Relações Entre Memória e História
Por Gabriel Moreira Guizelini e Walmir Idalêncio dos Santos Cruz
Alunos do Curso História do Brasil II da UNESP (Câmpus de Marília), ministrado pelo Prof. Paulo Eduardo Teixeira
Em Novembro de 2024
O presente trabalho tem por objetivo examinar a íntima relação entre a ideia de "memória" e a História, com ênfase na História do Brasil, a partir de entrevista de José Carlos Barreiro, professor titular de História do Brasil junto ao Departamento de História da UNESP, Câmpus de Assis.
Memória e seu Significado Filosófico
Na Antiguidade Clássica, para Platão, a memória estava vinculada à teoria da reminiscência (anamnese), sendo que o discípulo de Sócrates acreditava que o conhecimento é uma recordação de verdades que a alma já contemplou no mundo das ideias antes de nascer.
Na Idade Média, em sua obra Confissões (século IV d.C.), Santo Agostinho desenvolve reflexões sobre o conceito de memória, considerando-a um espaço interno da alma em que estão armazenadas imagens do passado, sentimentos e conhecimentos, associando-a à busca por Deus e à compreensão da eternidade.
Na Idade Moderna, John Locke, em seu Ensaio Sobre o Entendimento Humano (1690), no capítulo Da Diversidade e Da Identidade, relaciona a memória à identidade pessoal, sustentando que a construção e continuidade da identidade de uma pessoa ao longo do tempo depende de sua capacidade de recordar experiências passadas.
Já na contemporaneidade, no século XIX, Henri-Louis Bergson, em Matéria e Memória (1896), estabelece distinção entre memória habitual (ações aprendidas) e memória pura (recordações espontâneas do passado), vinculando a memória ao fluxo do tempo e à experiência subjetiva.
Para melhor explicitar tais conceitos, se faz necessário adentrar brevemente em seu sistema filosófico. Por ser um autor do Devir, Bergson acredita que nada no mundo está finalizado, nem mesmo a matéria, que o tempo todo está se atualizando.
Entretanto, o intelecto humano, por necessidade de sobrevivência, se moldou para determinar as coisas como prontas e acabadas, como a matemática, dando caráter de exatidão. Bergson, por outro lado, pontua que o real está sempre se fazendo e nunca se conclui, não apenas enquanto algo que nunca acaba, como também compreendido como tempo, que o autor relaciona ao conceito de duração (durée), ponto fundamental de sua filosofia. Em termos gerais, duração é consciência e memória.
No século XX, Paul Ricoeur investigou a relação entre memória, história e esquecimento em A Memória, A História, o Esquecimento (2000), explorando a memória como narrativa, com um foco ético na responsabilidade de lembrar e narrar. Nesse sentido, seu pensamento se aproxima do de Jacques Derrida, que sustenta que a memória é moldada por sistemas de poder e linguagem.
Com o surgimento da psicanálise, o conceito de memória também é centralizado, mas Freud o faz alterando algo que adiante será aqui tratado. Segundo o artigo Memória Individual, Memória Coletiva, Memória Social (Maurice Halbwachs, 1950), vemos como o aparelho psíquico para a psicanálise não é uno, ou mesmo simultâneo, mas múltiplo, isto é, o aparelho psíquico é também para o autor aparelho de memória, mas como aparelho uno, ou seja, cada indivíduo não é apenas uma memória, ou possui memória (dotado de uma faculdade), mas diversos traços mnêmicos, que são basicamente as representações das lembranças e associações, formadas em relação com o outro. Deste modo, a dimensão subjetiva de cada um é, ao mesmo tempo, imediatamente social. Por fim, um caráter fundamental para a memória na psicanálise é a alteração e criação de memória, ou seja, não se tem a confiança de que aquilo lembrado pelo indivíduo foi mesmo algo que aconteceu ou criado pelo processo do traço mnêmico substituído e fantasiado pelo inconsciente.
