História Oral- Gabriela Mariah Nascimento de Souza

Métodos e Técnicas editar

Título: Trajetória pessoal e memória: Relatos de uma migrante nordestina nascida na Fazenda Curral Grande, em Itapororoca- PB

Integrantes: Gabriela Mariah Nascimento de Souza

O método escolhido para a realização desse trabalho foi o método "História de vida". Foi realizada uma entrevista não estruturada com uma única entrevistada, a Dona Rosa. A entrevista foi realizada na cidade de Santos-SP. O presente trabalho também utilizou como base a pesquisa " Relações de patronagem na Fazenda Curral Grande, Itapororoca- PB. Paraíba" realizada pelo antropólogo Irinaldo Manoel de Andrade.

Trajetória Pessoal e memória: Relatos de uma migrante nordestina nascida na Fazenda Curral Grande, em Itapororoca- PB editar

Segundo o sociólogo Michael Pollack, quando os pesquisadores privilegiam a narrativa das pessoas marginalizadas eles estão se posicionando contra a perspectiva hegemônica proposta pela memória coletiva, e contribuindo para a socialização dessas “memórias subterrâneas” (POLLACK, 1989). Sob tal ótica, a utilização do método qualitativo baseado na história de vida, que privilegia a perspectiva da trajetória pessoal de um sujeito, pode ser aplicado às pessoas que foram negligenciadas pelos setores hegemônicos da sociedade. Ao escutarmos aqueles que nunca foram ouvidos, observamos a perspectiva das pessoas que foram sistematicamente silenciadas, e conhecemos outras narrativas sobre a sociedade na qual vivemos. Outro ponto interessante nesse método é que por mais que as experiências pessoais sejam singulares, elas sempre refletem as estruturais sociais que foram impostas para os indivíduos, dialogando, de certa forma, com a experiência coletiva. Assim sendo, esse trabalho procurou, por meio de entrevistas não estruturadas, trazer as memórias sobre a  trajetória pessoal de uma senhora nordestina de 68 anos. Dona Rosa teve que trabalhar na lavoura com os seus pais e seus dezoito irmãos desde criança, fator que foi decisivo para que ela não conseguisse obter acesso à educação formal. Ao longo do relato exposto por ela, podemos notar que os obstáculos que ela enfrentou ao longo da vida, por ser uma mulher nordestina semianalfabeta proveniente de uma condição socioeconômica vulnerável que migrou para São Paulo buscando melhores condições de vida, é, certamente, o reflexo da realidade de milhões de brasileiros.

Rosa do Carmo é uma mulher parda cisgênero de 68 anos que nasceu e cresceu em uma fazenda localizada na zona rural de Itapororoca, em Pernambuco, denominada como “Fazenda Curral Grande”. A família dela era composta pela sua mãe, pelo seu pai e pelos seus dezoito irmãos. Considerando que as relações de trabalho na Fazenda Curral Grande funcionavam dentro da perspectiva de um sistema patronal, haviam 90 famílias que trabalhavam para um único senhor de engenho, o Padre Antônio. A distribuição do tempo de serviço braçal se baseava em 4 dias de trabalho nas terras do senhor de engenho e outros 2 nos pedaços de terra que eram destinados para a subsistência dessas famílias, onde eles conseguiam garantir a sua própria sobrevivência por meio de pequenas plantações (ANDRADE, 2015).  Dentro desse quadro, o pai da Rosa do Carmo, o senhor João, trabalhava carregando cana-de-açúcar das plantações para o engenho, utilizando apenas um carro de bois. A sua mãe, Dália, era costureira, enquanto os irmãos da Rosa trabalhavam no engenho junto com a própria Rosa, cortando cana-de-açúcar e descascando abacaxi.

“Menina do céu, eu trabalhei muito na roça. Sabe o que é limpar mato, no seco, arrancar toco? Sabe como é limpar abacaxi, que fura a tua mão, tu tem que enrolar teu braço no calor, e eu com roupa de manga comprida pra não furar. Eu cortava cana, meu pai tinha engenho, ele tacava fogo nas cana, e a gente tinha que cortar pro meu pai, porque quanto mais ele cortava cana, mais ele ganhava dinheiro.”

Rosa viveu na Fazenda Curral Grande até os seus 18 anos, quando se casou e se mudou para São Paulo. Por conta das experiências traumáticas que ela passou no decorrer da sua infância, especialmente com a sua mãe, as lembranças que ela trouxe no decorrer da entrevista foram de dor e sofrimento. A fome, o trabalho árduo e o cansaço criou uma dinâmica violenta na família dela. Dália submetia os seus filhos a diversos castigos físicos, e a Rosa culpabiliza a sua mãe por não ter deixado os filhos estudarem.

