Recursos Educacionais Abertos: uma mudança de paradigma

Jamila Venturini

O século XX foi profundamente marcado pela existência de uma indústria cultural baseada no surgimento e desenvolvimento de tecnologias que permitiram a reprodução em escala de conteúdos informativos e culturais. Se por um lado, essa indústria ampliou significativamente o acesso de grande parte da população mundial a uma cultura da qual estavam até então excluídos, por outro, privilegiou a produção proprietária (através de leis de direitos autorais cada vez mais restritivas), comercial e feita por um grupo cada vez menor para grupos cada vez maiores.

Esse modelo dominante de produção não era o único possível e não impediu o desenvolvimento de modelos alternativos (rádios livres, fanzines, música e cinema independentes, etc.), tampouco o surgimento de disputas relativas ao caráter que deveriam ter esses meios de comunicação. Apesar disso, sobrepôs-se ao desenvolvimento de produções independentes e não comerciais, ao mesmo tempo em que restringiu o acesso à produção cultural a uma minoria. O resultado foi a concentração dos produtores em um número restrito de empresas e atores que, com o tempo, acumularam cada vez mais poder político e econômico.

Com o avanço das tecnologias digitais e de computação e o surgimento de novos meios de comunicação (principalmente a Internet), novos modelos emergem e impõem necessidade de mudanças na lógica de produção de cultura, informação e conhecimento dominantes. Isso não significa que o modelo proprietário e comercial tenha sido superado ou desaparecido. Ao contrário, os meios de comunicação de massa e a indústria cultural tradicional seguem fortes e concentram um grande poder. No entanto, a hegemonia deste modelo é cada vez mais questionada pelas novas formas de produção.

O novo modelo se constrói em grande medida a partir da colaboração e da produção não comercial. Para Henry Jenkins (2006), as novas tecnologias proporcionam a existência de uma cultura de participação na qual há poucas barreiras para a expressão artística e a participação política, assim como fortes incentivos à criação e a colaboração. É claro que as tecnologias em si mesmas não determinam as práticas da sociedade: existem muitos fatores que interagem de maneira complexa e dinâmica nesta relação. Porém são muitos os exemplos que indicam uma mudança de paradigma na relação entre criação e consumo de cultura, informação e conhecimento na atualidade (um grande exemplo, nesse sentido, é a própria Wikipédia).

Recursos Educacionais Abertos: um novo conceito editar

O âmbito da educação também se vê impactado de distintas maneiras por essa nova forma de produção de conhecimento. No que diz respeito aos conteúdos, a ideia de se trabalhar com recursos educacionais digitais ganha forma com o conceito de objetos de aprendizagem (OA) “como pequenas demonstrações e simulações utilizadas para explicar um único conceito em uma área do conhecimento” (Amiel; Santos, 2013).

No entanto, apesar de inovar em termos de suporte, formato e linguagem, no geral “a perspectiva educacional dos OA aponta para recursos fechados, prontos e criados para uso em contextos predeterminados, imaginados por designers, muito distantes do contexto final de uso” (Amiel; Santos, 2013). Ou seja, mantém-se a lógica de transmissão e consumo de conteúdos predominante num contexto prévio ao surgimentos das tecnologias digitais.

O conceito de Recurso Educacional Aberto (REA), assim, vem no sentido de dialogar com a cultura da colaboração e, para isso, evolui ao incorporar a ideia de abertura, necessária para garantir que a colaboração possa, de fato, ocorrer. Com essa mudança de concepção, os materiais educativos passam a ser compreendidos como bens públicos e comuns dos quais todos e todas podem se beneficiar, especialmente os que recebem menos apoio dos sistemas tradicionais (Rossini, 2010). Nesse sentido, os REA compartilham uma filosofia comum com os movimentos de software livre, acesso aberto e cultura livre ao compreender que o próprio conhecimento é um bem coletivo e social que deve estar acessível para todas as pessoas.

“Essa nova forma de lidar com o conhecimento resgata a sua essência, ou seja, reabilita seu caráter social e coletivo, um bem que deve estar acessível a todos. Podemos dizer que o foco das iniciativas REA é disponibilizar e compartilhar várias partes ou unidades do saber, que podem ser remixadas, traduzidas e adaptadas para finalidades educacionais, como as peças de um grande quebracabeças, transformando a forma como a educação é pensada e desenvolvida.” (Gonzalez; Rossini, 2012)

Assim, podemos definir Recursos Educacionais Abertos como "materiais de ensino, aprendizagem e investigação em quaisquer suportes, digitais ou outros, que se situem no domínio público ou que tenham sido divulgados sob licença aberta que permite acesso, uso, adaptação e redistribuição gratuitos por terceiros, mediante nenhuma restrição ou poucas restrições. O licenciamento aberto é construído no âmbito da estrutura existente dos direitos de propriedade intelectual, tais como se encontram definidos por convenções internacionais pertinentes, e respeita a autoria da obra" (Declaração de Paris sobre Recursos Educacionais Abertos, 2012).

