Kittler, F (2016) "1. Pressupostos teóricos" In: Mídias Ópticas
1. Pressupostos teóricos
editar— O conceito básico subjacente às histórias e às análises a seguir é o de mídia no sentido técnico, desenvolvido principalmente por Marshall McLuhan a partir dos trabalhos essencialmente históricos de Harold Adam Innis. Essa escola canadense, assim batizada por Arthur Kroker em virtude de seus conhecimentos privilegiados do meio canadense (Kroker, 1984), viu que as mídias técnicas estavam imersas no imediatismo que predominava nas populações do hemisfério ocidental após a Segunda Guerra Mundial. Para McLuhan, as mídias são as interfaces entre tecnologias, de um lado, e corpos, de outro. McLuhan chegou a escrever que, sob as condições audiovisuais, nossos olhos, ouvidos, mãos etc. não pertencem mais aos respectivos corpos, muito menos aos sujeitos que, na teoria filosófica, apareciam como senhores desses corpos, mas às empresas de teledifusão, às quais estão conectados. Esse vínculo direto, não somente dialético, entre tecnologia e psicologia deveria ser acatado e continuado. Porém, McLuhan, que era um pesquisador da literatura, entendia mais de percepção do que de eletrônica. Por isso tentou pensar as tecnologias a partir do corpo, não vice-versa. De acordo com o modelo do estresse, recém-descoberto na época, as próteses técnicas de um órgão dos sentidos — ou seja, mídias — teriam substituído uma função natural ou fisiológica, e o sujeito da substituição seria a própria função biológica: segundo McLuhan, “um olho que usa lentes ou óculos executa uma operação paradoxal, pois isso representa, concomitantemente, sua autoampliação e autoamputação. Nesse sentido, McLuhan continua a longa tradição que, desde Ernst Kapp e Sigmund Freud, define os aparelhos como próteses de órgãos físicos.
Freud, em Mal-estar na cultura, formulou de modo muito drástico que o chamado homem moderno, usuário de telescópios, microscópios, gramofones, telefones — Freud sempre excluiu o filme de suas reflexões — “tornou-se uma espécie de deus de prótese. Quando faz uso de todos os seus órgãos auxiliares, ele é verdadeiramente magnífico”, mas também verdadeiramente miserável sem eles, pois “não cresceram nele” (Freud, 1948, XIV, p. 451).
Nada tenho contra essa mistura de poder e impotência, de sublimidade e ridículo do ser humano, tanto em Freud quanto em McLuhan; mas a suposição fundamental dos dois, inquestionada, de que o ser humano seria, naturalmente, o sujeito de todas as mídias é questionável. Pois se analisarmos - como pretendemos fazer aqui — o desenvolvimento de um sistema midiático parcial em toda sua amplitude histórica, impõe-se a suspeita inversa, segundo a qual as inovações técnicas — a exemplo do modelo de escaladas estratégico-militares — fazem referência (ou respondem) apenas umas às outras. O impacto esmagador sobre os sentidos e os órgãos resulta justamente desse autodesenvolvimento, que ocorre desvinculado do corpo coletivo ou até individual do ser humano. Por fim, McLuhan, que havia se convertido à fé católica muito antes de obter fama mundial, nutria a esperança de que as mídias eletrônicas do presente e do futuro nos resgatassem de toda literatura ou ciência da literatura. Para fundamentar esse ponto — crucial em nosso contexto — Cito o próprio autor:
Como tecnologia da autoextensão humana, a linguagem, cuja função separadora conhecemos tão bem, aparenta ter sido aquela torre babilônica com a qual os homens “esperavam conquistar o céu. Hoje, porém, os computadores são a promessa de um meio que permite traduzir qualquer código ou língua em qualquer outro código ou língua. Resumindo: por meio da tecnologia, o computador promete um milagre pentecostal de comunicação e harmonia universais. O próximo passo lógico seria não traduzir, mas ultrapassar as línguas, tendo em vista uma consciência cósmica geral. (McLuhan, 1968, p. 80)
Para responder a essa postura católica arquiconservadora em face do culto midiático, que simplesmente confunde o Espírito Santo com a máquina de Turing, basta observar que até hoje todo o desenvolvimento de mídias técnicas, tanto na área da computação quanto na da técnica óptica, tem sido o exato oposto da harmonia cósmica, pois sempre foi também de natureza técnico-bélica.
No entanto, essas imprecisões do conceito de mídia, de McLuhan, não devem nos impedir de trabalhar com suas teses básicas. Os senhores devem conhecer a famosa fórmula segundo a qual a própria mídia é a mensagem. Sem essa fórmula, que proíbe a procura de algo por trás das superfícies tecnicamente geradas, a teoria da mídia ainda teria um objeto de pesquisa — as ciências enigmáticas, como a teologia ou a tese da cosmogonia glacial, também têm um objeto —, mas ela não existiria como tal em sua clareza e em seu isolamento metodológicos. Para abrir campos de trabalho concretos para a ciência da mídia, basta vincular a fórmula de McLuhan “The medium is the message” — ou, como ele mesmo zombou nos últimos anos, “The medium is the massage” — à sua explicação, menos famosa, de que o conteúdo de uma mídia é sempre outra mídia. Para citar o emplo mais óbvio, é evidente que na relação entre filme e televisão o conteúdo mais popular da televisão é o filme; o conteúdo do filme, um romance; o conteúdo do romance, um manuscrito; o conteúdo desse manuscrito etc. etc., até, em algum momento, chegarmos novamente à torre babélica das línguas cotidianas.
O recurso a McLuhan parece ainda mais apropriado porque grande parte da ciência da mídia alemã trabalha por motivos e com hipóteses iniciais completamente diferentes. Werner Faulstich, um de seus famosos representantes, ressalta repetidamente que essa ciência da mídia compreende a si mesma como continuação direta de duas correntes de pesquisa que surgiram na década de 1960: sobre a literatura de cordel, de um lado, e a sociologia da literatura, de outro (Faulstich, 1979, p. 15).