“Ela era costureira. Ela nunca pensou em dar um carinho pra gente, não deixava a gente andar, não deixava a gente usar calça comprida, não deixava a gente usar roupa sem manga. Ela era costureira mas a gente só ficava cortando os pouquinhos de linha dela pra ajudar ela né… mas foi muito cruel a minha mãe. Ela batia muito nos meus irmãos, ela bateu tanto na minha irmã um dia que chega dava uns 14 pontos na cabeça dela. O sangue da cabeça da minha irmã descia pela boca, e ela botando uns panos em cima.”

Entretanto, exatamente por se tratar de lembranças do período da infância, Rosa não vê com clareza os papéis de exploração ao qual os seus pais foram submetidos, mostrando visões confusas acerca do seu pai ser o dono do engenho e a fazenda ser de posse coletiva, coisa que não ocorreu exatamente assim na época, porque seu pai detinha apenas uma pequena parcela da terra a fim de garantir a subsistência da família dele. Pode-se notar, nos seguintes trechos, o contraste entre os depoimentos sobre a família dela enfrentar situações de pobreza extrema, como dividir uma única galinha entre dezoito irmãos, e as afirmações sobre o pai dela ser dono do engenho, sobre “a fazenda ser um pouco de todo mundo”:

“A gente ficava a noite toda tirando a casca da mandioca, pra depois ralar… era muito sofrimento. E minha mãe era tão pobre no começo que ela nem tinha o que comer, ela fazia leite de coco catolé, tu nem sabe o que é isso… é um pé de árvore que dá coco, elas pisavam em um pilão de madeira os coquinho, aí ela fazia o leite de coco e dava pra gente comer. A gente passou fome por muito tempo, muitas vezes. Nossa mãe de Deus, quando a gente matava qualquer galinha lá, aí dividia um pedacinho pra todo mundo e a gente comia e ficava com fome. Tinha noite que o pai ia lá no engenho pegar uma cana pra fazer um caldo de cana e a gente não dormir com fome. Aí foi melhorando as coisas, mas foi mó sofrimento, viu nega? Foi muito ruim, muito ruim mesmo.”

Já nesse depoimento a seguir, ela culpabiliza o pai dela pela gestão que ele possuía com o próprio dinheiro, mas isso entra em contradição ao considerarmos que ele estava em uma posição social subalternizada.

“Meu pai era uma pessoa nordestina que tinha dinheiro mas que não sabe… valorizar o dinheiro. Mas ele sofreu também, meu pai andava descalço, ele nunca andou de sandália. É por causa que a gente andava descalço, mas a gente andava porque não tinha dinheiro. Ele tinha gado, mas era emprestado da outra fazenda. A igreja de lá foi meu pai que construiu também, ele que fez o altar de santinho que tem também… era a igreja da Fazenda de Curral Grande e o nome da igreja era Igreja do Santo Antônio, tem até o santo de Santo Antônio, a igrejinha é muito pequenininha que tem lá. (...) Essa fazenda era um pouco de todo mundo, cada um tem um pouco de terreno lá de terra pra trabalhar, na época do meu pai.”

Segundo a pesquisa “Relações de patronagem na Fazenda Curral Grande, Itapororoca- PB” realizada pelo antropólogo Irinaldo Manoel de Andrade, as relações de poder que existiam dentro da fazenda colocavam os moradores (as famílias dos trabalhadores que moravam lá) sob total dependência do senhor de engenho, marcada pela falta de aparatos legais que protegessem o trabalhador.

“Estas grandes propriedades sempre foram representadas no Agreste e no Brejo Paraibano pelos engenhos açucareiros, que também fabricavam aguardente, rapadura, entre outros produtos, por um lado, e enquanto que os sítios eram pequenas propriedades, voltadas para as pequenas plantações de lavoura branca, sempre voltados para a sobrevivência familiar. Nos engenhos, os cultivos eram feitos por trabalhadores submetidos ao senhor, pois estes residiam em pequenas propriedades cedidas pelo senhor do engenho, sendo então conhecidos como moradores, estando sujeitos ao seu senhor.” (ANDRADE, 2015, p. 11)

Os diversos insumos produzidos pelo engenho, como rapadura e aguardente, também podem ser vistos no relato da Rosa, quando ela descreve com mais detalhes o trabalho do pai dela:

“A gente pegava saco de balaio de abacaxi, não sei se você conhece, é igual a um cestão, como vocês chamam aqui, aquele cesto de pão. Ai a gente escutava “vrummm” que era o barulho do carro, e ai a gente falava “olha o papai tá chegando”, a gente chamava ele de papai, né? Papai tá chegando com o carro de bois, vamo colocar a lenha da gente ali em cima, ai ele parava o carro de boi dele né, com quatro bois. Eu sei até o nome dos bois, era Estela, não sei o que, Diamante… Ai eles trazia a cana pro engenho, meu pai sempre trabalhou no engenho, fez rapadura, sempre foi dono de fazenda lá, tinha rapadura, açúcar branco, açúcar preto, lambique pra fazer pinga, e o nome da pinga era Campo Verde.”

