Introdução ao Jornalismo Científico/Ética da Ciência/Práticas anticientíficas/script

Normas de Merton (“Ética da Ciência”)

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Robert Merton, 1965

As Normas de Merton foram descritas em 1942 pelo sociólogo Robert K. Merton.[1][2] Merton descreveu "quatro conjuntos de imperativos institucionais que determinam o ethos da ciência moderna: comunismo, universalismo, comunicação, desinteresse e ceticismo organizado".[3]

A importância das Normas de Merton é o suporte ao problema da demarcação entre a ciência e as pseudociências. Ao não respeitarem estas normas, as alegações das pseudociências não são aceitas e por isso combatidas pela comunidade científica.

Os quatro termos foram arranjados para formar o acrônimo CUDOS, a partir das iniciais na língua inglesa. É usado para designar os princípios que devem nortear uma boa pesquisa científica. "Originalidade" não fazia parte da lista de Merton, e foi acrescentada por John Ziman em 1984. No debate acadêmico contemporâneo essas normas podem então ser descritas da seguinte maneira:

  • Comunismo - implica que os resultados científicos são propriedade comum de toda a sociedade.
  • Universalismo - significa que todos os cientistas podem contribuir para a ciência, independentemente de raça, nacionalidade, cultura ou gênero.
  • Desinteresse - considera que os cientistas devem agir em busca dos interesses coletivos do empreendimento científico, que estão acima de seus interesses pessoais, não devendo ser remunerados pelas descobertas.
  • Originalidade - exige que as demandas científicas contribuam com novidades, seja um novo problema, uma nova abordagem, novos dados, uma nova teoria ou uma nova explicação.
  • Ceticismo (Ceticismo Organizado) - ceticismo determina que alegações científicas devem ser expostas a uma análise crítica contínua.

Equação da pseudociência

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Muitos filósofos tentaram definir a ciência a partir de um único critério, uns elegeram o consenso como marca científica, outros o conteúdo empírico, a falseabilidade, o método científico ou o que mais viesse à mente. Todas essas tentativas simplistas mostraram-se falhas, pois a ciência é um objeto muito mais complexo de ser caracterizado do que a partir de um único traço. [4]

O mesmo ocorre com a pseudociência. O físico e filósofo da ciência Mario Bunge recomenda a caracterização da ciência, bem como da pseudociência, no sentido de um campo cognitivo. Um campo cognitivo pode ser descrito como um setor da atividade humana que tem como objetivo o ganho, a difusão ou a utilização de um conhecimento de qualquer natureza, podendo ser verdadeiro ou falso. Existem centenas de campos cognitivos na contemporaneidade: lógica e teologia, matemática e numerologia, astronomia e astrologia, química e alquimia, psicologia e parapsicologia, ciências sociais e sociologia humanística.

 
Um gráfico de frenologia típico do século XIX: os frenologistas afirmavam que a mente estava localizada em áreas do cérebro e foram atacados por duvidar de que a mente viesse da alma imaterial. Sua ideia de ler "saliências" no crânio para prever traços de personalidade foi posteriormente desacreditada.[5] [6] A frenologia foi denominada pseudociência em 1843 e continua a ser considerada assim.[7]

Campos cognitivos

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Quer um determinado campo cognitivo seja bem-sucedido ou não em atingir a verdade ou poder, o conhecimento ou a popularidade, ele compartilha características com outros campos cognitivos. Essas características podem ser encapsuladas na seguinte ordenamento:

E= (C, S ,D, G, F, B, P, K, A, M)

Na qual,

C = Comunidade cognitiva

S = Sociedade que hospeda C

D = Domínio ou universo de discurso de E: objetos que E trata

G = Panorama geral, visão de mundo, ou filosofia de C

F = Plano de fundo formal: ferramentas lógicas e matemáticas empregadas por E

B = Plano de fundo específico, ou o conjunto de pressupostos sobre D emprestados de áreas do conhecimento diferentes de E

P = Problemáticas, ou o conjunto de problemas que E deve lidar

K = Fundo de conhecimento específico acumulado por E

A = Objetivos ou intenções de C em cultivar E

M = Métodos utilizados por E

A família dos campos de conhecimento não é homogênea. Na verdade, ele pode ser dividido em dois campos dissociados: a família dos campos de pesquisa e a dos campos de crença. Enquanto um campo de pesquisa muda o tempo todo como resultado de pesquisa, um campo de crença muda, quando muito, como resultado de controvérsia, força bruta ou revelação. A seguir, é feita uma divisão geral desses campos:

 
Diagrama dos campos cognitivos

Ciência

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Os signos astrológicos do zodíaco. A astrologia é uma pseudociência segundo a qual as posições relativas dos corpos celestes poderiam determinar a personalidade, as relações, e outros assuntos relacionados à vida humana.