Isso permite que os historiadores da literatura que não ignoram as mídias permaneçam num âmbito que lhes é familiar; mas é duvidoso se uma abordagem tão externa, voltada para o conteúdo, faz jus à complexidade técnica das mídias, que, segundo a antítese de McLuhan, são a própria mensagem. Só conseguimos ver aquele lado que a indústria eletrônica dispõe conscientemente de modo a esconder o motor sob o capô, com a instrução expressa de que este só pode ser aberto pelo mecânico. A autolimitação voluntária da ciência da mídia alemã aos conteúdos, com atenção especial aos conteúdos triviais e populares, pode ter sido plausível enquanto a produção de mídias atribuía a responsabilidade pelos conteúdos e tecnologias a escritórios ou organizações separadas. Na era do computador, que abole essa separação em todos os níveis, essa autolimitação se tornou obsoleta. Resta adotar o conceito de mídia — em mais um passo além de McLuhan — do lugar de onde ele provém: da física, em geral, e da engenharia de telecomunicações, em especial. No início da próxima aula, como introdução sistemática ao tema, tentarei lhes apresentar primeiro os conceitos básicos desenvolvidos por Claude Shannon em 1949 como teoria matemática da comunicação — em outras palavras, como teoria moderna da informação. Assim, o conjunto desordenado de diferentes mídias, como os historiadores alemães ainda as descrevem, será substituído por um esboço sistemático, um método geral pelo qual os muitos passos individuais possam se orientar.
Apoiar-se no conceito de mídia proposto pela engenharia de telecomunicações tem como segunda consequência o fato de que torna impossível limitar o trabalho exclusivamente às mídias que (para dizê-lo de forma suscinta e clara) têm um público civil, pacífico, democrático e pagante. Em Kritische Stichwörter zur Mediemwissenschaft (Notas críticas à ciência das mídias], de Faulstich — observem a recorrência do nome do organizador no título: Stichwörter — encontramos, por exemplo, a tese segundo a qual os circuios fechados de televisão, como os usados em sistemas de vigilância de supermercados, seriam fenômenos marginais do objeto de pesquisa “televisão” da ciência da mídia. Isso pode ser correto sob o ponto de vista de estatísticas sociais, mas é metodologicamente inaceitável. Pois se conseguirmos demonstrar que o convívio privado e civil com gravadores e vídeo resultou justamente desse tipo de sistemas de vigilância, evidencia-se também quão artificial é a demarcação entre mídias de massa e de alta tecnologia e como ela obstrui as análises de relações. A categorização das mídias técnicas em classes de preço e sua instalação em supermercados só vela aquilo que o já idoso Albert Einstein chamou de explosão de informação na atualidade. Curiosamente, Einstein (sem poder sabê-lo) concordava com a alegação de Heidegger de que a explosão de informação seria mais perigosa do que todas as bombas atômicas juntas.
Mas a orientação metodológica que privilegia um conceito geral de mídia e informação nos leva a perguntar se e como campos temáticos individuais podem ser separados. Este curso, em especial, se vê confrontado com o problema das mídias acústicas, não mencionadas no título, mas cada vez mais entrelaçadas com as mídias ópticas. O conceito geral de informação, justamente por não ser filosófico, mas técnico — ou seja, por já conter em si sua imposição —, apresenta a tendência segundo a qual as técnicas de telecomunicação são cada vez menos especificáveis e definíveis em termos de conteúdo ou campos de sentido. Muitas coisas andam em paralelo nas mídias Ópticas e acústicas, muitas até coincidem. Veremos isso na fonografia e no filme em Edison, na telefonia e na televisão em Nipkow. Por fim, não existiria televisão se não tivesse ocorrido um desenvolvimento de técnicas de rádio para a língua e a música, técnicas estas que, mais tarde — após muitas contorções técnicas, que nunca teriam sido necessárias para a língua e a música —, também foram capacitadas a transmitir imagens.
O que resta após minhas tentativas de proteger este curso contra cobranças sociológicas (entre outras) são os problemas levantados pela própria história da técnica. Apesar de tudo, apesar da transformação de cientistas sociais em engenheiros, existe a possibilidade de desenvolver uma história da técnica dentro das ciências da cultura? Thorsten Lorenz expressou o problema de forma bem sucinta num livro sobre os primórdios do cinema mudo, intitulado, por analogia com McLuhan, Wissen ist Medium [Conhecimento é mídia]: o filme é simplesmente uma patente de número tal, como aquela apresentada em 1895 pelos irmãos Louis e Auguste Lumiêre como plano de construção de um novo aparelho e concedida pela República da França. Cada palavra adicional sobre o filme já passa a ser conversa mole cultural ou científico-cultural. Disso Lorenz deduz a consequência radical de não ter escrito um livro científico-cultural sobre o filme, mas sobre a conversa mole científico-cultural sobre o filme.
Em nosso contexto, porém, a relevância prática já mencionada impede esse tipo de radicalidade. Concentro-me, portanto, na história da técnica e não excluo comentários sobre documentos de patente, também com a intenção de transmitir certo know-how. No entanto, as explicações técnicas orientam-se basicamente pelas primeiras fases de desenvolvimento das mídias ópticas, a fim de evitar dificuldades matemáticas de comunicação. Por razões didáticas, sugiro apresentar complicadas soluções técnicas no mo mento de sua criação, ou seja, num estado em que ainda são compreensíveis os chamados diagramas de bloco, que o próprio inventor precisava traduzir da linguagem cotidiana para esboços técnicos. Um aparelho de televisão em sua forma atual e praticamente definitiva passou por tantas equipes e laboratórios de desenvolvimento que ninguém mais é capaz de prestar contas de todas as peças individuais.