Licenciamento aberto para a garantia de direitos editar

Como vimos anteriormente, o modelo proprietário de produção de cultura e conhecimento é, em grande medida, garantido por leis de direito autoral que limitam a circulação dos conteúdos. Na medida em que as tecnologias digitais e a internet surgem para facilitar o acesso, as indústrias que têm como fonte principal de lucros a venda de conteúdos protegidos (por exemplo, a fonográfica, de cinema e editorial) começam a pressionar por mais restrições.

Lawrence Lessig (2004), um dos idealizadores das licenças Creative Commons, observa que entre 1790 e 1978 o prazo de vigência dos direitos autorais não superava 30 anos. Nesse contexto, chama a atenção que atualmente no Brasil e em muitos outros países esse prazo se extenda pela vida dos autores mais 70 anos. Outro agravante é que as próprias tecnologias digitais e a internet aumentaram a amplitude e a força dessas leis ao permitir um controle maior sobre os usos dos conteúdos protegidos, sem garantir liberdades básicas para os cidadãos (Lessig, 2004). Dessa forma, indivíduos e usos que nunca estiveram sob o raio de ação dos direitos autorais, criados para regular primordialmente as editoras, agora se vêem afetados. Um exemplo dado por Lessig é o empréstimo ou venda de um livro: quem nunca pegou um livro emprestado ou comprou um livro usado? No mundo digital essas atividades nem sempre são legais (ainda que possam seguir ocorrendo), uma vez que para “emprestar” um livro ou um CD é gerada uma cópia da obra original.

Nesse cenário, as licenças alternativas ao direito autoral padrão, como as do tipo Creative Commons, ganham um significado muito maior. São elas que garantem que os usuários terão uma série de liberdades que não necessariamente estariam protegidas caso a licença não fosse explicitada.

Isso explica a importância dada às licenças na definição de Recursos Educacionais Abertos vista anteriormente. Para que a abertura se efetive e a colaboração esteja garantida, são necessárias medidas concretas que permitam que esses recursos circulem livremente. Por isso, o simples fato de que um material possa ser acessado gratuitamente pela internet não garante a sua abertura.

Em resumo, a novidade dos REA não está na digitalização ou na distribuição gratuita de conteúdos educacionais pela rede. A questão central nesse conceito é a possibilidade de cópia, distribuição e adaptação oferecida pelas licenças abertas que, junto com o avanço das novas tecnologias digitais, oferecem novas possibilidades de interação com os conteúdos (Santos, 2012).

São diversas as opções de licenciamento alternativo disponíveis, algumas inclusive permitem apenas o uso dos conteúdos, reproduzindo as limitações do direito autoral padrão. Como vimos, no caso dos REA é necessário se dar um passo além. Uma licença que restrinja a criação de obras derivadas, por exemplo, seria insuficiente para a definição de REA que fala de “acesso, uso, adaptação e redistribuição gratuitos por terceiros, mediante nenhuma restrição ou poucas restrições”.

É por isso que se fala em licenças abertas, sendo os REA, como o próprio nome indica, conteúdos abertos. Um conteúdo aberto pode ser definido como aquele que é licenciado de forma a permitir os seguintes direitos de uso (Wiley, 2014):

Guardar ou reter: o direito de fazer, possuir e controlar as cópias de um conteúdo (por exemplo fazendo o download, armazenando e administrando-o a sua maneira); Reutilizar: o direito de usar um conteúdo em diferentes contextos e formas (por exemplo em uma aula, um grupo de estudos, um site, um vídeo, etc.); Revisar: o direito de adaptar, melhorar, modificar ou alterar o conteúdo (por exemplo traduzindo-o); Remixar: o direito de combinar o conteúdo original ou revisado com outros conteúdos abertos para criar algo novo; Redistribuir: o direito de compartilhar cópias do conteúdo original, revisado ou remixado com outros.

Novamente, é importante ressaltar que mais do que uma questão meramente jurídica, são as licenças abertas que garantirão as liberdades e direitos listados acima e, portanto, a livre circulação de um recurso e seu caráter de bem comum e público.

Brasil: avanços marcados por diversidade e falta de clareza editar

Nos últimos anos o movimento em favor dos REA cresceu muito no Brasil. A cada ano surgem novas iniciativas e ferramentas que buscam disponibilizar conteúdos originais e/ou facilitar o acesso a recursos de terceiros através de repositórios especializados. Além disso, muitas instituições públicas e privadas têm adotado licenças alternativas em seus conteúdos.

Um exemplo é a Secretaria Municipal de Educação de São Paulo que desde 2011 disponibiliza seus materiais gratuitamente em seu site sob uma licença Creative Commons. No mesmo sentido, a Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro criou uma plataforma com aulas digitais em Creative Commons que podem ser acessadas por qualquer pessoa.

No entanto, como vimos anteriormente, a adoção de uma licença alternativa não é suficiente para tornar um recurso de fato aberto. Apesar da importência de cada uma destas iniciativas, um olhar mais atento para o cenário brasileiro evidencia que, apesar da grande quantidade de recursos disponíveis, há uma diversidade de licenciamentos e certa falta de clareza em relação aos usos permitidos que dificulta o acesso e a vida dos potenciais usuários. Além disso, determinadas restrições podem fazer com que a própria colaboração, objetivo primordial dos REA, se torne inviável.

