História Oral- Bruno Abreu, Nelson Letrinta Junior, Pedro Guedes

MEMÓRIAS DE UM JOVEM PERSEGUIDO NA DITADURA MILITAR

BRUNO LÚCIO DA SILVA ABREU

NELSON LETRINTA JUNIOR

PEDRO HENRIQUE SALLA GUEDES

O presente trabalho de memória foi realizado baseado em relato oral, por meio de chamada de vídeo, com Hélio S.M., 77 anos, professor aposentado, com 40 anos de magistério, sendo 34 anos como servidor público, morador de Curitiba - PR.

Local da entrevista: Marília/Curitiba, janeiro de 2023

INTRODUÇÃO

Com a renúncia do presidente Jânio Quadros que foi eleito por uma coligação de partidos conservadores, legalmente assume a presidência o seu vice João Goulart (lembrando que João Goulart não foi eleito pela mesma coligação de Jânio Quadros) em um processo extremamente desgastante, pois o mesmo sofria uma rejeição muito grande das forças conservadoras, que eram compostas pelo empresariado, latifundiários, setores da igreja, parte da grande imprensa, do imperialismo estadunidense e setores militares. Pois defendia em seu plano de governo pautas que eram desalinhadas com os interesses desses grupos.

Após conflitos e tentativas no congresso nacional para se ter uma base de apoio, inclusive com cargos em seu ministério, a sustentação do seu governo sempre se mostrou extremamente frágil. Até mesmo em seu partido, o PTB existia uma disputa de quem seria o candidato à sua sucessão nas eleições presidenciais, para mostrar esta fragilidade, seu próprio cunhado Leonel Brizola, se omite em articulações.

João Goulart tenta fazer uma aproximação com os movimentos sindicais e populares na esperança de ter uma base sustentável. A crise não estava só no seu projeto de governabilidade, mas também nas Forças Armadas, onde ocorreram diversas manifestações de insubordinação. As forças do imperialismo bancando a grande imprensa, que produzia inúmeros editoriais críticos ao governo e a Igreja em suas grandes manifestações com bandeiras em defesa da família, da religião e da propriedade.

Sendo assim, João Goulart em um golpe no congresso nacional é deposto da presidência da república. A partir deste momento, em nome de uma governabilidade, os militares assumem o poder no Brasil, lembrando que a princípio seria algo temporário, iniciando assim uma das fases mais obscuras da história do nosso país.

Sim, tivemos um golpe civil, militar e imperialista, uma ditadura cruel.

OBJETIVO

O objetivo deste trabalho é apresentar as memórias de Hélio S.M., vividas antes e durante a ditadura militar. Relatos esses da história não-oficial que abrem a possibilidade de uma importante reflexão sobre o período.

ENTREVISTA

P: Conte um pouco sobre suas origens?

R: Curitiba, nesse contexto maldito é o fim do mundo. Eu nasci em 1946, período pós-guerra, pressão pra todo lado, principalmente no sul, imigrante de todo lado do mundo e muita discriminação entre eles, entre os imigrantes. Poloneses, ucranianos, alemães, italianos… todos vieram no pós-guerra, e a grande maioria comprometidos com religiosidade excessiva. Católicos fervorosos, budistas, aqui em Curitiba era uma loucura.

Minha mãe era dona de casa, meu pai era bancário, trabalhava no Banco do Brasil, não gostava de política, não tinha simpatia pelo sindicato. Gostava e vestia a camisa do Banco do Brasil.

Eu cresci nesse meio, sempre estudei em escola pública e na parte da minha juventude eu fiz no Colégio Estadual do Paraná, que na época era um dos melhores colégios do Brasil. O prédio do colégio estadual era uma réplica do prédio das Agulhas Negras. E aquele colégio tinha uma baita de uma rádio maravilhosa, tinha grupo de teatro, tinha esporte, o que você quisesse tinha naquele colégio. Os professores eram todos catedráticos da universidade também, lá a gente tinha grandes professores, principalmente os professores de História eram maravilhosos, e a gente aprendia muita coisa. Mas aquele colégio fascinava a gente, como moleques de 15, 16 anos, e já com um certo ativismo social na cabeça, socialista, e nos metemos na política do centro estudantil.

