Marighella (2011)
André Martin de Oliveira Franco
Acomodar-me no conforto de uma poltrona para assistir a um filme sobre a ditadura militar no Brasil reúne uma mistura de sensações. Democraticamente, o prazer do aconchego da poltrona de molas do início da década de 1970 que, depois de ser repetidamente reformada, manteve a comodidade do móvel duradouro, soma-se ao lenitivo oferecido pelas novas técnicas de remodelar o velho, valorizado pelos recentes avanços da indústria de tecidos. A velha poltrona parece estar mais nova e atual do que nunca. Por outro lado, o desconforto de ligar a TV para ver um filme que trata dos anos de chumbo no Brasil surge, juntamente, com a aflição de, em poucos minutos, ter que se defrontar com dores, lágrimas, sofrimentos, desesperos e injustiças.
O filme escolhido é “Marighella”: uma produção nacional de 2012, dirigida pelo pela diretora Isa Grinspum Ferraz, sobrinha de Marighella. Até os instantes anteriores ao início do filme, lembro-me quando, em 1981, fui convidado por uma tia a assistir a uma palestra da ativista e militante Clara Charf (1925-atual), no anfiteatro da Unesp (Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”), no Campus de Marília-SP. Na época, eu tinha 13 anos de idade e, enquanto dirigíamos à palestra, sabia que a palestrante era a viúva do também ativista e militante Carlos Marighella (1911-1969). Na verdade, eu sabia mais sobre aquele já histórico personagem. Já havia fuçado a estante de livros daquela mesma tia, retirado uns livros e lido. Em mais de um, Marighella era citado. Apesar da abertura política que vivenciávamos naqueles dias, sentia que os livros eram tão reconfortantes como a poltrona antiga e reformada que, depois de mais de quarenta anos, eu utilizava para assistir ao filme sobre o Marighella. Porém, os livros e a poltrona eram bem mais confortáveis e agradáveis do que o trajeto da casa dos meus avós ao anfiteatro da Unesp para ouvir o que iríamos ouvir. Apesar de já estarmos em 1981, segundo ano do mandado do presidente João Baptista de Oliveira Figueiredo (1918-1999), sentia que estávamos fazendo algo perigoso e contrário ao governo do General João Figueiredo. Ainda vivíamos a Ditadura Militar iniciada em 1964. Apesar de uma certa abertura, o futuro parecia incerto: não sabíamos que estávamos a três anos do ápice do Movimento “Diretas Já”, que reivindicaria a retomada das eleições democráticas e diretas no Brasil, e a cinco anos da eleição indireta em que Tancredo de Almeida Neves (1910-1985) seria escolhido para ser o primeiro presidente civil desde o Golpe de 1964. Como também era impossível imaginar que Tancredo morreria antes de tomar posse.
Assim que o filme se inicia, estereótipos ganham forma. A primeira imagem que salta aos olhos é de pares de pequenos círculos luminosos, que se movimentam na tela da TV. Imediatamente, concebo tais imagens como se fossem viaturas policiais: uma atrás da outra. Uma denotação de ordem, disciplina e padronização. Porém, minha ideia foi enganada pela imagem que, na verdade, condiz à logo da Downtown Filmes, uma distribuidora voltada, exclusivamente, ao cinema nacional. Longe de uma imagem militar, os pontos visualizados formam uma imagem de edifícios pontilhados. Em seguida, o ambiente impregnado de ideias, sensações e pensamentos beligerantes, novamente, sofre um revés e comprova meu segundo engano. A próxima imagem, que aparece na tela, é interpretada por mim como sendo aqueles números que surgiam na estreita tela de uma calculadora portátil. Lembro-me que, quando criança, nos anos finais da década de 1970, brincava de escrever o nome “Geisel”, digitando os números 7 3 2 1 3 9. Bastávamos virar a calculadora de cabeça para baixo para que os números virassem letras. E na tela, deixávamos a nossa saudação inocente ao quarto presidente da Ditadura Militar: o General Ernesto Beckmann Geisel (1907-1996). O que pareciam números de calculadora são letras que formam a palavra “TC Filmes”: o nome de uma produtora de cinema. Após os meus enganos, que provaram o quanto eu estava mergulhado no clima para vivenciar, por mais de uma hora e meia, uma parte dos anos sangrentos da repressão militar, tentei relaxar e percebi o quanto, mesmo após 37 anos de termos iniciado a redemocratização de nosso país, ainda prevalecem: a dor da tortura, a tristeza pelas de vidas ceifadas pelo Autoritarismo, as lágrimas de quem sonhou, decepcionou-se e voltou a sonhar, a insegurança quanto ao presente e ao futuro, o medo de ser mais um em cova de cemitério clandestino e o espírito antidemocrático que esbraveja, queima, paralisa, mente e, ainda mata. São realidades ainda presentes em nossa experiência de ser cidadão brasileiro.
No início, surgem fotografias desfocadas de Ferraz ainda menina. Ela inicia a narrativa, contando o segredo que, há mais ou menos quarenta anos, o seu pai disse ela. O segredo era: o tio Carlos era o famoso Marighella. Este era casado com a tia Clara, irmã da mãe da menina. Segundo a sobrinha, o casal de tios sempre aparecia e desaprecia da casa dela. Em suas lembranças, o tio era carinhoso, brincalhão e sempre contava histórias de lugares distantes. Ela nunca tinha associado o rosto do tio com as imagens de Marighella estampadas nos jornais. Segundo ela, ele era o inimigo número um da Ditadura Militar. Ao som de um tiro, a sobrinha conta que, em 1969, seu tio foi assassinado em uma rua de São Paulo. A menina e, depois mulher, sempre quis saber quem foi, de fato, Carlos Marighella. Um brasileiro que, segundo ela, viveu quase 40 anos, de maneira clandestina, sem deixar pistas. Na tela, uma imagem de São Jorge sobre o cavalo explode ao som de um batuque. Surgem imagens contemporâneas e antigas de Salvador, com pescadores na orla, vendedores e crianças brincando. Em sua narrativa, Marighella conta que seu pai, Augusto Marighella, veio da Itália e trabalhou como mecânico em oficinas de máquinas na capital baiana. Onde conheceu a mãe de Marighella: Maria Rita. Com ela, teve oito filhos. Sua mãe descendia de escravos africanos que foram trazidos do Sudão. Pretos que ficaram famosos em suas lutas contra os escravistas da Bahia.
Durante a narrativa, são apresentadas fotografias dos pais de Marighella. Segundo o antropólogo e poeta Antônio Risério (1953-atual), é do casamento de Augusto com Maria Rita que nasce Carlos Marighella. “Criado numa casa, onde você tinha, ao mesmo tempo, spaghetti e caruru. Onde você tinha anarquismo e a revolta dos malês. Então, esse menino Carlos ia deixar por menos?”, questiona Risério. Marighela conta que nasceu em 5 de dezembro de 1911 e, desde criança, sempre meditou sobre um problema sobre o qual seu pai falava a respeito quase que diariamente: “Por que o pobre trabalha toda a vida e nunca tem nada?” Na tela, imagens de crianças à beira do mar, pescadores trabalhando e homens simples, agachados, pegando comida do prato diretamente com as mãos. Para o filho do revolucionário, o advogado Carlos Augusto Marighella (1948-atual), os filhos homens de seu avô eram orientados a seguir o ofício do pai deles. O único filho que não foi tralhar nas oficinais foi Marighella. “Meu avô queria que meu pai estudasse.”, diz. Seu avô havia percebido que Carlos Marighella possuía talento parta os estudos. O jornalista e ex-militante do Partido Comunista Brasileiro, Armênio Guedes (1918-2015) disse que conheceu Marighella quando este estudava no mesmo ginásio que a irmã de Guedes. Eram excelentes alunos. “E minha irmã sempre comentava as coisas de Marighela, as malandragens dele.”, lembra. Guedes comenta sobre a famosa prova de Física de Marighela, imortalizada na obra poética “Uma Prova em Versos (E Outros Versos), em que o estudante fala sobre o espelho. De repente, inicia-se a narrativa de Marighela sobre tal poema. O historiador e ex-militante do Partido Comunista Brasileiro, Jacob Gorender (1923-2013) lembra que o revolucionário era um homem alto, forte, atlético e, extremamente, corajoso. Eu o considero um dos homens mais valentes que eu conheci em minha vida.”, afirma.