Entende-se que uma ciência particular, bem como física, biologia, sociologia, é um campo cognitivo E= (C, S ,D, G, F, B, P, K, A, M), em que:

  1. Cada um dos 10 componentes de E muda, mesmo que vagarosamente, como resultado de investigação no mesmo campo bem como em campos relacionados.
  2. C, a comunidade de pesquisa de E, é um sistema composto por pessoas que receberam treinamento especializado, mantêm fortes links de informação entre si e inicia ou continua a tradição de investigação.
  3. A sociedade S, que hospeda C, encoraja ou, ao menos, tolera as atividades dos componentes de C.
  4. O domínio D é composto exclusivamente de entidades reais (certificadas), ao invés de ideias flutuando livremente.
  5. O panorama geral ou plano de fundo filosófico consiste em (a) uma ontologia segundo a qual o mundo real é composto de coisas concretas que mudam de acordo com as leis, ao invés de coisas imutáveis, sem nenhuma lei e espectrais; (b) uma teoria realista do conhecimento, não uma idealista ou convencionalista; (c) um sistema de valor que consagra a clareza, a exatidão, a profundidade, a consistência e a verdade; (d) o ethos da pesquisa livre para a verdade, no lugar de uma missão limitada para utilidade, para o consenso ou para a conformidade com o dogma.
  6. O plano de fundo formal F é a coleção de teorias matemáticas e lógicas atualizadas.
  7. O plano de fundo específico B é uma coleção de dados, hipóteses e teorias atualizados e razoavelmente bem confirmados (embora não incorrigíveis) obtidos em outros campos de investigação relevantes para E.
  8. As problemáticas P consistem exclusivamente em problemas cognitivos no que concerne à natureza (em particular, as leis) dos membros de D, assim como problemas relacionados a outros componentes de E.
  9. O fundo de conhecimento K é a coleção de dados, hipóteses e teorias atualizadas e testáveis (embora não conclusivas) compatíveis com aquelas de B obtidas em E em tempos anteriores.
  10. O objetivo de A inclui descobrir ou usar as leis do sistema de D e refinar os métodos de M.
  11. Os métodos M contém exclusivamente procedimentos escrutáveis, checáveis, analisáveis e justificáveis.
     
    Homeopatia é uma forma de terapia alternativa pseudocientífica, iniciada pelo alemão Samuel Hahnemann em 1796. O suposto tratamento se dá a partir da diluição e dinamização da mesma substância que produz o sintoma num indivíduo saudável.[8]
  12. E é um componente de um campo cognitivo mais amplo, há, ao menos, um outro campo de pesquisa contíguo para que (a) os panoramas gerais, o plano de fundo formal, os planos de fundo específicos, os fundos de conhecimento, os objetivos e os métodos dos dois campos não se sobreponham, e (b) o domínio de um campo seja incluído no outro, ou cada membro do domínio de um deles seja um componente de um sistema pertencente ao outro domínio.

Pseudociência

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Considera-se pseudociência o campo que satisfaça todas as seguintes condições:

  1. Os 10 componentes de E mudam, mas pouco no curso do tempo e mudam em aspectos limitados resultado de controvérsia ou pressão externa ao invés de pesquisa científica.
  2. C é uma comunidade de crentes que se autoproclamam cientistas, embora não conduzam nenhuma pesquisa científica ou sigam práticas de pesquisas defeituosas pelo padrão científico.
  3. A sociedade S apoia C por razões práticas (porque E é um bom negócio).
  4. O domínio D lida com entidades irreais ou, pelo menos não falseáveis, como influências astrais, pensamentos desencarnados, superegos entre outros.
  5. O panorama geral G inclui (a) uma ontologia contendo entidades ou processos imateriais, como espíritos desencarnados, (b) uma epistemologia que endossa argumentos de autoridade ou para modos de cognição paranormal acessíveis exclusivamente por aqueles iniciados ou treinados a interpretar textos canônicos, (c) um sistema de valores que não consagra a clareza, exatidão, profundidade, consistência e verdade ou (d) um ethos que, ao invés de de facilitar a livre pesquisa para a verdade, recomenda a firme defesa do dogma.
     
    Mapa plano da Terra desenhado por Orlando Ferguson em 1893. O mapa contém várias referências a passagens bíblicas. Na era moderna, teorias pseudocientíficas[9] da Terra plana foram adotadas por grupos e, cada vez mais, por indivíduos não afiliados, usando as mídias sociais[10]. As teorias atuais que defendem modelos de Terra plana são totalmente rejeitadas pela comunidade científica.
  6. O plano de fundo formal F normalmente é modesto. Lógica não é sempre respeitada e a modelagem matemática é mais a exceção do que a regra. Os poucos modelos matemáticos propostos (para parapsicologia, por exemplo) não são experimentalmente testáveis.
  7. O plano de fundo específico B é pequeno ou nulo: uma pseudociência assimila pouco ou nada de outros campos cognitivos. Da mesma forma, contribui pouco ou nada para o desenvolvimento de outros campos cognitivos.
  8. As problemáticas P incluem muito mais problemas práticos que competem à vida humana do que problemas cognitivos.
  9. O fundo de conhecimento K é praticamente estagnado e contém numerosas hipóteses intestáveis ou até mesmo falsas em conflito com hipóteses científicas bem confirmadas.
  10. Os objetivos A dos membros de C são geralmente práticos, não cognitivos, em consonância com suas problemáticas P. E eles não incluem os objetivos típicos da pesquisa científica, como a procura de leis ou o uso delas para entender e prever fatos.
  11. Os métodos M contém procedimentos que não podem ser testados cientificamente e não são confirmados por teorias estabelecidas. Em geral, a criticidade não é bem aceita por pseudocientistas.
  12. Não há nenhum campo do conhecimento, exceto provavelmente uma outra pseudociência, que se sobreponha a E e esteja numa posição de controlar ou enriquecer E. Ou seja, toda pseudociência está praticamente isolada.