Como em muitas histórias do filme, a ênfase em soluções iniciais traz consigo o risco de cair vítima de uma veneração aos pioneiros e inventores geniais e de esquecer a cotidianidade da indústria midiática estabelecida. Se, porém, apresentarmos essa evolução de modo um tanto detalhado, como pretendo fazer aqui, a aparência do indivíduo genial se dissolve. A genialidade não é apenas — como Edison, o inventor da gravação de áudio e de vídeo, disse certa vez, é 1% de inspiração e 99% de transpiração; sob condições altamente técnicas, os desenvolvimentos midiáticos sempre pressupõem — seguindo rigidamente a lei de McLuhan — outros desenvolvimentos midiáticos, ou seja, o suor de outros. Portanto, isso sempre nos remete a equipes que realizam desenvolvimentos sucessivos, otimizações e reaplicações de aparelhos individuais etc., ou seja, a uma história de toda uma indústria. Aqui, porém, devo admitir os meus limites: a história técnica do filme e da televisão apresentada neste curso não adentra a história da indústria. Por não ser publicista nem economista, só na forma de insinuações e referências gerais poderei tratar dos contextos econômicos e financeiros daquilo que talvez possamos chamar de comércio mundial de imagens.
No lugar da história da indústria, que é e permanece sendo um desiderato, o curso foca em dois outros aspectos que resultam diretamente dos comentários acima sobre
McLuhan. Por um lado, tratará da relação entre história da técnica e história do corpo; por outro, da relação entre tecnologias modernas e guerras modernas.
1. Técnica e corpo. A tese nua e crua (para adiantá-la) alega: nada sabemos sobre nossos sentidos sem os modelos e as metáforas fornecidos pelas mídias.
editarA fim de tornar plausível essa tese ousada, apresento dois exemplos históricos opostos:
a. Quando a escrita alfabética, essa nova mídia da democracia ática, foi padronizada pelo Estado em Atenas, surgiu a filosofia na forma do diálogo socrático, que o aluno Platão depois passou para a escrita. Isso suscitou a pergunta sobre o que podia, de fato, exercer a filosofia. A resposta, porém, não foi o novo alfabeto vogal iônico, conforme teria respondido um historiador das mídias como eu. A resposta foi: é o ser humano com sua alma que filosofa aí. Restava à Sócrates, então, e a seus interlocutores entusiasmados esclarecer apenas o que era essa alma. E vejam só: para a definição da alma, ofereceu-se logo a tábua de cera, essa tabula rasa na qual os gregos gravavam com estilete suas cartas e anotações. Assim, verbalizou-se por fim a nova técnica midiática como ponto de fuga da alma recém-criada sob a camuflagem de uma metáfora que, no entanto, não era somente mera metáfora.
b. Por volta de 1900, ou seja, imediatamente após a criação do filme, parece ocorrer um aumento considerável dos casos de montanhistas, alpinistas e, possivelmente, também limpadores de chaminés que sobreviveram a quedas de penhascos e telhados. No entanto, é mais provável que tenha havido um aumento não nas quedas, mas no número de pesquisadores que se interessavam por elas. De qualquer forma, entre médicos como o dr. Moriz Benedict, mas também entre místicos antroposóficos como o dr. Rudolf Steiner, logo se espalhou uma teoria que, provavelmente, todos vocês já ouviram. À teoria afirmava que as quedas (ou, segundo outras observações, também os casos de afogamento), no momento de sua vivência — um conceito-chave da filosofia daquele tempo -, não eram tão terríveis nem tão aterrorizantes assim. No segundo da morte iminente, apresentar-se-ia ao olho interior o filme extremamente acelerado de toda uma vida passada — não tenho certeza se de trás para a frente ou vice-versa. De qualquer forma, vemos que a alma de 1900 deixara repentinamente de ser uma lembrança na forma de tábuas de cera ou de livros, como em Platão; ela havia progredido tecnicamente e se transformara em filme de ação.
Este curso, porém — e esta talvez seja a razão de sua desumanidade famigerada -, se recusa sistematicamente a tentar fornecer mais uma definição de alma ou de ser humano. Os dois exemplos demonstram que nosso único conhecimento sobre eles são os aparelhos técnicos que servem como medida histórica para a alma e o ser humano. Isso exclui a possibilidade de fundamentar este curso nas experiências e opiniões dos espectadores do cinema ou da televisão, coisa que grande parte da ciência da mídia empírica e alemã continua a fazer (a despeito de todos os truques estatísticos para objetivar, num segundo passo, aquelas experiências e opiniões). As expectativas dos fãs não serão satisfeitas. [Grifos de BBN]
Por que essa decepção? Porque a tendência histórica de imaginar o ser humano e sua alma com a ajuda de modelos ou metáforas de mídias técnicas nada tem de aleatório. Mídias se tornam modelos privilegiados para a formação da nossa chamada autoconsciência justamente pelo fato de terem o objetivo declarado de enganar e trair essa autoconsciência. Para entreter-se com um filme, é necessário simplesmente ignorar o fato de que 24 imagens individuais são projetadas sobre a tela a cada segundo, 24 imagens individuais que, possivelmente, provêm de situações de filmagem totalmente diferentes. O mesmo vale para a televisão, onde existe uma distância recomendada entre o aparelho, de um lado, e a poltrona, de outro. Os olhos que ignoram essa distância mínima já não veem mais formas e figuras, apenas inúmeros pixels que se manifestam na forma de padrões moiré ou desfocalizações.