Com o objetivo de tornar as imagens ainda mais reais do que já são, a câmara permanece imóvel enquanto, à frente da lente, o excesso de movimentos potencializa a veracidade. São pescadores indo com a rede para o mar, depois puxando a embarcação para a água e ganhando as ondas do mar bravio. O crítico literário e ex- militante do Partido Socialista Brasileiro, Antônio Cândido Mello e Souza (1918-2017) afirma que Marighella encarnou o seu povo biológica, moral e socialmente. Já que o guerrilheiro era pobre e nunca abandonou a sua classe. “Como membro da sua classe, é que ele imaginou para o seu país uma situação em que a miséria acabasse, em que a justiça social se instalasse.”, defendeu. Pela narrativa, ficamos sabendo que Marighella abraçou a causa do comunismo quando ainda era estudante de Engenharia Civil da Escola Politécnica da Bahia. Porém, ele abandou o curso antes de conclui-lo, desistindo da carreira. Segundo Marighella, o profundo sentimento de revolta diante da injustiça não o permitia buscar um diploma universitário em um país em que as crianças precisam trabalhar para comer. Enquanto a personagem narra sua revolta e fome por justiça social, imagens em preto e branco surgem na tela: são construções pobres e abandonadas, crianças descalças jogando bola na rua de terra, homens e criança trabalhando nas ruas.
Em seu depoimento, Clara Charf, companheira de Marighella e ex-militante do PCB e da ALN, lembra que os integralistas em 1935, na Bahia, estavam felizes porque acreditavam que o líder nazista austríaco, Adolf Hitler (1889-1945), dominaria o mundo. Segundo ela, os integralistas reuniram-se na Bahia. A narrativa de Charf é ilustrada por cenas da época em que uma multidão faz a tradicional saudação nazista ao som de uma marcha em que a letra diz: “Avantes, avantes, nosso Brasil vai despertar...”. Na época, Marighella já havia despertado para as lutas libertárias. Charf lembra que seu companheiro convidou um grupo de jovens para desenhar, em cartolinas, a foice e o martelo. De madrugada, enquanto Salvador dormia, os jovens colocar pregaram os símbolos comunistas nos postes da cidade. “No dia seguinte, quando o povo despertou, e a reação também, olhou e começaram a dizer: ‘O comunista chegou na Bahia”, diz Charf, rindo. Segundo, Marighela, desde jovem, era muito audacioso e era muito do visual. “Como fazer as coisas que as pessoas olhassem e vissem, e se dessem conta, né?” Enquanto Charf comenta, ao som de berimbau, surge uma fotografia da época em que uma parede está pintada com as frases, entre outras: “Morra Integralismo”, “Viva o Partido Comunista” e “Abaixo o Integralismo!”.
O historiador Lincoln Secco (1969-atual) enfatiza o que é ser comunista entre 1930 e 1964 no Brasil. “Ser comunista não é só ser de esquerda. Ser comunista é aderir a uma causa, né? Profunda! Eu diria que ser comunista, em qualquer canto do mundo, era participar do exército mundial da revolução. Mesmo que esse exército fosse frágil no Brasil, ele era o exército que representava a revolução mundial, que havia triunfado num país muito importante, que era a Rússia, né? Que se tornara a União Soviética. Ser comunista tinha um peso ontológico, né? Era doar a vida por uma causa.”, ressalta Secco. Enquanto o historiador comenta, surgem imagens da Revolução Russa, com homens, aos gritos, empunhando armas e foices, enquanto outros derrubam uma estátua de um czar, que representava o antigo regime russo. Em seguida, aparece a imagem da carteirinha de número 20, de Marighella, como membro do Comitê Nacional do Partido Comunista do Brasil, com sua fotografia. Entre as informações no documento, a idade de 34 anos e a profissão de professor. Enquanto aparecem as imagens do documento de Marighella, de uma matéria do jornal “A Classe Operária” e de manifestos impressos não só na Bahia, mas também em outros estados, como Rio de Janeiro, Pernambuco e Minas Gerais, surge a voz de Mariguella, dizendo: “O caráter da revolução é o da luta pela independência nacional, a emancipação das oligarquias e o caminho socialista para seu pleno desenvolvimento econômico e social. Os revolucionários brasileiros, atuando no fundo do país, na montanha, na selva, na planície ou na caatinga, devem contar como apoio dos revolucionários das cidades.” Para Risério, Marighela é a expressão mulata do comunismo baiano da década de 1930. “Que é um comunismo muito engraçado. Porque não é marxista, nem conheciam Marx direito, mas era feito de mulatos, como Jorge Amado, Edson Carneiro, Aydano do Couto Ferraz. Então, você tinha aquele bando de meninos, seduzidos pela utopia comunista e, ao mesmo tempo, não se desgarravam da vivência diária da Bahia e do Recôncavo.”, afirma. Durante o depoimento, são mostradas imagens de Salvador da época, juntamente com imagens contemporâneas de jovens jogando futebol na areia da praia.
De acordo com Mello e Souza, antes de 1930, nenhum intelectual brasileiro se achava na obrigação de tomar uma atitude política. Entre os intelectuais nacionais, Porém, a situação mudou após 1930. “Por causa do comunismo e do fascismo, todos intelectuais passaram a sentir a necessidade de opção política. Aí, os intelectuais passaram a ser ou fascistas, ou de direito, ou de esquerda, ou liberais. Mas não puderam ficar mais omissos.”, diz. No final da fala do crítico literário, aparecem imagens de jornais impressos com manchetes e a fotografia do presidente da República, da época, Getúlio Dornelles Vargas (1883 – 1954), de população nas ruas de uma cidade grande e de casais dançando em salões de baile. De repente, as imagens do passado são substituídas por imagens contemporâneas de pescadores no mar de Salvador e de ondas invadindo a areia de uma praia. O presente toma o lugar do passado. Então, inicia-se, novamente, a narrativa das memórias da sobrinha de Marighella. Ela explora o lado carinhoso do tio, que chegava sempre à notinha e partia, novamente, antes do amanhecer. Segundo ela, o tio enfeitava a mesa do café da manhã com flores do quintal e desaparecia antes que alguém da casa levantasse. Ela lembra que, quando ganhou a sua primeira caderneta de telefones, pediu ao tio que escrevesse o endereço dele. A resposta dele veio em forma de canção, que diz: “Eu não tenho onde morar, é por isso que em moro na areia, ...”. A música divide a tela com imagens da praia, da areia e do mar. Ao fundo da praia, vê-se o Pão de Açúcar.
Na tela, surgem os dizeres: “Segunda Pista – Prisão, Tortura e Liberdade”. Inicia-se a narrativa do poema de Marighella “O Pão de Açúcar”, de 1965. Nele, o autor critica a famosa formação rochosa, chamando-a de “um doce mentira”. E continua: “Bom seria que fosses, mesmo, um pão enormíssimo, um pão de verdade, que daria, talvez, para alimentar, muito tempo, os famintos que rolam aí pela cidade.” Em seguida, surgem imagens da cidade do Rio de Janeiro da época, com o famoso dirigível Zepellin sobrevoando a Baía de Guanabara. Mostrando um exemplar do jornal carioca “Gazeta de Notícias” da época, que traz a manchete “Reprimindo as Investidas Tenebrosas de Moscou”, Carlos Augusto, filho de Marighella conta que o pai dele saiu da Bahia e foi para o Rio com o propósito de reorganizar o Partido Comunista, que tinha sido duramente reprimido, em decorrência do levante de 1935. No Rio, Marighella foi preso. E o tal jornal, que era muito lido naquela época, registra como os comunistas eram vistos e tratados na época. “A manchete principal fala que três cavalheiros, afetados de comunismo, acabam de ser afastados do público pelas pessoas que zelam pela boa profilaxia social.”, comenta Carlos Augusto.