Protociência e heterotodoxia

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Gravura de 1580 mostrando um laboratório de alquimia. Há um debate sobre a alquimia ser considerada uma protociência ou não.

Há sempre o receio de que algumas pepitas douradas possam estar escondidas numa pilha de lixo pseudocientífico e, depois, sejam compreendidas como protociência ou ciência emergente. Tal receio é justificado no começo já que uma teoria ou técnica extremamente original - uma heterodoxia - pode parecer pseudociência somente por se tratar de uma novidade. Mas o ceticismo deve suceder o cuidado e ser substituído por denúncia se, em mais ou menos 50 anos, a novidade falhar em evoluir para um componente da ciência. Enquanto as protociências avançam e acabam se tornando ciência, as pseudociências são poças estanques ao lado da corrente ativa da pesquisa científica.

Heterodoxia científica é apenas ciência não convencional ou impopular. O campo da física era heterodoxo quando inicialmente foi proposto por discordar das teorias dominantes. Mas era genuinamente científico, repleto de hipóteses testáveis e novos experimentos. O mesmo pode ser dito de todas heterodoxias que seguiram, como a teoria da evolução de Darwin, a crítica de Marx ao capitalismo, mecânica estatística, teoria da relatividade, mecânica quântica, biologia molecular entre outros. Todos essas eram considerados desvios dentro da ciência.

Cientistas e filósofos tendem a tratar superstição, pseudociência, e anticiência como algo inofensivo ou até mesmo apropriado para o consumo de massa. Essa atitude pode ser prejudicial pelas seguintes razões. Primeiro, porque superstição, pseudociência e anticiência não configuram nenhum tipo de matéria que pode ser reciclada para alguma utilidade, eles são vírus intelectuais que podem atacar qualquer um, leigo ou cientista, ao ponto de adoecer uma cultura por inteiro e voltá-la contra à pesquisa científica. Segundo, a emergência e difusão da superstição, pseudociência e anticiência são fenômenos psicossociais que valem à pena serem investigados cientificamente e talvez até usados como indicadores de saúde e cultura. Terceiro, esse conjunto de áreas pode gerar bons estudos de caso para qualquer filósofo da ciência. O valor dessa filosofia pode ser medido pela sua sensibilidade às diferenças entre ciência e não-ciência, ciência de alto e baixo nível e ciências vivas e mortas.


Crédito: O conteúdo desta aula foi baseado em uma entrevista feita com Valério Melo, Professor de Ecologia no Departamento de Ciências Biológicas da Universidade Estadual de Santa Cruz, onde coordena o Coletivo Cético M.Faraday do Caminhão com Ciência e membro do Wiki Movimento Brasil e do Guerrilla Skepticism on Wikipedia.

Referências

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  1. NORMAS DE MERTON. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2020. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Normas_de_Merton&oldid=59399507>. Acesso em: 20 set. 2020.
  2. Merton, Robert K. The Sociology of Science: Theoretical and Empirical Investigations. Chicago: University of Chicago Press, 1973. ISBN 978-0-226-52091-9. OCLC 755754
  3. Macfarlane, Bruce; Ming Cheng. «Communism, Universalism and Disinterestedness: Re-examining Contemporary Support among Academics for Merton's Scientific Norms». Springer. Journal of Academic Ethics (6): 67-78, 2008. doi:10.1007/s10805-008-9055-y
  4. Bunge, M. “What is Pseudoscience?” The Skeptical Inquirer, Vol. 9, p. 36-46, 1984. Disponível em: https://skepticalinquirer.org/1984/10/what-is-pseudoscience/. Acesso em 30/08/21.
  5. Bowler J. Evolution: The History of an Idea (3rd ed.). University of California Press. p. 128, 2003. ISBN 978-0-520-23693-6.
  6. Parker Jones, O., Alfaro-Almagro, F., & Jbabdi, S. An empirical, 21st century evaluation of phrenology. Cortex. Volume 106. pp. 26–35, 2018. doi: doi:10.1016/j.cortex.2018.04.011
  7. Magendie F, An Elementary Treatise on Human Physiology. John Revere (5th ed.). New York: Harper. p. 150, 1843.
  8. BONTEMPO, Márcio. Medicina natural: homeopatia e radiestesia. Nova Cultural, 1992.
  9. MacDougall, Robert. «Strange enthusiasms: a brief history of American pseudoscience»(em inglês). Columbia University. Consultado em 9 de setembro de 2016
  10. Ambrose, Graham. «These Coloradans say Earth is flat. And gravity's a hoax. Now, they're being persecuted.». denverpost.com. Consultado em 19 de agosto de 2017