Em outras palavras, as mídias técnicas são modelos do ser humano justamente pelo fato de terem sido desenvolvidas para atropelar seus sentidos. Apesar de existirem equivalentes fisiológicos para a geração de imagens tanto no cinema quanto na televisão, esses equivalentes já não são mais controláveis conscientemente. À alteração de imagens no filme corresponderia, por exemplo, o piscar dos olhos, que normalmente ocorre de forma completamente automática e que, com algum esforço, pode alcançar a metade da frequência do filme de 24 imagens por segundo. Em conjunto com movimentos da cabeça, essa atividade consegue simular de forma bastante drástica o efeito estereoscópico; mas as 24 imagens individuais por segundo foram estabelecidas justamente pelo fato de que sua velocidade não pode ser alcançada pelos olhos ou as pálpebras. Muito semelhante à composição da imagem televisiva é a estrutura da própria retina, composta, como um mosaico, por bastonetes para a percepção de movimento e por cones para a percepção de cores, criando assim a ilusão daquilo que chamamos de luminância e crominância na TV em cores. O problema é que a própria retina é tão pouco visível que o ponto onde ela e todos nós não vemos nada, o ponto cego na retina pelo qual passa o nervo óptico, só foi descoberto por meio de experimentos fisiológicos no século XVII.
Isso, por sua vez, significa que as mídias técnicas devem ser compreendidas, com todo o direito (e sem aquele pessimismo cultural transformado em moda pelo capítulo sobre o filme e o rádio na Dialética do Esclarecimento, de Horkheimer e Adorno), como inimigos, contanto que sejam percebidas por nossos sentidos, como o filme ou a televisão. Pois o inimigo é, segundo uma expressão de Carl Schmitt (cujo conceito de inimigo adoto aqui), a forma da nossa própria questão. As mídias existem porque o homem é (segundo Nietzsche) o animal não fixado. Justamente essa relação, não da dialética, mas da exclusão ou da inimizade, faz da história da tecnologia algo não tão desumano assim; caso contrário não diria respeito, absolutamente, às pessoas.
[Como diz Zizek, "o cinema é a extrema arte perversa, porque não nos ensina apenas o que desejar, mas também como desejar." Porém, como ele mesmo diz, precisamos de alguma orientação para que ao menos alguns desejos coagulem e se tornem passíveis de serem satisfeitos - BBN]
O título temático desse problema, que precisa ser tratado minuciosamente, é padrão ou norma. As mídias chegam aos nossos sentidos por meio do padrão. Todos os filmes à venda são padronizados conforme as normas DIN (Deutsches Institut fir Normung) [Instituto Alemão para Normatização] ou ASA (American Standards Association) [Associação Americana de Padronização). Terminologicamente, atenho-me à palavra “padrão” para ressaltar o modo combina: do aleatório e contingente desse tipo de regulamentações. As normas, por sua vez, são tentativas de se aproximar de constantes naturais, como o protótipo do metro da Revolução Francesa, cujo exemplo levou Foucault e o historiador da medicina Canguilhem, a partir de 1790, a nos definir como cultura da norma, não mais da lei. Dou um passo além e afirmo que, desde 1880, estamos num reino (“cultura” como conceito do crescimento agrícola já não se aplica mais) dos padrões. A diferença entre padrões midiáticos e estilos artísticos já se torna evidente no emprego de telas em filme e pintura. Teremos que discutir isso em sua positividade técnica, adiante. Por ora, apenas o básico.
O olho vê. Vê um filme, um programa de TV, uma pintura ou um segmento da chamada natureza, que (segundo a palavra dos gregos) brota de si mesma? Essa pergunta só pode ser respondida (1) por um observador que vê o olhar desse olho ou (2) pelo próprio olho se e enquanto o padrão midiático ainda representar um comprômisso comercial e apresentar falhas: preto e branco, ausência de estereoscopia, erros cromáticos no sistema de TV norte-americano NTSC. Como observou corretamente o diretor Von Göll no grande romance de guerra de Pynchon, “ainda não estamos no filme” (Pynchon, 1981, p. 823).
Em 1945, o diretor fictício de Pynchon, que nada mais é que um pseudônimo de seus colegas históricos, como Fritz Lang e Lubitsch, promete uma padronização que anulará a diferença entre filme e vida — este o subtítulo de um romance de Arnolt Bronnen — e que, nesse meio-tempo, já fez alguns progressos. Como os senhores sabem, essa coincidência entre midiatização e realidade é discutida desde Baudrillard sob o título de simulação.
O curso terá que se intrometer nesse debate, pois suspeito que justamente o conceito de simulação como suspensão de uma separação permite introduzir uma diferença ainda mais nítida entre as artes tradicionais e as mídias técnicas do que aquela que a linguagem comum costuma fazer.
Na tradição grega existem anedotas bastante paradigmáticas sobre uma disputa entre dois pintores: ambos alegavam ter cumprido à risca o postulado supostamente aristotélico de uma mimesis physeos, a imitação da natureza. Um dos pintores, chamado Zeuxis, criou uma pintura com uma representação perfeita de uvas. Seu concorrente a reconheceu como pintura; não, porém, um bando de pássaros, que imediatamente atacou as frutas. Segundo Kant, essas duas reações representam exatamente toda a diferença entre arte e vida, entre deleite altruísta e desejo. Mas a história não teve um final tão simples assim. O concorrente de Zeuxis, Parrásio, conseguiu introduzir um segundo nível à disputa entre os pintores. À pintura que apresentou estava coberta por um véu. Zeuxis, a fim de vê-la, tentou levantar o véu. Então percebeu que o véu também era pintado. A simulação de primeira ordem havia enganado apenas o olho animal; a simulação de segunda ordem enganara também o olho humano.
Apesar de essa anedota demonstrar lindamente que o interesse fundamental das artes e das mídias é enganar um órgão sensorial (Lacan, 1978, p. 95)[1], ela é tão problemática quanto linda. Alega que os seres humanos, com seus meios e habilidades artesanais — ou seja, por meio da pintura, escrita ou composição musical -, podem enganar outros seres humanos quanto ao status do respectivo produto. “Quem acredita que é possível mentir com palavras poderia acreditar que isso está acontecendo aqui”, escreveu Gottfried Benn sobre suas primeiras novelas. Ele mesmo, portanto, acreditava tão pouco nisso quanto eu. Se contemplarmos hoje os resquícios mal preservados de afrescos gregos, a anedota sobre os pintores se torna muito duvidosa, pois é evidente que essa pintura trabalhava com uma paleta na qual faltavam algumas cores. A verdade natural alegada era, na realidade, uma convenção. Era necessário primeiro ignorá-la para que a ilusão funcionasse. Nesse sentido, a pintura, a despeito de sua aparência realista, não se diferenciava essencialmente de outras artes como a música ou a literatura, cuja codificação — ou seja, cuja convencionalidade — é evidente. Nossa tese afirmaria, então, que as artes tradicionais como atividades artesanais — segundo o conceito grego — produziam apenas ilusão ou ficção, não uma simulação semelhante à das mídias técnicas. Inscrevia-se nas artes, em tudo que era estilo ou código, uma separação que os padrões técnicos desconhecem.