Em seguida, em imagens preto e branco, são intercaladas cenas de violência. São imagens de tortura, que exploram o sofrimento das vítimas e a selvageria dos torturadores. Enquanto as cenas inundam a tela de dor, volta a narrativa de Marighella sobre sua experiência no presídios do Distrito Federal, de Fernando de Noronha, São Paulo e Ilha Grande. Foram mais de sete anos de prisão e muito sofrimento. Enquanto ocorre a narrativa, surge a imagem da fotografia de Marighella quando fichado na cadeia. “As torturas, a que fui submetido, foram as seguintes: depois de murros, pontapés e outros golpes que me aplicaram, eu fui queimado por todo o corpo com pontas de cigarros que os próprios investigadores estavam fumando. Além disso, o investigador Galvão tirou o seu alfinete de gravata, que enfiou debaixo de minhas unhas, deixando-as em sangue.”, lembra. Durante a narrativa de Marighella, são mostradas imagens da antiga sede da Polícia Central no Rio de Janeiro. Tanto do ambiente interno, como da fachada do prédio, na qual se destaca a imagem da balança da Justiça. Charf conta que Marighella ficou preso na Ilha de Fernando de Noronha durante o Estado Novo. Na ocasião, ele trabalhou como ajudante de cozinheiro. Segundo ela, como ele era preocupado com o tempo, ele criou várias atividades, como educacionais e teatrais. Havia aula de línguas. Charf conta que quem soubesse uma língua tinha que ensinar os outros. “E ele aprendeu inglês. Nas horas vagas, quer dizer, quando terminava todo aquele batente ali, de noite, o pessoal ia dormir, né, e ele ficava estudando.”, relembra a companheira. Durante a fala de Charf, passam imagens de fotografias do guerrilheiro na prisão de Fernando de Noronha, como também de grupos de prisioneiros, com trajes normais, de banho e com uniformes de time de futebol. A sequência de imagens do passado é quebrada por imagens atuais de portão de ferro, estrutura do mesmo material corroída pelo tempo e a imagem da palavra “Liberdade”, datilografada em folha de papel. Inicia-se uma nova narração de Marighela, ao som do ruído causado pelos toques sobre o teclado de uma antiga máquina de escrever. Lentamente, surgem as demais palavras do poema “Liberdade”, de Marighella, escrito em 1939. Entre as frases narradas, destaca-se: “E que eu, por ti, se torturado for, possa feliz, indiferente à dor, morrer sorrindo, a murmurar teu nome.”
Imagens de marcha em grande evento nazista, de Hitler discursando em 3 de outubro de 1941, da suástica nazista, de cartaz anunciando a guerra, de soldados nazistas marchando, de bombardeios, batalhas terrestres, de Stalin, tudo ao som de hino nazista, são enriquecidas pelo depoimento do engenheiro e ex-militante do PCB, Luis Contreras. Ele fala do crescimento da União Soviética em 1945. A luta e a vitória dos russos fortaleceram a ideia da vitória do socialismo e da União Soviética. “Aqui no Brasil, a ditadura, com o término da Guerra, começou a se enfraquecer. E todos aqueles presos políticos, com a anistia, eles foram soltos. Luis Carlos Prestes, Marighella, Agildo e todos que estavam presos, né? Com a democracia, tivemos a volta da legalidade do Partido Comunista. Parece que já tinha toda uma tradição histórica. Era uma figura lendária, legendária. Quando ele vem, aparece assim, aquilo foi uma coisa fenomenal, mesmo! Os comícios de Luiz Carlos Prestes (1898-1990) foram comícios extraordinários. Não só em São Paulo, no Pacaembu, no Rio de Janeiro, em São Januário. A gente tinha uma visão que a luta pelo socialismo, ou pelo comunismo, estava muito próxima (risos). Era, talvez, questão de anos, ou de dias, ou de anos, que o mundo todo ia, não é, se socializar.”, lembra. Durante o depoimento de Contreras, também são veiculadas imagens de grande público em comício, de Marighela e ex-presos políticos, como Prestes e outros, de manifestações populares com cartazes onde se lê “Vitória do Povo”, além de bandeiras do Brasil e do Estado de São Paulo. Guedes lembra que esteve, novamente, com Marighela na campanha pela Constituinte de 1946, quando ele foi candidato a deputado pela Bahia. Participaram juntos de comícios em portas de fábricas, bailes populares e Marighella conseguiu ser eleito: um dos representantes dos comunistas naquela Constituinte. Durante a fala de Guedes, são mostras imagens de Marighela conversando com populares e cartazes nas cores vermelho, branco e preto, com os dizeres: “Agora Temos Candidatos! Por um Governo Democrata Popular. F.D.L.N. Os Candidatos de Prestes! Janeiro 19 Domingo – Vote no PCB. Para a Vitória da Democracia.” Além das fotografias dos vários candidatos em torno da foto maior de Prestes. Como também outras imagens dos candidatos e de Marighella. Tudo ao som da marchinha que diz: “Deixa passar o trabalhador. Deixa o trabalhador passar ... Oi, abre alas que eu quero passar. Sou marmiteiro e não posso me atrasar.” Contreras lembra que as grandes pautas eram a reforma agrária e a oposição ao imperialismo. Segundo ele, Marighella era um grande orador. “O grande problema de Marighela era ele terminar o comício. Precisava de alguém puxar... Porque senão, ele não parava. Era uma verdadeira metralhadora.”, afirma Contreras.
Na tela, surgem imagens de documentos do Partido Comunista da época, santinhos de candidatos comunistas, materiais informativos, propagandas do Partido e anúncios de comício. De repente, inicia-se a seguinte narrativa de Marighella: “Como representantes do povo e constituintes de 1946, devemos procurar, exatamente, a realidade. O povo brasileiro não casa com tanta complicação, com tantos papéis por este vasto interior. Para trinta milhões de analfabetos, o casamento indissolúvel é uma balela, é apenas um dogma religioso. Compreendemos o tempo em que vivemos. Não existirá democracia, em hipótese nenhuma, sem a liberdade de culto, sem o ensino leigo e sem o divórcio.”, ressalta Marighella. Já seu filho volta a lembrar como seu pai conheceu a sua mãe, Elza Santos Sé, no Rio de Janeiro. Segundo Carlos August, eles viveram como se fossem casados, quando Marighella se elegeu e durante o tempo em que foi deputado. Gorender conta que, entre 1945 e 1947, foi o único período em que o Partido Comunista foi considerado legal. “Mas em 47, o presidente, que era o general Dutra, casou a legalidade do Partido Comunista.”, lembra. O filho de Marighella explica que, com a cassação do registro do Partido, sua mãe volta para a Bahia. “Ela reconstrói a vida dela de outra maneira. Inclusive porque meu pai, realmente, passou na clandestinidade um período relativamente grande, né? Então, exatamente, quando eu nasci em maio, meu pai vai pra clandestinidade. Ele evapora-se e eu só vou conhecê-lo, inclusive, já aos sete anos de idade. E assim, eu passei por esse constrangimento de não ter pai durante alguns anos. E isso foi marcante porque, na escola, eu era o único menino que não tinha uma certidão de nascimento.”, lembra.
