão do ducto biliar é colestase colangiodestrutiva), incluem um aumento do tamanho do epitélio biliar, restos de células lesadas nos lumens ductais e infiltração de células inflamatórias nos tractos portais. A administração crónica de tóxicos que provocam a destruição dos ductos pode levar a uma proliferação e fibrose, lembrando a cirrose biliar. Outra resposta provocada pelos compostos hepatotóxicos é a perda dos canais biliares. Este quadro é conhecido como o sindroma dos ductos biliares evanescentes.


*Cirrose

editar

A cirrose é a fase final da lesão hepática crónica em que, em resposta a uma agressão directa ou a uma inflamação, se forma uma grande quantidade de tecido fibroso, depositando-se especificamente fibras de colagénio. A fibrose pode desenvolver-se à volta das veias centrais ou dos tractos portais, ou pode depositar-se nos espaços de Disse, limitando a difusão de material a partir dos sinusóides. Com a repetição das agressões químicas as células hepáticas destruídas são substituídas por cicatrizes fibróticas. Quando o fígado fica subdividido por tecido fibroso rodeando nódulos hepáticos em regeneração, designa-se este quadro por cirrose. A cirrose não é reversível e tem um mau prognóstico quanto à sobrevivência. Geralmente é o resultado de uma exposição repetida a tóxicos químicos.


*Tumores

editar

As neoplasias induzidas quimicamente podem envolver tumores hepatocelulares, derivados dos hepatócitos, ou de angiossarcomas derivados do revestimento endotelial dos sinusóides, raros e altamente malignos. Os androgénios e as aflotoxinas estão ligados a tumores hepatocelulares. Os angiossarcomas têm sido estreitamente associados com a exposição ocupacional ao cloreto de vinílo, as arsénio e ao dióxido de tório.



RAZÕES QUE FAZEM DO FÍGADO UM ÓRGÃO ALVO DE TOXICIDADE

editar
  • É profundamente irrigado:

1500mL de sangue por minuto circulam através do fígado; 20% do sangue provém da artéria hepática – sangue oxigenado; 80% do sangue provem da veia porta, a qual drena essencialmente do estômago e dos intestinos (com excepção do recto), pâncreas e baço

  • “Efeito de primeira passagem após administração oral”
  • Possui sistemas de captação específicos
  • Principal órgão metabolizador de xenobióticos
  • Papel importante na biossíntese e metabolismo intermediário de biomoléculas
  • Órgão secretor da bílis


*Captação, acumulação e excreção

editar

A localização do fígado a jusante do débito sanguíneo portal do tracto gastrointestinal coloca-o em posição de captação de “primeira passagem” de compostos tóxicos ingeridos. Os compostos lipofílicos, particularmente os fármacos e poluentes ambientais, difundem facilmente para os hepatócitos porque o endotélio fenestrado dos sinusóides facilita um estreito contacto entre as moléculas em circulação e a membrana dos hepatócitos. Assim o fígado, rico em membranas, concentra os compostos lipofílicos. Outros tóxicos são rapidamente extraídos do sangue portal, porque constituem substratos para os processos de transporte sinusoidal específicos do fígado.

A acumulação nas células hepáticas por processos que facilitam a captação e o armazenamento é um factor determinante na hepatotoxicidade da vitamina A e de diversos metais. As células Ito extraem activamente e armazenam a Vitamina A. Quando se administram altas doses desta vitamina as células de Ito tornam-se ingurgitadas e hiperplásicas e fazem saliência para o lúmen do sinusóide. A ingestão prolongada de Vitamina A em doses terapêuticas para problemas dermatológicos provoca grave lesão hepática, incluindo cirrose fatal.

Os hepatócitos regulam a homeostasia do Fe e do Cu, por extraírem estes metais dos sinusóides, sendo este processo mediado por receptores. Os metais são armazenados em proteínas específicas (ferritina e metalotioneína), com o excesso armazenado nos lisossomas. A toxicidade aguda pelo ferro é observada mais frequentemente em crianças que acidentalmente ingeriram comprimidos com ferro, enquanto a toxicidade aguda pelo cobre é devida à ingestão acidental ou suicida. A citotoxicidade do ferro livre e do cobre livre é atribuída às suas funções como dadores de electrões para a formação de radicais livres de oxigénio, que iniciam reacções de lipoperoxidação destrutivas. A acumulação do excesso de cobre ou de ferro é inicialmente evidente nos hepatócitos da zona 1 que têm o primeiro contacto com o sangue que entra no ácino. Assim, o panorama de lesão dos hepatócitos na zona 1, após a intoxicação aguda pelo ferro é atribuído tanto à sua localização como à concentração mais alta de oxigénio, que facilita o processo lesivo (dependente da lipoperoxidação).