Os estilos artísticos eram modos de exercer alguma influência sobre os sentidos do público, mas não se apoiavam em medições das capacidades ou das incapacidades perceptivas do olho, como é o caso no padrão da alteração de imagens do filme. Apoiavam-se em estimativas, convenções e todos aqueles acasos entranhados na disponibilidade histórica das matérias-primas. Sem a tinta a óleo, ou seja, sem a petroquímica e suas guerras mundiais, determinadas ilusões pictóricas seriam irrealizáveis. Se Foucault ainda tivesse tido a oportunidade — como prometera em A Ordem do Discurso — de escrever seu livro sobre pintura como história dos pigmentos disponíveis em cada época, saberíamos mais. Mas, mesmo sem esse livro, sabemos que os pigmentos são tão visíveis quanto aquilo que pretendem representar na tela. Por isso, até o início da modernidade, a cultura europeia esteve sujeita a um postulado que Hans Blumenberg chamou de “postulado da visibilidade”: aquilo que é se manifesta ao olho. O conceito já mencionado da teoria de Platão também afirmava que é possível ver até mesmo aquilo que existe como ente mais elevado, ou seja, como ideia, apesar de não ser visível a olho nu (ou justamente por isso). As mídias técnicas (e apenas estas) — bem como a tese deste curso — deram cabo desse postulado de visibilidade. Aquilo que hoje participa do ser num sentido eminente não se manifesta de forma visível, apesar de ser — ou justamente pelo fato de ser — condição imprescindível para fazer visível o visível. Nesse sentido, a história das mídias ópticas é uma história do desaparecimento. O que me dá a liberdade de também desaparecer por hoje.
Talvez supreenda o fato de que a história dos pássaros opticamente iludidos tenha retornado como teoria clentífica nos nossos dias: em primeiro lugar, a pesquisa de conduta conseguiu demonstrar de fato que a ovulação, necessária para a fecundação, ocorre nas pombas não só quando veem o pombo, mas também quando o laboratório lhes apresenta uma maquete bidimensional desse pombo. Num segundo passo, Jacques Lacan, o psicanalista e estruturalista francês, desenvolveu toda uma terminologia baseada nesse experimento. Pelo menos no âmbito anglo-saxônico, essa terminologia se popularizou também entre os estudiosos do filme. Em Lacan, todos os fenômenos de reconhecimento de formas são subsumidos sob o título metodológico do imaginário com a afirmação de que seriam tão automáticos quanto ilusórios. Lacan cita as pombas do mesmo modo que os pintores antigos (Lacan, 1973, p. 95), mas seu exemplo não é exemplo, é o próprio objeto: ao contrário dos animais, os bebês humanos aprendem muito cedo, mais ou menos no sexto mês de vida, a reconhecer-se na imagem do espelho que se coloca diante deles. Só que esse reconhecimento infantil é, ao mesmo tempo, um desconhecimento, pois a vantagem sensorial das crianças em comparação com a cria animal — que reconhece no espelho um concorrente e não a si mesma — é a inversão ou a compensação exata de seu atraso motor. Justamente por ainda não saberem andar, e pelo fato de um sistema nervoso central ainda não completamente desenvolvido não lhes comunicar um corpo próprio homogêneo, elas projetam uma identidade opticamente perfeita e encerrada em si sobre a imagem espelhada. Toda a alegria com a qual se reconhecem na imagem encobre a incoordenação motora e sensorial de seu corpo. Assim, segundo Lacan, surge do imaginário o próprio Eu. E o fato de Lacan ter encontrado uma prova de suas teses em um filme experimental científico que apresentava esse tipo de autorreconhecimentos (ou autodesconhecimentos) em frente ao espelho (Lacan, 1973-1980, III, p. 13) revela também o que a fase do espelho e o imaginário têm a ver com o filme. Voltarei a falar desse complexo quando tratar dos primeiros filmes mudos alemães, que eram povoados por espelhos e duplos de pessoas [Doppelgânger].
Por ora, importa mais observar que o imaginário é apenas uma de três categorias metodológicas daquela teoria estruturalista. A dimensão do código, ilustrada acima a exemplo de estilos e regras estéticas, se apresenta em Lacan sob o título do simbólico, situado essencialmente no código da linguagem cotidiana.
À terceira categoria, por fim, é chamada de o real. Peço que não a confundam com aquilo que normalmente chamamos de realidade. Le réel é determinado como aquilo — e somente aquilo — que não apresenta nem forma (como o imaginário) nem sintaxe (como o simbólico). Ou seja, o real escapa tanto às ordens combinatórias quanto aos processos de percepção óptica, porém, justamente por isso — este é um dos leitmotivs deste curso —, só pode ser arquivado e processado por mídias técnicas. O fato de vivermos num tempo em que, graças aos fractais de Mandelbrot, as nuvens podem ser computadas em toda sua aleatoriedade e então representadas na tela como imagens calculadas (e não filmadas) distingue o presente de qualquer tempo no passado. Porém, em termos bem práticos, isso significa que precisaremos usar uma parte essencial da teoria do filme — normalmente chamada de semiologia do filme — para esclarecer a radicalidade da nova maneira pela qual as mídias ópticas manuseiam o simbólico. Trata-se concretamente das técnicas da montagem e da edição, de tudo aquilo, portanto, que, desde Walter Benjamin, é considerado uma estética especificamente midiática. Sobretudo, precisaremos esclarecer a maneira pela qual as mídias, em oposição a todas as artes, conseguem incluir, mesmo assim, o real impossível em suas manipulações ou as técnicas em seus procedimentos, ou seja, lidar com o mero acaso de um objeto de filmagem ou da configuração da câmara como se ele apresentasse a — mesma estrutura que os códigos manipuláveis nas artes.