Na tela toda em preto, uma linha branca é traçada: traço contínuo e também pontilhado. O movimento da linha é acompanhado pela fala de Marighela. Nela, ele refere-se ao espelho, a ponto, a raio refletido. É a volta do seu poema sobre o espelho. Em seguida, inicia-se o depoimento da advogada, e cunhada de Marighella, Iara Gouveia, Ela conta como Charf, que era comissária de bordo, conheceu Marighella. Enquanto vêm à tona as memórias de uma história de amor, são mostradas fotografias de Charf bem jovem. Gouveia lembra que, quando o padrasto dela, Gdal Charf, o pai de Clara, soube que a filha estava namorando com Marighela, teve um grande susto devido ao namorado ser comunista. Clara Charf lembra muito bem a reação de seu pai que não aceitou o namoro por Marighella ser cristão, comunista e preto. O pai chegou a cortar toda a roupa da filha para que ela não pudesse sair de casa e se reencontrar com Marighella. Este, no Recife, com a ajuda da amiga Adalgisa Cavalcanti, a primeira deputada do Partido Comunista no Brasil, criaram um vestido que poderia caber em Charf. Cavalcanti costurou o vestido e o levou para Charf. Esta colocou o vestido e, à noite, fugiu com Marighella. Foi uma grande história de amor. Para Risério, Marighella era bem humorado, divertido e, enquanto estava na clandestinidade, saía às ruas vestido de mulher para poder brincar no Carnaval sem ser reconhecido e preso. Segundo o filho de Marighella, em um dos Carnavais, seu pai apareceu fantasiado de mula manca. Com esses depoimentos, imagens antigas de Carnaval invadem a tela ao som de marchinha carnavalesca da época, quando o Carnaval carioca era, extremamente, democrático e popular. Para Gouveia, seu cunhado era muito sedutor e tinha “xurupito”. Este termo, na época do teatro de revista, era usado para expressar que um homem era bonito e atraente. “Então, Marighella tinha um xurupito.”, afirma Gouveia.
Com imagens contemporâneas de um portão aberto, de uma casa envelhecida pelo tempo, a narrativa da sobrinha de Marighella prossegue. Segundo ela, quando o tio estava em casa de noite, ele punha os sobrinhos para dormir. “Pegava no colo, levava pro quarto e ficava ali conversando e contando histórias até a gente dormir. Às vezes, ele sumia por longos períodos. Quando aparecia de novo, dizia que tinha ido pra África pegar cobras e outras peripécias assim.”, lembra Ferraz. Para que a fantasia se tornasse mais real, Marighela dava detalhes de como pegava as cobras e as levava para produzir vacinas no Instituto Butantã. “Pra gente, ele era um heroi.”, acrescenta. Durante a narrativa, aparece uma fotografia em que a família está reunida: a sobrinha, seus pais e irmãos, a tia Charf e o tio Marighella.
Em seguida, surgem na tela os dizeres: “Terceira Pista- Clandestinidade”. O jornalista e ex-militante do PCB, João Falcão, conta que o Partido se jogou em uma clandestinidade terrível e, segundo ele, até um pouco exagerada. Ele conta que, depois de servir ao Prestes, tonou-se chofer de Marighella. Lembra que, um dia, em que o trânsito estava muito ruim, ele atrasou-se “muito pouco” para pegar Marighella e, por isso, foi duramente reprimido. Depois de muito pensar, enquanto dirigia, Falcão disse a Marighella: “Olha, companheiro! Você é dirigente do Partido, e eu sou o seu chofer. Mas não sou seu empregado. Sou um companheiro seu. De modo que eu não aceito esse tratamento que você me deu.”, lembra Falcão. Pouco depois, Marighella pedia desculpas ao companheiro.
Apesar de coloridas, as imagens são da cidade de São Paulo são antigas. Charf lembra que, como Marighella não podia mais permanecer no Rio, o Partido o enviou para São Paulo, onde se tornou o dirigente político na capital paulista. Então, ele passou a ter contatos com os movimentos camponês, operário, de mulheres. Enfim, com todos os movimentos sociais. Mas ela e ele precisavam viver clandestinamente. Ninguém poderia conhecer o endereço deles e nem os nomes verdadeiros. “Eu me chamava ‘Vera’ naquela época, né? E o Marighella, ninguém via. Ele saía muito cedo e chegava de noite. Procurado pela polícia, né? Os comunistas perseguidos.”, diz Charf. Era tempo da Guerra Fria. Na tela, são divulgadas imagens da época, referentes à propaganda norte-americana contra os soviéticos. Surgem animações relacionadas à Cortina de Ferro, à destruição da Estátua da Liberdade e ao poder soviético, que aniquila seus inimigos. Contreras lembra que, na época de Stalin, todos eram stalinistas. “Porque achava que ele era o continuador de Lenin.”, afirma o engenheiro. Por sua vez, Charf conta que, no Partido, havia cursos sobre marxismo. Quase todos eram cópias, em português, dos cursos soviéticos. E o Marighella era o dirigente de uma dessas escolas.”, lembra. Mello e Souza conta que foi muito atacado pela revista “Fundamentos”, que era de Marighella. “Nós éramos do Partido Socialista Brasileiro... Eles nos chamavam de fascistas porque naquele tempo, diferente de hoje, o trotskismo era um xingo. Qualquer pessoa que discordasse da linha do Partido era trotskista. Era sinônimo, mais ou menos, de ladrão, assassino.”, afirma o crítico literário. Secco informa que, quando o Jorge Amado (1912-2001) escreve a obra “Os Subterrâneos da Liberdade”, o autor situa o Marighella como o heroi do romance. “Aliás, o nome do heroi do romance é Carlos: uma evidente referência ao Marighella.”, diz.
Na tela, surgem imagens de materiais publicitários da época, com os dizeres: “Pelo Brasil Comunista! Pela Revolução Internacional!”; “Paz – Queremos Viver”; “1.o. Congresso Nacional Anti-Guerreiro – Abaixo as Guerras Imperialistas!”; “Pela Interdição da Bomba Atômica – Movimento Nacional pela Proibição das Armas Atômicas”; “Não! Não Queremos Guerra – Congresso Nacional pela Paz”; “Os Soldados Nossos Filhos Não Irão para a Coréia” – Federação de Mulheres do Brasil”. Charf conta que, um dia, Marighella chegou em casa e disse: “Clara, eu preciso estudar inglês.” Questionado sobre o motivo, ele disse que iria viajar. “Eu não perguntei pra onde. Não podia perguntar. Porque era clandestino, né? Você não sabia onde é que o cara ia, quanto tempo ele ia ficar.”, diz Charf. Segundo ela, quando o companheiro voltou, ela estava presa. Tinha sido presa em Campinas, com livros. “Quando a gente se reencontrou, que ele chegou, eu estava presa, e depois saí da cadeia, quando a gente se viu, a primeira coisa que eu perguntei pra ele disse assim: ‘Escuta, você pode dizer onde é que você esteve?’” (risos). Ele disse que tinha estado na China e se arranjou com o inglês. Segundo ele, a experiência foi ótima porque nem ele e nem os chineses souberam usar o inglês.
Com imagens antigas de Moscou, Charf conta que, uma vez, Marighella foi para a União Soviética. Na China, ele ficou doente. Como ele não sabia se comunicar com a enfermeira chinesa, ele se comunicava por meio de desenhos. Na tela, surgem imagens em preto e branco, de jovens chinesas da época, empunhando flores. Charf lembra que Marighella pediu para a enfermeira escrever a palavra em chinês, referente a cada desenho. Segundo ela, ele acabou fazendo um belo dicionário, que a polícia levou quando invadiu o apartamento deles no Rio. “Morro de pena não ter esse dicionário!”, reclama Charf. Guedes conta que, em uma reunião, quando souberam das denúncias contra o stalinismo, Marighela se emocionou muito porque se sentiu enganado pelo regime stalinista. Na tela, cenas antigas das manifestações contra o stalinismo no Leste Europeu. Pessoas destroem monumentos comunistas, queimam bandeiras e livros. Contreras lembra que Marighella chorou com a situação. Até porque Stalin tinha sido considerado como um pai, como um sábio, um homem que não errava. Guedes lembra que foi o início da ruptura de Marighella com o Partido Comunista. A tela volta a ficar escura. Em branco, riscas e traçados. A voz segue com o poema sobre o espelho, com seus ângulos, triângulos, retângulos e catetos. Charf lembra que ficaram clandestinos até o período entre 1953 e 1954. Só depois é que puderam viver legalmente. Ela lembra que o presidente Juscelino Kubitschek (1902 – 1976) não legalizou o Partido Comunista naquela época. Porém, ele deu mais liberdade para que os comunistas pudessem se organizar. Imagens de Juscelino surgem na tela. Volta o depoimento da sobrinha de Marighella. Ela conta que, uma vez, o tio ficou muito tempo na casa dela. Diariamente, ele ficava horas deitado no chão do quintal, ao sol, sem camisa, exercitando-se com tijolos pesados. “Era muito impressionante ver aquele homem enorme fazendo força e suando muito. Só bem depois, eu vim saber que ele estava ali pra se recuperar dos tiros que tinha levado no cinema em 64.”, lembra a sobrinha. Com o seu depoimento, aparecem as fotos dela em diferentes fases de sua infância. “As marcas do tiros, certamente, estavam ali. Mas eu nunca vi.”, afirma.