Sabe-se menos acerca dos factores de excreção como factores na hepatotoxicidade do que sobre o impacto da captação ou da acumulação. Os defeitos na excreção do ferro e do cobre levam a uma progressiva acumulação de níveis tóxicos nos hepatócitos, nas doenças genéticas da hemocromatose e na doença de Wilson, respectivamente. O defeito molecular na doença de Wilson consiste na incapacidade de transportar o cobre através da membrana dos canalículos biliares.


*Bioactivação e destoxificação

editar

Os hepatócitos têm elevadas actividades de enzimas da fase I, constitutivos, que convertem os xenobióticos em compostos electrofílicos, incluindo os isoenzimas do citocromo P-450, as desidrogenases do álcool e as redutases das quinonas. Os hepatócitos têm também uma rica colecção de enzimas de fase II, que adicionam um grupo polar a uma molécula e assim aumentam a sua remoção do corpo. As reacções de fase II produzem, geralmente, metabolitos estáveis, não reactivos. Em geral, o equilíbrio entre as fase I e II determinam se um composto inicia a lesão celular ou é destoxificado inocuamente. O equilíbrio pode ser desviado para o lado da lesão por uma pré-exposição a condições que aumentam os processos de bioactivação ou inibem a destoxificação. Condições potentes de aumento incluem a indução de enzimas por medicamentos, poluentes e ainda por depleção de antioxidantes.


*Tetracloreto de Carbono (CCl4)

editar

A conversão do CCl4 em CCl3 depende do citocromo P-450 e subsequentemente em CCl3OO-, é um exemplo clássico da biotransformação de um xenobiótico num radical ivre que inicia a lipoperoxidação por substituir um átomo de hidrogénio de um ácido gordo poli-insaturado de um fosfolípido. Muitos tratamentos e condições modulam a extensão da lesão hepática produzida pelo CCl4. Situações de protecção incluem animais jovens com muito pouco citocromo P-450, tratamentos com compostos que inibem o citocromo P-450, pré-tratamento com uma pequena dose do tóxico que diminua os níveis de citocromo P-450 e a hiperóxia, dado que o O2 compete com o CCl4 para electrões do citocromo P-450. Situações agravantes incluem tratamentos com compostos, nomeadamente etanol ou acetona, que induzem a CYP 2E1, isoenzima mais eficaz na activação do CCl4, a hipóxia, a diabetes, o pré-tratamento com álcoois alifáticos e dietas com baixo teor de Vitamina E, porque este antioxidante capta os radicais lipoperoxidicos. A lesão induzida pelo CCl4 tem interesse em modelos como o modelo de peroxidação lipídica facilmente reprodutível, assim como os acontecimentos subsequentes, incluindo as alterações no cálcio intracelular e a lesão do retículo endoplasmático.


*Paracetamol ou Acetominofeno

editar

O paracetamol trata-se de um dos analgésicos mais utilizados. A bioactivação do mesmo a um composto electrofílico reactivo dependente do citocromo P-450, é um problema clínico grave e um modelo bem caracterizado de lesão celular ligada à formação de ductos estáveis entre o composto e macromoléculas. Doses terapêuticas do paracetamol não são hepatotóxicas, porque a via metabólica dominante para a sua biotransformação é a conjugação com o ácido glucorónico ou com o ácido sulfúrico. A indução pelo etanol da isoenzima do citocromo P-450, CYP 2E1, desloca o equilíbrio para o lado da bioactivação e é consistente com o acentuado aumento da sua toxicidade nos alcoólicos. A lesão após doses elevadas de paracetamol é aumentada pelo jejum e por outras condições que reduzam a glutationa, contudo, é minimizada por tratamentos que aumentem a síntese de glutationa pelo hepatócito, particularmente a cisteína (aminoácido limitante na síntese da glutationa). Sendo assim uma das terapêuticas utilizadas é a administração de N-acetilcisteína, fonte bem tolerada de cisteína intracelular.