Para, desde já, iluminar um pouco essas alusões talvez obscuras, encerro estas observações sobre as técnicas midiáticas e O corpo com uma citação de Rudolf Arnheim sobre a teoria do filme. Num ensaio sobre a sistemática das primeiras invenções cinematográficas, Arnheim escreve que
a “imagem é confrontada com uma reivindicação exigente”, nova somente “desde nosso conhecimento da fotografia”: “Não deve ser apenas [como em todas as artes cênicas] semelhante ao objeto, mas oferecer a garantia dessa semelhança pelo fato de ser um produto desse próprio objeto, isto é, de ter sido gerado mecanicamente por ele mesmo — da mesma forma que os objetos iluminados da realidade imprimem sua imagem mecanicamente na camada fotográfica” (Arnheim, 1977, p. 27).
Espero que essa citação transmita uma noção do que possa ser uma manipulação do real aquém de todas as formas e de todos os códigos culturais. Se, segundo Lacan, o corpo pertence a esse real, a introdução sobre mídias ópticas e corpos conseguiu alcançar seu objetivo.
No que diz respeito à metodologia, resta observar que empregarei a terminologia de Lacan apenas como uma caixa de ferramentas útil, não como verdade imutável — pelo simples fato de que, no decorrer deste semestre, nos veremos obrigados a perguntar se os conceitos básicos das teorias atuais não seriam antes uma consequência direta da explosão midiática da nossa época, em vez de representarem posições de observação absolutamente independentes e, por isso, verdadeiras. O símbólico em Lacan como uma sintaxe purificada de toda semântica, de todo sentido e de toda forma, ou seja, também de toda imaginatividade, poderia, por fim, coincidir com o conceito de informação da engenheria de comunicação.
2. Resta a pergunta referente à procedência do conceito tão pouco tradicional de informação, dessa razão e desse propóstio de todas as mídias técnicas. Para falar dele e da relação entre mídias e guerras, atenho-me ao exemplo da fotografia e recorro a uma citação oriunda dos seus primórdios, de 1859, na qual (a meu ver) surge pela primeira vez algo como uma informação da técnica midiática.
editarNa época, Oliver Wendell Holmes, o primeiro verdadeiro teórico da fotografia, escreveu:
No futuro, a forma estará separada da matéria. Na verdade, a matéria em objetos visíveis não é mais de grande utilidade, a não ser que sirva como molde para a forma. Basta que nos deem alguns negativos de um objeto notável, fotografado de diferentes perspectivas — é tudo de que precisamos. Depois, se quiserem, podem derrubarou queimar o objeto. (Citado em Busch, 1995, p. 28)
Sob o antigo conceito filosófico de forma, esconde-se em Holmes a informação moderna: uma possibilidade de arquivar, transmitir e, por fim, processar dados sem qualquer matéria, mas também sem a inevitável perda da precisão em reproduções artísticas. O que nos interessa em seu exemplo é apenas que a informação puramente química se transforma em correlato da destruição puramente química. O que Holmes descreve aqui já traça o caminho para a bomba de Hiroshima — que, na visão semelhante de Thomas Pynchon e Paul Virilio, representava, ao mesmo tempo, destruição e exposição de película fotográfica - ou para aquela galeria de mineração na Floresta Negra, à prova de bombas nucleares, na qual o governo alemão arquiva os planos e as fotografias de todos os nossos monumentos.
Em outras palavras, o próprio conceito de informação já contém um componente militar e estratégico. Não acidentalmente, a era das técnicas midiáticas é também a era das guerras técnicas. Cabe a Paul Virilio, téorico francês de arquitetura e assuntos militares, o mérito de ter elaborado esse ponto especialmente para as mídias ópticas de forma cada vez mais clara. Na Alemanha, porém, a maioria dos historiadores de mídia — com a exceção de Heide Schlüpmann, com suas palavras claras sobre o filme mudo e a Primeira Guerra Mundial - simplesmente o ignoram. O curso, portanto, deve recuperar (e recuperará) um atraso. A argumentação de Virilio, principalmente em seu livro Guerra e cinema, segue duas trilhas: a primeira diz respeito a tudo que as mídias ópticas produzem de imaginário no sentido definido acima, ou seja, todos os modos de fascínio, deslumbramento, camuflagem ou — para usar uma palavra da psicologia gestáltica deste século das mídias técnicas — ilusões ópticas em geral. Ao definir a guerra, de forma inicial e bem simples, como um jogo de esconde-esconde entre dois inimigos, Virilio consegue demonstrar como os efeitos midiáticos se unem a estratagemas nas ilusões ópticas. Por mais plausível que seja, esse modelo parece um tanto simples para explicar todo o comércio e a guerra de imagens daatualidade. Por isso me inclino a seguir a segunda trilha argumentativa de Virilio, que trata especificamente das mídias ópticas. Ao contrário da onda sonora, que, em temperaturas normais, percorre mais ou menos 330 metros por segundo (sem falar da velocidade de transporte de cartas ou de ordens por via postal ou dos mensageiros a cavalo), a velocidade de ondas ou partículas da luz corresponde à constante c de Einstein e não é superada por nenhuma outra velocidade. Consequentemente, o segundo argumento de Virilio afirma que o interesse estratégico na informação mais rápida — o controle e o direcionamento das próprias tropas, o controle e o monitoramento das reações inimigas, sobretudo, porém, o controle e o direcionamento das próprias reações (se possível, atemporais) a ações inimigas — impulsionou decisivamente a ascensão explosiva das mídias ópticas nos últimos cem anos.