Na tela, surgem as palavras: “Quarta Pista – Terra em Transe”. O filho de Marighela conta que o primeiro encontro com o pai foi animado. Segundo Carlos Augusto, o pai o pegou no colo. Parecia que ele nunca tinha se separado do pai. Aparecem fotos de Marighela sorrindo, junto com Charf. O filho lembra que o pai alugou uma casa no Meyer, no Rio de Janeiro. Por volta de 1961, ele, o pai e Charf foram morar em um apartamento pequeno. Havia uma estante com muitas prateleiras e milhares de livros. “Era uma coisa muito espartana. Embora nós vivêssemos bem.”, afirma. Entre as imagens que surgem, está a da obra “Dom Quixote de La Mancha”, de Miguel de Cervantes, com a seguinte dedicatória: “Ao Carlinhos com o afeto do papai. Rio, 25 12. 960”. Carlos lembra que, na casa deles, havia um gravador, uma coisa muito rara na época, que o pai trouxe de um encontro internacional ocorrido em Moscou. Com o instrumento, o pai começou a gravar uma novela aos sábados e domingos. Ele fazia, inclusive, as vozes das personagens femininas. Quando ouvia o que tinha gravado, Marighella pedia a opinião do filho sobre o material.
Para Carlos Augusto, se o comunismo não estivesse em primeiro plano, o pai, provavelmente, trabalharia com as artes. Marighella também gostava de música. Na tela, imagem em preto e branco do “Show Opinião”, em que a cantora Maria Bethânia (1946 – atual), bem jovem, interpreta “Carcará”, de autoria do cantor e compositor João do Vale (1934 – 1996). Na tela, a imagem de “O Grito da Terra”: homens, mulheres e crianças humildes. Alguns estão descalços. São retirantes, com suas enxadas e foices. Em seguida, temos uma cena do filme “Na Selva das cidades”. Segundo o odontologista e ex-militante da ALN, Carlos Fayal, aquele momento era de grandes transformações, como o Cinema Novo, o Teatro Novo e todas as reformas políticas necessárias, que estavam sendo preconizadas antes do Golpe de 1964. “Então, essas utopias eram coisas não tão utópicas até porque nós tínhamos a Revolução Cubana, né, que tinha sido vitoriosa. Nós tínhamos lá o Vietnã resistindo.”, afirma. Na tela, imagens da Revolução Cubana e de manifestações no Vietnã. Volta a voz de Marighella, dizendo: “Nossa tarefa é criar dois, três, muitos Vietnãs. Somos duzentos e cinquenta milhões de latino-americanos, que aceitamos o desafio do subdesenvolvimento e nos propomos, unidos, a vencê-lo.” Fayal comenta que a grande utopia era o homem novo para se criar, na verdade, a Humanidade. “Porque nós, os seres humanos, ainda estávamos muito aquém, né?”, afirma. Enquanto Fayal se expressa, surgem imagens em preto e branco, com o dizeres: “Fora os Americanos – Viva Cuba” e “Viva Cuba – Viva a Revolução”. Ao som de “Bachianas Brasileiras”, de Villa-Lobos, aparem imagem de filme sobre Lampião. Mello e Souza lembra que, em 1964, “essa onda estava subindo”. As ligas camponesas estavam deixando os usineiros apavorados. “O proletariado urbano, depois de ser, muito tempo, tutelado pelo Ministério do Trabalho, estava ficando muito mais consciente político”, afirma o crítico literário. O ferroviário e ex-militante do PCB e da ALN, Rafael Martinelli, afirma que: “A gente parava o Brasil! ... Você tinha que tomar posições.” Na tela, imagens do início dos anos de 1960, de movimentos grevistas e cartazes, como “Sindicato dos Empregados no Comércio de Niterói - Chega de Exploração”, “Gráficos em Greve”, “Estamos em Greve”, “O Sesi e o Senai estão em Greve”, “Não Mendigamos – Temos Direito!” e muitos outros. Também aparecem imagens de uma multidão de trabalhadores apinhados em vagões de trem.
O filho de Marighella lembra que o Partido Comunista, mesmo clandestino, tinha, efetivamente, uma grande presença na vida política brasileira. Em seguida, surgem imagens do presidente João Goulart (1918-1976), dos políticos Leonel Brizola (1922-2004) e Miguel Arraes (1915-2005), do arcebispo Dom Hélder Câmara (1909-1999), além de outros. O jornalista e ex-militante do PCB e da ALN, José Luis Del Roio, lembra que foi a um comício no Rio de Janeiro, com, no mínimo, cem mil pessoas. Em seguida, ele e um grupo de jovens foram para a sede do comitê central. Na ocasião, Marighella disse para ter cuidado porque, provavelmente, o Golpe era inevitável e eles não iriam resistir. O que desagradou muito os jovens. “Nós queríamos ouvir, exatamente, o oposto.”, disse Del Roio. Surgem imagens de Goulart, descendo do avião e cumprimentando, exatamente, o General Humberto de Alencar Castello Branco (1897-1967). Além de outras imagens de Goulart com militares. Segundo o filho de Marighella, dizia-se que o governo de Goulart possuía um esquema para impedir qualquer tentativa de Golpe por parte das Forças Armadas. “E meu pai, pelo contrário, acreditava que não. Que João Goulart, ele não tinha domínio, exatamente, sobre isso. E que esse Golpe era iminente. Ele percebia isso pelo tom dos discursos, E aí, o que é que ele fez? Ele me matriculou, em 1964, no internato da escola. E me disse: Olha, você pode vir pra casa sempre que você quiser. Mas se acontecer alguma coisa, você tem um lugar onde você vai comer, onde você vai dormir...”, lembra Carlos.
Imagens de tanques nas ruas enchem a tela. Charf conta que, quando veio o Golpe, parecia que Marighella estava prevendo. “Ele disse, então: é melhor a gente ir embora porque eles vão invadir isso aqui. Aí, a gente pegou uma maleta, enfiou umas roupas dentro, pouca coisa, né? E não podia levar nada, não podia levar os livros. Tinha que sair daquele jeito.”, lembra. Ela conta que saíram do apartamento de madrugada. E que desceram pelas escadas, conforme Marighella recomendou. “Acontece que a gente desceu pela escada, e a política entrou pelo elevador.”, afirma. Aparecem cenas históricas do dia 1 de abril de 1964. Barulho de sirene de carro de polícia e tropas nas ruas. São barricadas, protestos, incêndio na sede da União Nacional dos Estudantes (UNE) e depredação. Martinelli lembra que foram à casa do Prestes. “E, infelizmente, tivemos uma resposta, né, muito ... a gente saiu liquidado.”, conclui Martinelli emocionado. Ficaram sabendo que não teriam resistência. Charf conta que Marighella tinha combinado com a zeladora do prédio para pegar toda a roupa, já que saíram do apartamento sem nada. Ele iria se encontrar com ela no cinema. Mas, quando ele percebeu que estava sendo seguido, Marighella entrou rapidamente no cinema, durante uma sessão de matinê. Logo depois, as luzes do cinema acenderam-se e a polícia atirou contra ele. Era 9 de maio de 1964. Ao som de um barulho de tiro, surgem imagens de Marighella sendo contido, pessoas saindo do cinema às pressas, o atirado já na ambulância, algemado. Coincidentemente, no local, havia um jornalista do jornal “Correio da Manhã”, com uma máquina fotográfica. A fotografia foi importante para elucidar o acontecido. Marighella foi preso novamente, sem direito a habeas corpus. “Até que o Sobral Pinto, que foi aquele grande advogado, né, acabou conseguindo o habeas corpus para ele. Mas ele mal se recuperou, ele resolveu entrar em ação de novo, né?”, lembra Charf, apesar dos companheiros pedirem para ele não voltar às atividades porque poderiam pegá-lo novamente. “Mas, não teve jeito.”, afirma a companheira. Ele já tinha optado pela resistência armada, acreditava que não havia outro caminho e não aceitava aquela situação de repressão. Surge a imagem do documento da polícia, em que Marighella está como incurso na Lei de Segurança Nacional.