Nesse sentido, é importante se ter sempre em mente os cinco direitos listados anteriormente e como torná-los efetivos através de um licenciamento coerente. Para além da restrição à criação de obras derivadas, que contraria o próprio conceito de REA, restrições ao uso comercial, por exemplo, podem, na prática, impedir que um recurso seja aberto de fato.

A ideia do que consiste um uso “não comercial” é abstrata e, muitas vezes, pode inviabilizar pequenos projetos. Isso porque, enquanto os grandes produtores têm departamentos específicos ou empresas terceirizadas especializadas em tratar questões relativas a direitos autorais, os pequenos produtores no geral contam com esse tipo de infraestrutura e, muitas vezes, não têm condições de negociar com os detentores de direitos caso os usos permitidos não estejam claros. Dessa forma, devido à insegurança jurídica que causa, este tipo de licença pode restringir inclusive usos que estavam previstos pelo criador (Rossini, 2010). Além disso, tanto as licenças não comerciais, quanto a própria diversidade de licenças adotadas nos diferentes repositórios e conteúdos trazem um risco importante à possibilidade de remix e à interoperabilidade entre plataformas.

Poderia se dizer, portanto, que o cenário brasileiro é marcado ainda por uma diversidade de licenciamentos e, consequentemente, por uma confusão gerada pelas diferentes conceituações, falta de clareza, bem como numerosas restrições de uso, tornando mais difícil o remix e a criação de coleções com os objetos digitais existentes. Além disso, a ausência de políticas públicas consistentes colabora para esta situação, já que muitas vezes o poder público atua de maneira difusa e falha em difinir critérios claros para a produção e distribuição dos recursos educacionais.

A título de conclusão editar

Com a entrada das novas tecnologias no mundo escolar, diversos atores disputam no âmbito político e acadêmico o caráter e a importância elas podem ter, assim como as práticas que devem ser priorizadas ou não.

No caso das empresas produtoras de conteúdos, seu interesse por ingressar no mercado das tecnologias educativas não é casual. Segundo dados da Associação das Indústrias e Software e Informação (pela sigla em inglês, SIIA)[1], em 2011 o mercado de produtos e serviços de tecnologia educativa - sem considerar hardware, impressões ou qualquer produto analógico - foi de mais de 7 bilhões de dólares nos Estados Unidos e os produtos relativos a conteúdos representaram 36% dos lucros4.

Num contexto de crescente mercantilização da educação, o movimento REA e sua filosofia participam do debate defendendo o direito ao conhecimento, cultura e informação e a criação de um repositório de conteúdos educativos livres. Para que isso se concretize de fato, porém, é necessário se estabelecer padrões claros sobre quais são as licenças e conteúdos realmente livres e abertos.

  1. "US Education Technology Industry Market: PreK-12", Página visitada em 5 de maio de 2014.

Bibliografia editar

AMIEL, T.; SANTOS, K. “Uma análise dos termos de uso de repositórios de recursos educacionais digitais no Brasil”. In: Revista Trilha Digital, v. 1, p. 118-133, 2013. Disponível em: http://ead.mackenzie.br/

BENKLER, Y. The Wealth of Networks: How Social Production Transforms Markets and Freedom. New Haven, CT [etc.]: Yale University Press, 2006.

GONZALEZ, C. e ROSSINI, C. “REA: o debate em política pœblica e as oportunidades para o mercado” In: Santana, B., Rossini, C. e Pretto, N. (orgs.). Recursos Educacionais Abertos: práticas colaborativas e políticas públicas. Salvador: EDUFBA; São Paulo: Casa de Cultura Digital, 2012. Disponível em: http://www.livrorea.net.br.

JENKINS, Henry. Cultura da Convergência. Editora Aleph, 2008.

LESSIG, L. Cultura Livre: como a grande mídia usa a tecnologia e a lei para barrar a criação cultural e controlar a criatividade. São Paulo: Trama, 2005. Disponível em: https://www.ufmg.br/proex/cpinfo/educacao/docs/10d.pdf

ROSSINI, C. Green-Paper. The state and challenges of OER in Brazil: from readers to writers? Boston: Harvard University, 2010. Disponível em: http://cyber.law.harvard.edu/publications

SANTOS, A. “Educação aberta: histórico, prácticas e o contexto dos recursos educacionais abertos”. In: Santana, B., Rossini, C. e Pretto, N. (orgs.). Recursos Educacionais Abertos: práticas colaborativas e políticas públicas. Salvador: EDUFBA; São Paulo: Casa de Cultura Digital, 2012. Disponível em: http://www.livrorea.net.br

WILEY, D. “The Access Compromise and the 5th R”. Disponível em: http://opencontent.org/blog/archives/3221

Saiba mais editar

Declaração da Cidade do Cabo (2007)

Declaração de Paris sobre Recursos Educacionais Abertos (2012)

Projeto REA Brasil

O que é REA?

Coletânea Recursos Educacionais Abertos: práticas colaborativas e políticas públicas

Lista de repositórios de recursos educacionais disponíveis online