Deparamo-nos aqui com um ponto que merece ser acompanhado do filme à televisão e ao futuro digital da tecnologia de imagens. Tentarei repassar os dados apresentados por Virilio, basicamente ignorados em outros contextos, e, a partir desse material, explicar algumas teses drásticas de Virílio, como a de que o cinema de entretenimento do período entre as duas guerras mundiais era (nas famosas palavras de Eisenhower) um complexo militar-industrial.
Como ressaltei acima, ao falar sobre tecnologia óptica não devo me limitar a filmes de entretenimento e programas televisivos; terei de tratar também de coisas tão enigmáticas como o radar ou aparelhos de visão noturna. Em nosso tempo, porém, em que caiu um muro no meio da Alemanha, talvez possamos entender também quão relativa tem se tornado qualquer separação entre tecnologias civis e estratégicas de imagens: além do atraso da Europa Oriental na informática e na produção computadorizada integrada, como admitiu o próprio Gorbatchev, esse muro caiu como resultado de um bombardeio constante, realizado durante 25 anos por programas de televisão.
O que chega ao fim com esse tipo de evento provocado por mídias técnicas talvez seja mais do que apenas um capítulo da história europeia no após-guerra. Talvez as técnicas de comunicação levem a própria história, que sempre foi sinônimo da possibilidade de registro por escrito, a um limite além do qual ela não é mais história no sentido tradicional. De toda forma, vale o esforço de reconstruir a história do cinema e da televisão mirando esse ponto de fuga. Afinal, aumenta o número de eventos que só existem como documentário ou gravação televisiva (o assassinato de Kennedy em Dallas, o atentado contra Reagan em Nova York). Esses eventos já não podem ser remetidos a outras fontes historicamente corretas — ou seja, escritas —, assim como é igualmente impossível (segundo a demonstração de Antonioni em Blow up) ampliar ainda mais os respectivos documentos cinematográficos sem chegar à pura granulação do celuloide, ou seja, ao ruído branco, no qual nada pode ser reconhecido. Poderíamos então dizer que justamente onde a história transmitida conhecia apenas a oposição entre a escrita, isto é, a arte artesanal, e o oceano dos fatos não documentados, isto é, uma inacessibilidade nua e crua, surge agora na era das mídias a nova oposição entre informação técnica e ruído branco, entre o simbólico e o real.
Após ter introduzido os conceitos de informação e de ruído, posso finalmente encerrar esta introdução metodológica com um breve esboço do modelo técnico de comuni-cação e informação de Shannon.
Claude Elwood Shannon, um dos matemáticos e engenheiros mais importantes no laboratório de pesquisa da até hoje maior companhia telefônica do mundo, a AT&T norte-americana, apresentou esse modelo em 1948, num texto com um título tão modesto quanto exigente: Teoria matemática da comunicação. Após massivas inovações, incentivadas pela Segunda Guerra Mundial, em todas as técnicas de comunicação, sobretudo da TV e do radar, tornou-se historicamente desnecessário apresentar teorias sobre mídias individuais — como pessoas de todo tipo haviam feito sobre o filme, de Hugo Miinsterberg a Walter Benjamin. Agora, era possível perguntar-se simplesmente o que faziam as mídias de comunicação em geral, quais eram as funções e os elementos que elas deveriam ter para que uma informação ocorresse de todo. Em Shannon, essa generalidade se deve à sua abordagem e à sua elegância. Apesar de aqui não podermos nos apoiar fortemente em seu aspecto matemático, sua teoria é vantajosa também para os nossos propósitos, pois introduz conceitos claramente delineados sem os quais seríamos incapazes de comparar os potenciais e os limites de mídias individuais, como, por exemplo, o cinema e a televisão. Uma vez familiarizados com as funções e os elementos gerais, poderemos reencontrá-los nos mais diversos graus de dificuldade técnica, tanto num simples livro quanto na mais moderna tela de computador.
No modelo geral de um sistema de comunicação de Shannon, cinco elementos estão interligados: primeiro, uma fonte de dados que emite a mensagem; segundo, um ou vários transmissores que traduzem a mensagem de acordo com um código combinado em sinais para que o sistema possa transmiti-la; terceiro, um canal que (com perdas maiores ou menores) executa essa transmissão; quarto, um ou vários receptores que processam o sinal de modo inverso ao transmissor, ou seja, que reconstroem ou decodificam a mensagem a partir do fluxo de sinais recebido; quinto, um ou vários destinatários aos quais, como escreve Shannon, a mensagem se dirige. Para a teoria matemática da comunicação, não importa a natureza dos seres que transmitem uma mensagem como fonte de dados ou que recebem uma mensagem como destinatários — podem ser seres humanos, deuses ou aparelhos técnicos. Ao contrário da filosofia tradicional e da ciência da literatura, ela não se interessa por quaisquer seres para os quais a mensagem teria algum sentido ou significado. Alcança sua generalidade justamente pelo fato de ignorar sentido e significado, tentando, em vez disso, esclarecer o mecanismo interno da comunicação. À primeira vista, isso pode parecer um prejuízo, mas talvez tenha sido justamente essa independência em relação a qualquer sentido ou contexto que emancipou a comunicação técnica das línguas cotidianas (que são necessariamente contextuais) e possibilitou que conquistasse o mundo. Quando Shannon diz explicitamente que as verdades eternas — seja matemáticas ou, como quero acrescentar, religiosas — não demandam um sistema de comunicação, já que verdades desse tipo sempre deveriam ser reprodutíveis nos lugares e tempos mais variados sem qualquer transmissão técnica, torna-se claro que as mídias se despedem de toda e qualquer crença da linguagem cotidiana. Esqueçamos, portanto, os seres humanos, a linguagem e o sentido, para então voltarmos nossa atenção aos detalhes dos cinco elementos e funções em Shannon.