Aparecem cartazes sobre a Conferência Tricontinental. Charf lembra que a Revolução Cubana, na época, realizava o encontro da Olas (Organização Latino-Americana de Solidariedade). Tinham convidado o Partido para mandar representantes para lá. Mas, o Partido preferiu não enviar ninguém porque não coincidia com as opiniões políticas de Cuba. Na tela, o revolucionário cubano Fidel Castro (1926-2016) discursando e o evento comunista com uma grande imagem do revolucionário argentino Che Guevara (1928-1967). Mas, segundo Charf, Marighella aceitou o convite e foi para o evento, de maneira clandestina. Quando o Partido no Brasil soube que, em Cuba, Marighella havia feito declarações a favor da posição cubana, o Partido decidiu expulsá-lo. Mas antes de ser expulso, Marighella escreveu uma carta, explicando o porquê de ele estar saindo do Partido. Na carta, ele diz: “Havana, 17 de agosto de 1967. Aos camaradas do Comitê Central do PCB. Daqui de Havana, onde me encontro, decidi romper com o Comitê Central do PCB e, é nesse sentido, que estou escrevendo a vocês. Desejo tornar público que minha disposição é lutar, revolucionariamente, junto com as massas. E jamais ficar à espera das regras do jogo político, burocrático e convencional, que impera na liderança. Em minha condição de comunista, à qual jamais renunciarei, e que não pode ser dada e nem retirada pelo Comitê Central, prosseguirei pelo caminho da luta armada, reafirmando minha atitude revolucionária e rompendo, em definitivo, com vocês. Sem mais, com saudações comunistas, Carlos Marighella.” Durante a leitura da carta, na própria voz de Marighella, surgem imagens de obras de autoria do revolucionário, publicadas em espanhol, francês e inglês. De repente, surge uma imagem a cores, retratando uma guerrilheira armada que, em uma rua, foge de uma perua. Porém, no veículo, estão outros guerrilheiros que a salvam, levando-a com eles, A cena é protagonizada pela atriz Dina Sfat (1938-1989).
Na tela, surgem os dizeres: “Quinta Pista ´Guerrilha”, ao som da voz da sobrinha, que narra: “Depois que o meu pai contou o segredo sobre o tio Carlos, passei a vibrar com cada ação dos guerrilheiros e a torcer por eles. No dia da tomada da Rádio Nacional, fiquei feliz, comemorando uma vitória. Mas, à noite, todos os ruídos me amedrontavam. Eu me deitava, olhando pro teto e pensava: e se eu for torturada? Conto ou não conto? Eu só tinha dez anos. E nunca mais eu vi o tio Carlos.” Martinelli lembra que a repressão começou a aumentar. Tudo é motivo para a prisão. “A Ditadura não dava folga.”, diz. A juventude não podia usar um brinco, cabelo comprido, não podia se reunir. Na tela, imagens da época mostram manifestantes correndo de militares que chegam a cavalo. No país, não havia liberdade de crítica, de opinião e de organização. Só existiam dois partidos políticos legalizados: a Arena (Aliança Renovadora Nacional) e MDB (Movimento Democrático Brasileiro). Segundo Marighella, ambos eram partidos consentidos pela Ditadura. “Com o objetivo de fazer crer a opinião pública estrangeira que, no Brasil, há liberdade política, A verdade é que não há.”, critica. Para o guerrilheiro, desde o Golpe de abril de 1964, o Brasil foi transformado em uma base de operações dos Estados Unidos. As maiores empresas norte-americanas, como a General Motors, a General Eletric, Firestone e outras, e bancos estrangeiros detêm o controle estratégico da produção nacional e agrícola do país. A narrativa é acompanhada de imagens dos nomes das empresas estrangeiras em neon, iluminando a cidade de noite. Fayal lembra que, de repente, Marighela vem com as ideias da descentralização e ações de vanguarda. Assim, começaram a se interessar mais pelo revolucionário.
O frei Oswaldo Resende, frade dominicano e ex-militante da ALN, diz: “Marighella era um homem que ganhava qualquer um, que conversasse com ele”, afirma. O frei destaca a simplicidade do guerrilheiro, a clareza de suas ideias e sua paixão. Segundo Resende, ele inspirava, imediatamente, a confiança dos jovens. Surgem cenas de protestos de estudantes da época, que denunciavam a crise das universidades e criticavam os currículos, as péssimas condições de ensino e baixa qualidade dos professores. Para a médica e ex-militante do PCB e da ALN, Guiomar Silva Lopes, é difícil, com o olhar de hoje, entender o que poderia ser uma decisão como aquela. “Eu sabia que eu ia enfrentar momentos difíceis, né? Era um rompimento com a família, rompimento com a escola, enfim, com os amigos. Mas, ao mesmo tempo, era um vulcão dentro, né, me impulsionando pra que ... porque eu sabia que eu tinha que fazer esse tipo de atividade: ir à luta, né?”, afirma. Segundo Risério, Marighella era um heroi, um mito. “Não chegava a ser Guevara. Guevara foi o grande mito. Mas, no Brasil, a gente tinha Marighella.”, diz. De acordo com o texto de Marighella, de 1968, é dito: “Com a vitória da Revolução, executaremos as seguintes medidas populares: aboliremos os privilégios e a censura; estabeleceremos a liberdade de criação e a liberdade religiosa; libertaremos todos os presos políticos e eliminaremos a polícia política; tornaremos efetivo o monopólio estatal das finanças, do comércio exterior, das riquezas minerais e dos serviços fundamentais; confiscaremos a propriedade latifundiária, garantindo títulos de propriedade aos agricultores que trabalhem a terra; eliminaremos a corrupção; serão garantidos empregos a todos os trabalhadores: homens e mulheres; reformaremos todo os sistema de educação; daremos expansão à pesquisa científica; retiraremos o Brasil da condição de satélite da política exterior norte-americana para que sejamos independentes.” Resende lembra de Marighella dizer que o processo seria longo. A primeira fase seria para a obtenção dos meios através do imposto compulsório da Revolução, que iram ser buscados nos bancos. “As ações urbanas eram apenas táticas. E, para isso, seria necessário criar grupos táticos armados que agiriam, sobretudo, nesse sentido.”, defende o frei. Para o advogado e ex-militante do PCB e da ALN, Aton Fon Filho, Marighela não era só um homem que puxava gatilho. “Também puxou gatilho.”, lembra. Mas, segundo o advogado, ele também era um homem que teorizava a luta armada. Mas ele era, principalmente, um homem que teorizava a luta revolucionária. Lopes lembra da fase em que ocorreria a constituição da guerrilha rural. Esta, segundo a médica, daria a formação da coluna guerrilheira, que seria o embrião de um exército revolucionário, Para Resende, era relevante mostrar, deixar patente, que havia pessoas que não se conformavam com o regime ditatorial. Na tela, surgem imagens de matérias jornalísticas do jornal “O Guerrilheiro”. Segundo o advogado e ex-militante do PVB e da ALN, Takao Amano, Marighella criou a estrutura horizontal, como a dos anarquistas. “Você monta grupo de três, quatro, cinco. Somente um tem relação com o outro. E, no máximo, três. E vai indo essa cadeia.”, conta.
