Jornalismo Básico 2: reportagens especiais/Reportagens do JOB/Gabriel Nunes e Julia Benini
Largo do Café
O relógio. Ele cresce oxidado sobre um trapézio de granito. Cerceado por pequenos ladrilhos poliédricos encardidos de chuva, poluição e tempo. Tempo que se revela estático e fragmentado nos ponteiros paralisados e ausentes das suas faces tridimensionais. “Em manutenção”, é possível ler em um papel sulfite fixado na sua base. Ele cresce solitário. Ensimesmado. Preso a um tempo que não nos pertence mais e a números romanos que nunca nos pertenceram.
Irônico monumento ao tempo, como poetizou o cronista Guilherme de Almeida, o Relógio Público de Níchile foi instalado, na Praça Antonio Prado, em 1935. Até 1905, o pequeno espaço hexagonal solapado entre duas fileiras de prédios que se afunilam até acabarem no Edifício Altino Arantes era conhecido como Largo do Rosário. No entanto, pela Lei nº 799.04, a referência sacra deu lugar ao nome e sobrenome do cafeicultor e primeiro prefeito de São Paulo, que governou a pauliceia desvairada de 1900 a 1910.
Mais à frente, entre um coreto de madeira e uma banca de jornal, surge uma fonte. Ornamentada com representações de ginetes e gárgulas, ela exibe a marca indelével de um opulento passado construído em cima dos grãos de café. Hoje ela abriga, nas rugas do mármore desgastado, os sulfitos e ácidos clorídricos que o céu da cidade transborda diariamente. O níquel das moedas não mais se acumula, reluzente, no fundo dela. Os centavos mais sem valor não escapam do bolso de quem os tem, nem mesmo para atender aos pedidos de quem não os tem. A fonte não realiza os desejos de ninguém. Sobre ela, um homem beberica sua aguardente enquanto observa embevecido os pombos alçarem voo. As asas farfalham como folhas ao vento.
Os prédios se erguem arbitrariamente, como em um jogo tétrico. Irregulares. Imperfeitos. Ao lado de um edifício moderno, um neoclássico. Ao lado de um prédio de janelas espelhadas, um de pequenos vitrais baços despontando do concreto maciço. As sombras se projetam deles sobre o ladrilho do chão como um Sacilotto monocromático. A extensa fileira de construções enclausuram duas árvores. Claustrofóbicas e silenciosas, elas crescem contra o som e fúria da capital paulista. No entanto, cada árvore enclausurada pelo concreto e argamassa guarda em si o mórbido desejo de violentar as paredes que cercam sua vida.
Seus troncos surgem como pequenos tesouros clandestinos entre as construções mais antigas, que revelam nas paredes desgastadas e esquecidas a memória desbotada do testemunho do leilão de café que ocorria nas ruas São Bento, Álvares Penteado e na estreita rua do Comércio. O ouro negro, antes em grãos, agora escorre do bule para as xícaras aliviadas pelo final do expediente de quem frequenta os bares e cafeterias do Largo do Café.
E os olhos sujos, que testemunham a inércia de um tempo quebrado no relógio público, são os mesmos que observam perplexos a inexorável e perturbadora passagem do tempo ao redor da pequena torre enferrujada.