*Halotano

editar

A hepatotoxicidade do anestésico halotano envolve a sua bioactivação, podendo originar um radical livre, que inicia a peroxidação lipídica, ou um reagente electrofílico (um cloreto de ácido), que forma ductos com proteínas hepáticas. O uso do halotano como anestésico no Homem adulto diminuiu com o uso de novos compostos anestésicos, cujo problema de bioactivação é menos, contudo o halotano continua a ser utilizado em algumas intervenções pediátricas e veterinárias. A hepatotoxicidade do halotano depende da sua bioactivação pelo citocromo P-450. As condições associadas a um aumento da toxicidade do mesmo são a hipoxia, o hipertiroidismo, a indução do citocromo P-450 e a obesidade. A localização da lesão nos hepatócitos na zona 3 é consistente com a maior quantidade de citocromo P-450 existente na mesma.


*Etanol

editar

A morbilidade e a mortalidade causada pelo consumo de álcool está relacionada com os efeitos tóxicos do etanol sobre o fígado. A realidade é que mais de 90% do etanol ingerido é metabolizado no fígado, deste modo o efeito deste será acentuado neste órgão. São conhecidos três dos processos de metabolização do etanol, representados no seguinte esquema:

http://www.ff.up.pt/~nbaptista/esquema.jpg

A álcool desidrogenase (ADH) oxida o etanol a acetaldeido, com formação de NADH. O acetaldeido é posteriormente oxidado a acetato por uma reacção dependente do NAD+ pela aldeido desidrogenase (ALDH). Este passo está dependente também da capacidade da mitocôndria utilizar NADH para regenerar o NAD+. Tanto a ADH como a ALDH apresentam polimorfismo genético, desempenhando este um factor crucial no desenvolvimento do alcoolismo e de lesões hepáticas.

Os elevados níveis de actetaldeido presentes nos indivíduos que possuam o polimorfismo a nível da ALDH2 (ALDH2*2), é a causa da elevada intolerância ao etanol. A forma inactiva da ALDH é encontrada em 50% dos asiáticos mas esta ausente nos caucasianos. Esta pode ser uma das razões para a baixa taxa de alcoólicos na Ásia comparativamente à Europa e América do Norte. Contudo, aos heterozigóticos de ALDH2*2 estão associados mais problemas hepáticos em resposta a um reduzido consumo de álcool, sugerindo uma susceptibilidade aumentada para problemas hepáticos associados ao consumo de álcool, mesmo que em reduzidas quantidades. Deste modo, verifica-se a importância da formação do acetaldeido na patofisiologia hepática.

O segundo processo envolve a CYP2E1, que oxida o etanol a acetaldeido. Esta enzima encontra-se predominantemente nos hepatócitos da região centrolobular e requer oxigénio e NADPH para actuar. Esta reacção está favorecida quando existe uma elevada dose de etanol, sendo esta enzima induzida em casos de alcoolismo crónico.

O terceiro processo envolve a catalase dos peroxissomas, nesta reacção o etanol fornece um electrão para a redução do peróxido de hidrogénio a água. A capacidade deste processo está limitada aos baixos níveis de peróxido de hidrogénio, sendo estimado que só 2% do etanol é metabolizado por este passo.

O mecanismo de indução de toxicidade no fígado ainda não esta completamente estabelecido. A esteatose é um dos resultados do consumo crónico de álcool, sendo causada pela excessiva quantidade de acetato e NADH que promovem a síntese de ácidos gordos. Em associação o etanol e o acetaldeido inibem a ligação do DNA ao PPAR-α, que regula a expressão de enzimas metabolizadoras dos ácidos gordos pelas mitocôndrias. O etanol para além de aumentar a síntese de ácidos gordos, de diminuir o seu consumo, também impede que estes sejam transformados em triglicerídeos e armazenados no tecido adiposo. O acetaldeido inibe a acumulação dos triglicerídeos nas VLDL. O stress oxidativo e a peroxidação lipídica são considerados factores associados ao desenvolvimento da patofisiologia associada ao consumo de álcool. A CYP2E1 é uma fonte de espécies reactivas de oxigénio, associadas à metabolização do etanol. O stress oxidativo intracelular que ocorre nos hepatócitos, pode levar a lesões mitocondriais e a morte dos hepatócitos, assim como promove a fibrose hepática. Para alem de todos estes mecanismos, o consumo de álcool também leva a um aumento da resposta inflamatória (sendo as espécies reactivas de oxigénio formadas, as grandes responsáveis pelo início deste processo).


Bibliografia

editar
  • Casarett & Doull’s; “Toxicology: The Basic Science of Poisons”; Seventh Edition; Mc Graw Hill Medical; Unit 4; Chapters 13-16; pages 557-664; ISBN:978-0-07-147051-3
  • Timbrell, J.; “Principles of Biochemical Toxicology”; 2008; Fourth Edition; pages 335-339; ISBN: 978-0-8493-7302-2