E todos os meus colegas eram ligados à música, ao teatro, às artes de um modo geral, e portanto éramos “mal vistos” na sociedade curitibana, éramos vistos literalmente como va-ga-bun-dos.

A minha vida, até esse ponto que vocês querem saber, foi isso, pra você entender um pouquinho como foi minha formação como socialista. O único partido que eu me filiei foi o PCB, mas foi uma filiação muito rápida pois não achava muita graça no partido, tinha muita gente ruim também, mas todos os meus colegas eram fortemente engajados na luta do período de 64 pra frente.

P: Quais suas memórias do ano de 1964?

R: Tenho, tenho , lembrança muito ruim de Jânio Quadros da atitude dele, no nosso grupo era consenso que ele foi um dos maiores filho da p* que este país já teve, em síntese ele foi o causador e responsável por esta coisa que vem em seguida, aquela renúncia dele foi uma coisa que ninguém explica direito sei lá qual era o pensamento dele e a entrada do Jango foi um alívio para a gente para nós que já tínhamos uma vivência no movimento estudantil, sindicalização estava tudo bem tudo tranquilo ai veio tudo que aconteceu  e vieram os militares e ai cara a coisa complicou e muito para nós então ……….

P: Quando você entra na universidade você encontra seus colegas lá ?

R: Sim, já tinha meus companheiros que estudavam no colégio estadual do Paraná, amigos do bairro também, eram leitores assíduos que liam tudo que cai na mão eram um grupo muito ligado às causas, muitos amigos foram exilados, foram mortos, desaparecidos, eram colegas da minha idade. Quando a Diana (esposa) veio para Curitiba fazer o vestibular em 1966, ela já veio com um histórico de Campinas que era outro antro filho de da p*, perseguida pela direita, pelo liberalismo idiota, ela veio fugida, então nós tínhamos dentro da universidade grupos muito ligados as correntes conservadoras que entregavam a gente para os agentes, eu tive duas prisões que até hoje não sei porque, tinha um amigo que conseguiu ir para o Chile depois voltou, eles queriam que eu desse o paradeiro dele eu não sabia onde ele estava, e ai duas prisões muito doidas, Rodolfinho meu amigo de casa também foi torturado, vários amigos meus foram torturados, um deles foi jogado do sétimo andar,  onde eramos levados era um edifício de sete andares com aqueles elevadores antigos, com aquelas portas de abrir ai ele caiu, tentou escapar e caiu. Nós nos reunimos no sindicato dos bancários aqui de Curitiba e no próprio prédio da universidade para afrontar este povo, fazer panfletagem, nossa maior alegria na época deste grupo era de ir no sétimo andar da UFPR que era o laboratório de física sempre que podíamos íamos lá e montamos um transmissor que fizesse alguma interferência nas rádios mais ouvidas de Curitiba e fazíamos discurso de no máximo 15 segundos porque se ficássemos 30 éramos pego, interferiam nas rádios e tínhamos que sair rapidamente, eles eram muitos burros como são ainda até hoje. Você não tinha amigo na universidade, sabe, você tinha que desconfiar de todos, nessa época com todo este histórico comecei a lecionar no curso preparatório para Academia de Agulhas Negras (risos), dava aula de matemática, era um cursinho chamado Tuiuti. O dono era um general, aliás, tinha um general e um coronel, eram sócios. Esse general era muito conhecido porque eu jogava bola , futebol de salão e vôlei no Círculo Militar, ele era o diretor de esportes, ele era um general cabeça boa por incrível que pareça, quando fui preso em 1968 este general que me tirou da cadeia. Depois veio o casamento com a Diana, e continuamos fazendo toda oposição possível, assumi como professor do estado em 1970, daí para frente foi terrível 1970, 1971, 1972, pior mesmo foi 1978 e 1979, foi horroroso, pior fase até entrada do Figueiredo, Geisel era quase pastor evangélico mas era um pastor filho da p*, a filha dele era nossa colega de faculdade, nós éramos músicos, os vagabundos da praça, todos gostavam da gente, inclusive ela. Quando Chico compôs aquela música: “você não gosta de mim mas sua filha gosta”, parecia que era com a gente .

P: Quando você entra no magistério você percebe que está sendo monitorado?