Dessa maneira, é interessante observar o desdobramento das relações sociais na sua forma empírica, sob a ótica de um sujeito que vivenciou essas experiências. Adiante, também é importante destacar uma parte do relato em que explica a dinâmica dos políticos da cidade vizinha para com os trabalhadores agrários da Fazenda Curral Grande.

“Quando chegou a época de política, aí aumentaram a minha idade pra votar nos políticos, pra tirar o título. Acho que eu tinha 16 anos e aumentaram pra 18, foi tipo assim. Aí quem tirava o registro da gente, o rg, é o vereador que tirava pra gente ir votar. Ele levava a gente de jipe, uma cambada de gente pra Mamanguape pra votar. Lá eles davam comida de peão pra todo mundo comer, pra gente não passar o dia de fome. E meu pai, ele nunca tinha tirado nosso registro. Eu só tirei quando cheguei em São Paulo. Aí pra viajar mesmo, eu viajei com qualquer coisa nem lembro qual foi, aí quando eu cheguei aqui eu tirei a segunda via direitinho aqui, entendeu?”

Pode-se observar que as instituições públicas não alcançam as cidades interioranas com a mesma eficácia em que operam nas regiões metropolitanas, tornando o ambiente favorável para fraudes eleitorais e outras ocorrências do tipo. Dona Rosa fala que as pessoas da região não possuíam nem mesmo documentos oficiais, o que faz com que os atores políticos da região consigam manipular as pessoas com mais facilidade.

Adiante, Dona Rosa contou como foi para ela participar do processo migratório nordestino. Ela teve três filhas e se casou com 17 anos, em 1971, em uma igreja católica na cidade de Mamanguape. Um ano depois, em 1972, ela se mudou para Cubatão, município de São Paulo, junto com as suas filhas e o seu marido, Jorge. Ambos vieram para São Paulo em busca de uma ascensão social, e eles ficaram morando na casa dos pais do Jorge nesse ínterim. No relato a seguir, ela explica o processo da viagem de Pernambuco até São Paulo:

“Foi em um ônibus, foi na São Geraldo. Ainda existe essa empresa. Tinha a Itapemirim e a São Geraldo. Foram três dias de viagem. Dorme um em cima do outro, com as menina no colo. O Jorge com uma no colo e eu com outra, as três no colo, nois não pagamo. Se fosse pra pagar uma condução pras duas podia, mas vieram no colo da gente. É minha filha, agora não pode não, até 6 anos já paga se você viajar, antigamente podia. Passamo naquele rio São Francisco, bem grande, o ônibus ai que medo. Ele é muito grande, ele tem onda como a praia.”

Ela também fala que o processo de adaptação foi difícil, como pode ser visto no trecho a seguir:

“Fiquei morando lá, dormindo no chão não sei por quantos meses. Eu e as três filhas e o meu marido no chão da casa da minha sogra. Minha sogra arrumou um colchãozinho e as meninas dormiam no colchão e eu meu marido no chão em cima do tapete. E demoramo, até arrumar o serviço.”

Por fim, é importante citar que a história de vida da Dona Rosa possui muitas semelhanças com outros milhares de brasileiros. Segundo Wolf, “o poder estrutural molda o campo social de ação de forma a tornar possível alguns tipos de comportamento, enquanto dificulta ou impossibilita outros (WOLF, 2003)”. Dessa forma, podemos entender que os indivíduos são condicionados pelas estruturais sociais na qual eles se encontram. Dona Rosa não teve acesso à diversos direitos, como o direito a educação, à infância e à segurança alimentar. Por conta disso, as experiências que ela viveu no decorrer da vida dela não são experiências isoladas, já que a falta de acesso a esses direitos é algo sistemático. Por fim, a memória subterrânea dessa senhora trouxe a tona diversas questões que ainda são presentes até os dias atuais.

Bibliografia editar

ANDRADE, Irinaldo Manoel. Relações de patronagem na Fazenda Curral Grande, Itapororoca- PB. Paraíba: UFPB, 2015.

NACIONAL, Arquivo. Brasilianas: Manhã na Roça (1963). YouTube. 1 de fev. de 2018. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=47ZDL71XVoY&t=225s&ab_channel=ArquivoNacional

POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncioEstudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989, p. 3-15.