Já que é concebida sem qualquer semântica, a mensagem pode ser de qualquer tipo: uma sequência de letras, como em livros ou sistemas telegráficos; uma única grandeza mutável no tempo, como as frequências de voz ou música no rádio ou no disco de vinil (ignorando, por ora, as duas variáveis da estereofonia); e, por fim, num caso tão complexo como a televisão em cores, todo um conjunto em diversas dimensões do tempo e do espaço. Para tornar visível uma única imagem em cores, é necessário transmitir ao mesmo tempo, além da dimensão temporal do som, também as duas dimensões espaciais do valor das cores vermelho, azul e verde e de um valor de brilho.
O transmissor, como segundo elo da corrente, tem a função previsível de servir como interface entre a mensagem e o sistema técnico, ou seja, de encontrar um meio-termo ou um compromisso entre a complexidade maior ou menor da mensagem e a capacidade maior ou menor do canal. A princípio, existem duas possibilidades de solucionar o problema: no primeiro caso, o sinal gerado pela transmissão corresponde à mensagem por meio da proporcionalidade, isto é, ele segue todas as suas mudanças no espaço e/ou no tempo. É a chamada comunicação analógica, que, se pensarmos no gramofone, no microfone, no rádio ou na fotografia, é o caso mais familiar, mas, infelizmente, também o mais difícil em termos matemáticos. No segundo caso, para ser adaptada fisicamente à capacidade em princípio sempre limitada do canal, a mensagem — antes de sua transmissão — é repartida em elementos individuais de um mesmo tipo, por exemplo, em letras, no caso da transmissão de uma fala, ou em números inteiros, no caso da técnica de computador, e também em pontos individuais, no caso do monitor. Já que esses elementos só podem adotar determinados valores — existem, por exemplo, muito menos letras latinas do que ruídos que podemos produzir com a laringe e a boca -, eles não seguem a mensagem em todas as suas oscilações, sutilezas e detalhes. Os sistemas de comunicação com esse tipo de sinais muito mais controláveis técnica e matematicamente são chamados — a exemplo dos dedos da mão — de digitais.
Toda a diferença entre a ciência do cinema e da televisão terá como finalidade esclarecer o que a transição de uma mídia essencialmente analógica, como o filme, para a imagem televisiva digital muda ou revoluciona na percepção óptica.
Como terceiro elemento, temos o canal, essa instalação para a superação técnica do espaço em mídias de transmissão ou para a superação do tempo em mídias de arquivamento; que pode existir materialmente — como no caso de fios telefônicos ou fibras ópticas — ou simplesmente consistir no vácuo pelo qual se propagam as ondas eletromagnéticas - como no caso da radiotransmissão ou da televisão. Em todo caso, todo canal, como meio físico, apresenta interferências, isto é, ruído, que é justamente o oposto, como conceito, da informação. Se sintonizarmos nosso aparelho de TV em alguma frequência entre os canais ativos, esse ruído se apresentará também aos nossos órgãos sensoriais - normalmente insensíveis ao ruído — como nevoeiro de pontos de imagem correspondentes a quaisquer eventos aleatórios provenientes do amplo reino entre as velas de ignição do carro e as distantes vias lácteas. Somos incapazes de determinar até mesmo se esse ruído corresponde a um único processo aleatório contínuo ou se resulta da soma de um número infinito de processos desse tipo. Portanto, as especificações técnicas de todas as mídias devem tentar diminuir a percentagem do ruído do canal — eliminá-lo de todo não é possível - ou aumentar a percentagem do sinal. Um dos resultados teoricamente decisivos dos cálculos de Shannon mostrou que isso é possível, desde que a mensagem seja codificada de modo inteligente e repetida até ocorrer uma recepção que apresente a exatidão desejada.
Como quarto elemento, o receptor dentro de um sistema de comunicação exerce a função de decodificar o sinal tecnicamente codificado, ou seja, reconstruir, na medida do possível, a mensagem introduzida no sistema no local de transmissão. No caso do livro, isso se resume ao simples ato da leitura; porém, em mídias tecnicamente complexas, como a telvisão, um sinal elétrico, que não é percebido por nenhum órgão sensorial, deve ser transformado para um formato que corresponda de alguma maneira à fisiologia do nosso olho. Principalmente em mídias digitais como o processamento de imagens eletrônicas, essa transformação requer uma conversão digital-analógico para os órgãos sensoriais humanos. O que se vê no final é apenas a última camada, superior, de uma série de truques mágicos que, antes de tudo, precisavam ser inventados, calculados e otimizados. E foi justamente para esses cálculos que Shannon criou fórmulas que valem de modo geral e inabalável para todas as mídias técnicas.
Imagino que os senhores, talvez grandes fãs de filmes de ação, tenham percebido em meu discurso sobre as cinco funções da comunicação que a função de arquivamento, aparentemente tão básica e necessária, não é mencionada por Shannon. A isso só posso responder com duas observações: em primeiro lugar, a função de arquivamento se esconde, mas também se esgota, na matemática (apenas superficialmente mencionada) da otimização do código. Em segundo lugar, o fato de que todas as mídias são, como em Shannon, definidas como mídias de transmissão, não como mídias de arquivamento, provavelmente é um indício da nossa situação atual. Enquanto o objetivo de uma festa cristã como a Páscoa consiste em ser repetida anualmente, pois visa ao arquivamento e à transmissão de uma mensagem específica e bem conhecida, a mensagem chamada de Evangelho, ninguém se alegra muito com a repetição de uma programação na TV. A medida matemática de Shannon para a informação foi criada especialmente para tornar mensurável e separar a novidade — isto é, a improbabilidade de uma mensagem — da massa de repetições necessariamente contidas em qualquer código.
- ↑ Lacan, J, (1985) O Seminário 11, cap. VIII, "A Linha e a Luz"