R: O tempo todo, o trabalho que nós fazíamos…. até hoje quando encontramos ex alunos, por*a! Que saudades daquele tempo! Trabalhávamos com os alunos na metodologia da ciência que os milicos odiavam. Você fazia projetos, saímos com as crianças para mostrar a realidade, eles tinham que nos engolir porque os alunos queriam que nós estivéssemos lá, sabe?! Mas os colegas eram tão nojentos quanto os colegas da universidade, até 1988 vivemos com restrições a amizades, as conversas em salas de professores, nós não sabíamos ainda o que podia acontecer, a coisa foi apertada até 1985, daí que veio um pouco de respiro, mais era muito ruim não era bom .

P: Como era a relação com a direção dessas escolas?

R: Eles eram muito conservadores, quando eu vim para o colégio perto da nossa casa, eu estava voltando de Foz do Iguaçu, quando eu entrei na sala do diretor, eu lembrei dele e ele de mim, na época ele era cabo do exército e fazia geografia na federal, ele não estava no esquema dos torturadores mais era conservador , muito conservador, foi tranquilo com ele, só que a grande maioria eram terríveis , você tinham muito professores também da área de humanas, só que tinha também muitos da área de humanas que se entusiasmaram com educação moral e cívica, OSPB, e achavam que aquilo era uma história verdadeira. Que Brasil este livro estava retratando? O que estavam fazendo era doutrinação, mas como eu dava aula de matemática e física, física é natureza ……nós tínhamos muita leitura nossas aulas sempre “ descambam “ para muitos assuntos com os alunos, diziam que nós éramos comunistas, eu fui de tudo!

P: Sua ida para Foz de Iguaçu teve alguma coisa haver com perseguição ?

R: Não, nossa ida para Foz foi um pouco casual, era um colégio da obra , o dono do colégio Anglo Americano era um senador da república, um grande filho da p*. O colégio tinha 12.000 alunos, você tinha os filhos dos militares que mandavam lá, e os filhos dos peões, uruguaios, argentinos, paraguaios e brasileiros. Eles não tinham o mínimo respeito pela vida alheia, quando aquela obra lá foi construída, por baixo morreram 4.000 pessoas, funcionários que caiam, e aquele cimento por cima. Tem muitas nacionalidades dentro daquelas colunas de Itaipu, eles não tinham o mínimo respeito pela saúde dos operários, todo acidente que acontecia no campo do trabalho eles traziam para um hospital chamado Maderinha. dentro deste hospital nos dávamos um curso de biomedicina, então o peão chegava arrebentado, dava se uma injeção de codeína e o peão voltava para o obra para morrer, não tinham o mínimo respeito. Minha ida para Foz, eu lecionava no estado e no Positivo que é daquele senador da república Oriovisto Guimarães, ali foi feito o convite para quatro colegas que foram convidados para assumir as coordenações das áreas do colégio, eu foi um deles, fui como coordenador de área para Itaipu, mas ninguém sabia do meu histórico. Tinha uma professora uruguaia de química extremamente conservadora, conservadora  legal, como podia ? O marido dela era peão de obra, tinha um grupo muito interessante, tinha poeta, tinha os melhores professores do Brasil. De repente você sai de um colégio pequeno e vai para um colégio de 12.000 alunos com toda aquela diversidade de alunos, foi uma experiência muito interessante, mas era um nojo, era desvio de dinheiro, um dos diretores de Itaipu era chamado de “Ministrinho”.

P: Foi uma experiência rica?

R: É, tinha o pessoal que trabalhava comigo, nós sempre fazíamos aquele churrasquinho em casa por causa da música e do teatro. Uma vez o diretor do Anglo Americano pediu que fizéssemos uma feijoada para este “Ministrinho” não lembro o nome dele, mas era um escroto, ai esse ‘Ministrinho” chega lá em casa, tinha um piano e a esposa dele era um nojo, que era metida a cantora lírica. O diretor da escola era um grande pianista, era um conservador o filho da p*, mas um grande pianista. Aí, ele tocando para a mulher cantar, meu filho tinha 3 anos sentado embaixo do piano olhando para aquela mulher gritando feito louca, ela não parava e o tal do “Ministrinho” foi na minha biblioteca na mesma sala, de repente ele começou a derrubar livros e disse: “professor o que é isto aqui?”. Cara, uma hora ele derrubou um livro do Mário Quintana que meu o filho adorava e disse : “isto é coisa de comunista professor!”. Meu filho viu o livro no chão e foi pegar, este cara quase pisou na mão do meu filho, aí comecei a lembrar de tudo que tinha acontecido, o que vivemos em 1968, 1969. Pensei, o que estou fazendo com este filho da p* na minha casa? A gente sempre com medo, sempre com um pé atrás, a gente não sabia o que fazer .