Neste ensaio passamos por diversos momentos do conceito de memória ao longo de algumas importantes filosofias e pensamentos da humanidade. Existe uma polissemia no conceito, o que, por sua vez, causa a profunda riqueza e interesse em debatê-lo, porquanto a memória se liga às potencialidades da vivência humana.
Memória Individual e Memória Coletiva no Processo de Construção da História
A memória individual relaciona-se às recordações e experiências vividas por uma pessoa, armazenadas de forma subjetiva e influenciadas por suas emoções, percepções e perspectivas particularizadas. Em razão de seu caráter subjetivo, está sujeita a lapsos e distorções, pelo que necessita ser cruzada com outras fontes para garantir a sua acuidade histórica.
A memória coletiva é compartilhada pelo grupo social, sendo construída e preservada por meio de narrativas, tradições, práticas culturais e instituições. Estabelece a base da História como a formalmente conhecemos, podendo ser moldada por ideologias e até mesmo distorcida para servir a interesses específicos. A construção da História, portanto, está diretamente ligada à narrativa e sistemas de poder e linguagem, como sustentam Paul Ricoeur e Jacques Derrida. Nesse mesmo sentido converge, em certa medida, o pensamento de Michel Foucault, em Microfísica do Poder (1979), por meio do qual o autor francês sustenta que os canais socialmente reconhecidos de difusão do poder, como, por exemplo, as escolas e a Universidade, estabelecem o que pode ser caracterizado como verdade.
A partir de tais premissas, passaremos à transcrição da entrevista do Prof. José Carlos Barreiro, buscando relacionar a memória individual do entrevistado à memória coletiva do Brasil a partir do início da década de 1970.
Questão 1 - Como foi seu processo de formação, e qual foi sua maior motivação para seguir na área de História?
"Cursei graduação em História no período noturno da FCLA (Faculdade de Ciências e Letras da UNESP de Araraquara) entre 1971 e 1975. Em 1976 foi criado o curso de Mestrado em História da UNICAMP. Me candidatei para a primeira turma e consegui superar uma concorrência difícil, pois para lá acorriam alunos muito bem preparados que sonhavam estudar em uma universidade de "gênios", um mito que carregava a jovem universidade desde os primeiros anos de sua fundação. Sem recursos financeiros, deixei meu emprego em Assis e fui para Campinas morar em uma pensão barata na Vila Industrial, dividindo o quarto com mais quatro companheiros. Foi uma aposta arriscada, mas tudo acabou dando certo, graças à concessão, quatro meses depois, de bolsa de pesquisa da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Com a bolsa, consegui formar uma república com outros colegas e viver com todas as condições para fazer o curso. Minha dissertação foi a primeira a ser defendida na primeira turma do Mestrado de História da UNICAMP e logo em seguida publicada pela Editora da UNICAMP.
Em um momento em que a FAPESP e as Universidades Públicas do Estado de São Paulo estão correndo sério risco de ficar sem parcela significativa de seus recursos financeiros, pensei que este breve relato de minha trajetória, que não é único em seus aspectos gerais, poderia exemplificar a importância dos recursos públicos para o financiamento da pesquisa científica e do ensino superior público e gratuito. Sem universidade pública e gratuita e sem uma instituição de fomento à pesquisa como a FAPESP, jamais teria conseguido prosseguir na minha carreira.
Em maio de 1978, estava de volta ao Departamento de História da UNESP, câmpus de Assis, a convite de colegas que haviam sido meus professores três anos antes, para dar aulas nas disciplinas de História Contemporânea I e História Contemporânea II, mesmo antes de concluir o Mestrado na UNICAMP. Acumulei o trabalho de meu novo emprego com meu curso de doutorado na USP, cuja tese defendi em 1982. Na UNESP fiz toda a minha carreira, chegando à titularidade através de concurso público realizado em 2005.