De repente, surge a voz de Marighella, dizendo, em 1967, o seguinte: “Quem tiver uma arma, quem souber atirar, pode unir-se a outro franco atirador brasileiro. Os pequenos grupos armados podem surgir das fábricas, das oficinas ou de quaisquer outros locais de trabalho. Podem surgir dos bairros, das ruas, dos conjuntos residenciais, das favelas, mocambos, malocas e alagados. Podem surgir dos colégios, das escolas, das universidades, das fazendas, das usinas, dos patrimônios, das colônias e concentrações agrícolas, ou dos pequenos povoados, bem como das cidades do interior, dos municípios e seus distritos e vilas. O Brasil é um país cercado das guerrilhas da Bolívia, da Colômbia, da Venezuela e não pode as tirar a libertar-se senão pela luta guerrilheira.”. Enquanto ouvimos a voz de Marighella, vemos imagens do filme “Batalha de Argel”, de 1966, em que um homem monta uma bomba, enquanto três mulheres aguardam para receber a arma. Amano afirma que a Revolução não tem modelos. “Nós não queremos modelo cubano, soviético, chinês.”, diz, Segundo o advogado, Marighella tinha muita simpatia pelo Vietnã. “Porque, realmente, era uma guerra popular, né? Ele lembra que, para Marighela, a Revolução brasileira deveria ser com samba, futebol, com um colorido moreno. O advogado e ex-militante do PCB e da ALN, Itobi Correia Jr., lembra que, no primeiro contato, Marighella expôs as estratégias de organização, as condições que deveriam atuar e que gostaria de alertar os que poderiam ter algumas ilusões ao entrar na luta armada. Uma luta em que, segundo Marighella, a probabilidade de acontecer o pior era muito grande. Marighella disse que não poderia prometer nadar. “A não ser, naquele instante, pra aqueles que estavam nessa fase inicial de combate, que era prisão, tortura e morte.”, afirma o advogado.
Aparecem cenas de militantes, emparedados, de costas, com braços sobre as cabeças, dominados pelos militares. Em outra cena, um militar, a cavalo, dispara por uma avenida, enquanto manifestantes correm e são agredidos por outros militares. Outros são colocados em camburões, enquanto um corpo aparece inerte no asfalto. “Você não sabe aonde você vai parar, né? Você começa fazendo pequenas coisas. Você pega um embrulho, leva lá, traz o embrulho de volta...”, diz a terapeuta e ex-militante da ALN, Eliane Toscano. Ela lembra que até ficou cuidando de caixas de dinamite, escondidas na garagem de sua casa. Mudando as posições das caixas com o explosivo para que não explodissem. “Mas, realmente, eu tinha um pouco de medo.”, lembra. Para Fayal, a grande virtude de Marighella era que ele não era um teórico. Ele fazia as coisas aconteceram. Correia Jr. contou que, após o assalto a uma agência bancária, uma testemunha disse que um dos assaltantes era muito parecido com o cantor e compositor Ciro Monteiro (1913-1973). “De fato, ele (Marighella) é” (risos). Lopes lembra que eles mesmos começaram a fazer as armas: metralhadora e granadas. Mas a metralhadora ainda era muito incipiente. Em uma ação, a médica conta que a tal metralhadora, bem no meio da ação, desmontou e caiu. (risada). Resende lembra que um jornalista escreveu sobre um assalto em que havia metralhadora. Imediatamente, o frei concluiu que eram membros do grupo armado que estavam naquele assalto. “Mas, eles não fizeram uma ligação imediata com o Marighella.”, diz o frei. Na tela, imagens de fotografias de manchete jornalística sobre assalto de grupo armado em agência bancária, de atentado a quartel, pessoas sendo identificadas nas ruas. Em uma entrevista, o General Sílvio Corrêa de Andrade informa que os casos estavam sendo investigados isoladamente, citando os vários atentados ocorridos. Correia Jr. Lembra que houve uma prisão e, pela primeira vez, o fato, como os demais eventos, foi associado a Marighella. Na capa da revista “Veja”, é publicada a foto de Marighela com os dizeres: “Procura-se Marighella”, ao lado de acusações contra o revolucionário. Rindo, Charf lembra que Marighella disse que havia parado em uma banca de jornal, onde havia um retrato dele. Quando uma senhora se aproximou para comprar jornal ou revista, olhou a foto de Marighella e disse ao jornaleiro: “Se eu encontrasse esse homem, eu guardava ele na minha casa.”, diz Charf, rindo. Segundo ela, Marighella ficou muito emocionado com a demonstração da senhora desconhecida. Na tela, surgem imagens de militares parando transeuntes e motoristas, pedindo seus documentos.
A voz da sobrinha de Marighela volta, dizendo que, por muitos anos, ela tentou fazer esse filme, reunindo documentos, fotos, pistas. Segundo ela, restou pouca coisa do tio, espalhada por aí. “Quando, finalmente, comecei a produção, tia Clara me chamou, me entregou uma maleta preta de plástico e disse: ‘Era do Marighella. Alguém guardou por todos esses anos.’.” Dentro, anotações, matérias de jornal, recortadas por ele, planos de ação, mapas, rotas de fuga: alguns indícios de seus movimentos.” Na tela, surgem as palavras: “Sexta Pista – Comandante em Chefe”. Amano lembra que o principal GTA ficava na cidade de São Paulo, com mais de 70 pessoas. Em algumas ações, eram usadas até 40 pessoas. “Além das ações, carros, fugas, proteção, né?”, diz o advogado. O publicitário e ex-militante da ALN, Manoel Cyrillo, conta que eles bloqueavam quarteirões de setores bancários da cidade, onde ocupavam tudo, como lojas, bares, tráfego. Eles dominavam até carros de polícia que estavam no local. Além de bloquearem todos os arredores do lugar. “E ainda fazia comícios junto à população”, afirma. São mostradas imagens de armamentos, placas de carro e outros objetos apreendidos. Surgem imagens da rotina em uma estação ferroviária. Martinelli lembra que foram “fazer o Trem Pagador”, na rodovia Santos-Jundiaí. Sabiam do itinerário daquele trem. Não era para o Marighella participar do assalto ao trem. Mas, lá estava ele na ação. Lopes lembra que, na época, a Rádio Nacional dominava a audiência. O grupo contava com um técnico em rádio. Então, decidiram utilizar a torre de transmissão da Rádio Nacional para divulgarem a gravação que possuíam. Esta dizia: “Atenção! Está no ar a Rádio Libertadora, de qualquer parte do Brasil para os patriotas de toda parte...” Na gravação, Marighella diz: “Não se pode organizar a violência das massas para derrubar a Ditadura e a expulsar o Imperialismo, conquistando o poder para o povo, se não se reconhece que o camponês é o fiel da balança. E se a luta revolucionária não é deslocada para o campo. Deslocar a luta revolucionária para o campo significa que a direção política e revolucionária deve ser trasladada à área rural e que ali deve ser desencadeada a luta armada, ou seja, luta de guerreiros.” Ao fundo fala de Marighella, ouve-se o Hino Nacional.
O acontecimento estampou as páginas dos jornais. Del Roio lembra que o sequestro do embaixador norte-americano foi visto como uma ofensa ao Imperialismo. Cenas de protestos na Europa mostram cartazes, em francês, acusando os dirigentes brasileiros de nazistas, e manifestantes acorrentados. Resende lembra que, no encontro com o filósofo francês Jean-Paul Sartre (1905-1980), este começou a ler os documentos de Marighella e disse: “Gostei! Enfim, coisas diretas, sem torneios. Eu vou publicar tudo no próximo número do ‘Les Temps Modernes’.” Realmente, foi publicado, na edição de número 280, em novembro de 1969. Segundo Correia Jr, entre as publicações de Marighella, a que mais ficou conhecida, no mundo inteiro, foi “Manual do Guerrilheiro Urbano”, publicado em várias línguas. Foi considerado uma cartilha necessária para a formação política de grupos internacionais.