P: A sua definição para o golpe?

R: O golpe foi tão absurdo que a gente custou para entender que tinha acontecido, a gente só foi entender quando começou a matança, aqui nos congressos estudantis que nós participamos acabam apanhando sempre , aí começamos a ver os amigos próximos serem perseguidos, pessoal desaparecendo, sumindo, torturados, e a gente com medo, vivendo uma vida de medo, e este medo estava voltando agora, estava voltando….a gente ficou quatro anos com este filho da p* que estava aí, relembrando tudo aquilo, só que sabíamos que este era um imbecil, de que ele é massa de manobra, você sabe quem? Eu não sei…., tanto quanto não sabiamos em 1964, até que começamos a sentir na pele os absurdos daquele regime que tinha sido colocado a força, ai vem os atos institucional e vem, sabe, o cala boca e…..o Brasil sumiu por 21 anos, toda parte boa da minha vida levei debaixo de um regime autoritário, nojento, banal, sem sentido, gente muito burra. Todos os governantes do regime militar, com exceção do Geisel, que tinha alguma coisa cultural na cabeça sabe, mas os outros eram imbecis , mais imbecis até do que este que estava aí agora, então era muito fácil tirar sarro deles ….era muito fácil fazer piadinhas com eles, era o que nos restava……

P: Quais suas considerações do fim da ditadura e redemocratização?

R: Pô, as diretas já, foram uma das coisas mais maravilhosas que me aconteceu, em todas nós estávamos lá, era muita alegria…….muita alegria você se sentir novamente em liberdade, como é bom liberdade, eu fui me sentir livre com 40 e pouco anos , não tem coisa melhor que você se sentir livre para ter suas ideias ………….é muito bom…………

P: Você imaginava que poderíamos ter novamente um governo como este que saiu?

R: Olha…..o que tinha de ruim do meu tempo, os filhos dos filhos da p* são os que estão aí hoje, quebrando sem sentido nenhum, sem proposta nenhuma, são todos herdeiros daqueles mesmos civis que apoiaram a ditadura militar, são as mesmas cabeças, eles estão aí, eles não irão desistir, nós ainda vamos ter muito trabalho, não eu que já estou lá quase oitentinha, mas se precisar vamos lá …….fazer uma coisa, e outra, fazer uma manifestação é conosco mesmo……..

CONCLUSÃO

A realização deste trabalho, foi uma experiência enriquecedora para o grupo, por meio da pesquisa e da entrevista, pudemos ter um contato direto com a história, através das memórias de uma pessoa que presenciou e sentiu na pele os horrores daquele período. Desta forma, concluímos que aqueles que sofreram as violências de forma direta, permanecem com os traumas, com os medos e os fantasmas do que foi o regime militar, simplesmente imensurável para quem não sofreu.

Todos aqueles que negam o regime militar ou julgam que foi bom, sofreram, talvez, sem perceber uma violência em seus direitos básicos à democracia, o direito de escolher seus governantes, em âmbito municipal, estadual e federal!

DITADURA NUNCA MAIS!!!

FASES DO TRABALHO

Fase inicial:

Sem problemas na organização do grupo.

Um dos problemas encontrados foi com a realização da entrevista, por questão de distância. Deste modo, a melhor alternativa foi realizá-la por meios virtuais, no caso, chamada de vídeo pelo whatsapp.

Outro problema foi com a conexão, interferência de ruídos.

Fase intermediária:

Distribuição das tarefas; trabalho realizado de forma horizontal

Métodos e técnicas; trabalho de memória, método qualitativo, entrevistas semiestruturadas, história oral, sujeito individual.

Fase final:

Postagem do trabalho no site Wikiversidade e apresentação em sala de aula.


BIBLIOGRAFIA

FERREIRA, J.; GOMES, A.C. 1964: O golpe que derrubou um presidente, pôs fim ao regime democrático e instituiu a ditadura no Brasil. 1. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.