Surgem imagens do curto-documentário de 1968, intitulado “Black Panthers”, da diretora de cinema francesa, Agnès Varda (1928-2019). Nas mãos dos manifestantes pretos, volumes da famosa obra. Segundo Correia Jr., o cineasta francês Jean-Luc Godard (1930-2022) também contribuiu, inclusive, financeiramente, para a divulgação da luta dos guerrilheiros brasileiros. Lopes lembra da sensação de liberdade, que tinha, quando participava da guerrilha. Era uma transgressão total. Na voz de Marighella, ouve-se: “Revolução é sacrifício. Tenhamos decisão. Mesmo que seja enfrentando a morte. Porque, para viver com a dignidade, para conquistar o poder para o povo, para viver em liberdade, construir o socialismo, o progresso, vale mais a disposição de ir até ao sacrifício da vida”. Fayal lembra que o oficial do Exército norte-americano, Charles Rodney Chandler, (1938-1968), que era torturador no Vietnã, veio para o Brasil instruir os militares brasileiros. “A influência, a interferência americana na política brasileira. Diretamente, instruindo os nossos oficiais à prática de torturas, né?”, afirma. O oficial norte-americano foi o primeiro a ser morto pela ALN.
Fayal também lembra a morte do executivo dinamarquês, naturalizado brasileiro, Henning Albert Boilesen (1919-1971), que presidiu o Grupo Ultra. “E que chegou ao cúmulo de importar, de bolar instrumentos e tortura e participar, pessoalmente, dessas sessões de tortura.”, diz. Cyrillo lembra do convite para participarem do sequestro do embaixador norte-americano no Brasil, Charles Burke Elbrick (1908-1983). “Marighella não queria essa ostensibilidade. Justamente para evitar que a repressão caísse, dessa maneira, em cima dos revolucionários”, diz Resende. Fayal comenta que Marighella tinha razão. “Porque o sequestro trouxe uma, assim, uma repressão. Foi levada ao máximo.”, denuncia. Mostram cenas da época de jovens sendo presos e torturados. Amano informa que o DOI-CODI (Destacamentos de Operação Interna e Centros de Operações e Defesa Interna) foi criado e, nele, centralizaram todo o sistema de informação. “E isto foi fatal pra nós. Nós não mudamos a nossa tática. Continuamos fazendo a mesma coisa.”, critica o advogado. Charf conta que o cerco foi se fechando, com o medo das pessoas, as prisões, muitas mortes e invasões de casas. “E a organização diminuindo, né? Porque as pessoas foram presas, outras foram mortas. Então, o pessoal começou a se afastar.”, afirma. Resende conta que a presença da CIA (Central Intelligence Agency), que já era grande, tornou-se muito mais intensa. “Tinha-se que se acabar com eles. Não se tratava de prender ninguém. Era de matá-los.”, denuncia. Na tela, documentos da CIA e cartaz com os dizeres: “Terroristas Procurados – Assaltaram – Roubaram – Mataram Pais de Família”. Entre as fotografias dos procurados, está a de Marighella.
A sobrinha do revolucionário diz que ficava intrigada com uma espécie de bolsa, que se chamava “capanga” na época, que o tio sempre carregava com ele. Segundo ela, quando ele chegava em casa, ele colocava a bolsa no alto da estante para ninguém mexer. Aquilo era um mistério para a menina. Muitos anos depois, Charf contou a sobrinha que Marighella guardava, naquela “capanga”, um barbeador elétrico, uma arma e uma capsula de cianureto. “Porque ele tinha dito que, nunca mais, seria pego vivo.”, diz Ferraz. Charf lembra que ele se preocupava como ela saía na rua. Então, por ser muito branca, ela maquiava-se com um creme quase marrom, bege, e usava peruca para poder se locomover na rua. Segundo ele, ela também não podia rir na rua porque tinha um jeito de rir característico. Se risse na rua, descobririam quem era ela. Charf diz: “Não podia nem rir”. E chora. Para Fayal, a opção de vida ou morte era a opção do dia a dia. “Inclusive se discutia muito a questão de não se entregar, de se suicidar, tomar cianureto...”, conta. “Ele devia estar fora de São Paulo. Não podia estar em São Paulo. Isso foi um erro grave.”, diz Del Roio. Emocionado, Amano acrescenta: “Mesmo que seja para ir pra morrer, eu vou morrer no meu país. Lutando!”, afirma. Cyrillo recorda que um dos deles foi pegou com o número do telefone do Convento dos Domenicanos, em São Paulo, anotado em um de seus documentos. Resende lembra que todos os freis do Convento foram levados para o DOPS.
A jornalista e ex-militante da ALN, Rose Nogueira, recorda que a polícia chegou a sua casa por volta da meia-noite. “Era o Esquadrão da Morte. Era o delegado Fleury. Foi entrando assim, de uma maneira muito bruta, achando que ele (Marighella) estivesse lá. Porque eles chegaram com o Frei Fernando e jogaram o Frei Fernando em cima de mim, assim. A hora que eu abri a porta, jogaram o Frei Fernando em cima de mim. Ou seja, se houvesse reação, eu seria contra ele.”, diz. Ela lembra que o rosto do frei estava muito enxado e vermelho. Ele estava algemado e com as mãos também muito enxadas. E demonstrou, pelo olhar, que não havia aguentado. Quando chegaram ao DOPS, havia muitas pessoas presas. O delegado Fleury dirigiu-se a um dos presos, chamado de “Marinheiro” perguntando por Marighella. Marinheiro respondeu ao delegado que, já que ele era macho, que fosse buscar Marighella. O delegado disse que iria, Mas, antes, espancou o Marinheiro na frente do grupo. “E disse assim: eu vou, mesmo! E hoje é o último dia do chefe.”, diz Nogueira.
Surge a imagem do fusca onde Marighella estava quando foi assassinado. A sobrinha volta a recordar: “Em casa, tava todo mundo vendo o jogo do Santos e do Corinthians. Eu já tinha ido pra cama. Aí, eu ouvi minha mãe gritar. Aí, eu ouvi um choro forte. A minha irmã mais velha entrou no quarto, chorando muito e se jogou na cama. Aí, ela disse: Mataram o tio Carlos. Foi horrível! Mas tudo tinha que parecer normal.”, afirma. Na tela, passam imagens do corpo de Marighella dentro do automóvel. Carlos Augusto, o filho do revolucionário, lembra como ficou sabendo da morte do pai. Teve um mau pressentimento. Foi para o jornal. Quando lá chegou, viu, formando em uma máquina, uma espécie de telex, a imagem do corpo de Marighela baleado e sangrando. “E eu pude ver que era, realmente, ele, não é? O rosto era inconfundível.”, conclui. Volta a narrativa do poema sobre o espelho. Para Mello e Souza, Marighella é um dos heróis do povo brasileiro. “É o santo do socialismo. Um santo ateu. Um santo sem Deus.”, declara. Del Roio afirma que não gosta da afirmação de que Marighella era um aventureiro. “Foi um dos melhores quadros políticos do Brasil do século XX. Del Roio comenta sobre os vários revolucionários que marcaram a Histórica do Brasil e diz que, sem eles: “Essa nação seria, infinitamente, mais pobre.” Ao som da gravação da Rádio Libertadora, a imagem de São Jorge sobre o cavalo, destruída no início do filme, volta se formar por inteiro. Nova mensagem, na voz de Marighella, é ouvida. É mais um mensagem dirigida ao povo brasileiro. Imagens do revolucionário, ao som de um rap, dominam a tela. O filme chega ao fim. Mas a lenda é revivida!