Em nenhum momento pensei em abandonar a carreira em nome de profissões mais vantajosas do ponto de vista financeiro. Queria encontrar respostas para muitas interrogações que ajudariam a desvendar aspectos desconhecidos de minha própria identidade e de minha família. Queria saber mais do mundo, de seus conflitos ao longo dos séculos, sobretudo os de minha geração, e achava que estudar história poderia esclarecer muito dessas minhas interrogações"
Questão 2 - Quais as principais maneiras de registrar memórias e qual a sua percepção sobre isso?
"A memória social inscreve-se a partir de um sem-número de recursos. A escrita é um dos recursos mais importantes para a eternização da memória dos povos. Mas são igualmente importantes, dentre outros, a pintura, a escultura, a fotografia, os antigos artefatos de trabalho utilizados pela humanidade ao longo do tempo, o mobiliário das moradias, as datas comemorativas, os nomes de sua e uma cidade.
Porém, é preciso salientar que a preservação ou recuperação de uma memória envolve uma questão de poder. No âmbito das relações de classe e da complexa estrutura da organização de poder de uma sociedade, a questão que se coloca é: que pessoas, grupos ou classes sociais têm o poder de se transformar em senhores da memória e do esquecimento? Ou seja, quem decide sobre o que deve ser lembrado ou esquecido? Tais decisões passam quase sempre por manipulações conscientes ou inconscientes que a censura do imaginário de todos os tempos exercer sobre a memória individual ou coletiva" (destacamos).
Questão 3 - Como você enxerga a relação entre memória e o estudo da História?
"Vejo nessa relação a necessidade de se fazer uma distinção entre memória e história, no trabalho de produção do conhecimento histórico. A memória é o dado bruto, mas ela pode e deve ser transformada em História, na produção do conhecimento histórico. Este ato transformador desvela as relações de poder nas quais ela se sustenta. A fotografia em seu estado bruto, por exemplo, é portadora de uma estética não aparente. Um olhar mais acurado pode dar conta de que o recurso da iluminação utilizado pelo fotógrafo pode conferir grande exposição a determinadas figuras ou objetos e deixar outros à sombra. As fotografias obtidas com câmeras ocultas revelam instantâneos surpreendentes alheios ao conhecimento e à vontade de quem é fotografado. Mas há também aquelas em que fotógrafos e fotografados são coniventes com seu resultado, previamente definido. Neste caso, os cenários são cuidadosamente planejados, coreografados e estilizados, de acordo com o resultado pretendido. Pode ser também que encontremos legendas vinculadas aos álbuns de família funcionando como uma espécie de retórica que nos direciona sobre o que devemos ver e sobre como o que vamos ver deve ser visto.
Ressalte-se, por fim, a pertinência das questões que vocês levantam sobre como uma fotografia antiga pode proporcionar o reconhecimento de aspectos de nossa identidade conectada com valores familiares e a história do mundo. Cada um de nós podemos ver emergindo nossas próprias memórias ao vasculharmos o baú familiar de coisas antigas e, diante de um objeto ou fotografia, sentir inesperadamente aquele momento vivido por Proust na famosa passagem do "Madeleine", um bolinho que evoca lembranças da infância do narrador ao ser mergulhado em chá, transportando-o para momentos em sua vida em Combray, sua cidade natal e sua relação com sua mãe"
Questão 4 - Como professor universitário, como foi a questão da liberdade de cátedra durante a ditadura militar?
"Minha trajetória pelas três universidades estaduais paulistas ocorreu em momentos distintos da vida política do país, que influenciaram minhas reflexões acadêmicas. Quando cheguei na UNICAMP, o clima da repressão estava forte. Um professor de nosso curso ficou desaparecido por algum tempo, o movimento estudantil estava igualmente ativo e sob intensa vigilância e repressão da polícia. Contudo, ao lado deste clima sombrio era possível vislumbrar jorros de esperança nos movimentos sociais e culturais que emergiam dos subterrâneos da ditadura. Assistíamos ao ressurgimento do movimento operário, principalmente na região do ABC paulista, propondo ações políticas autonomistas e procurando se distanciar das influências político-partidárias da época. Estes anseios operários de auto-organização nas lutas em defesa de suas reivindicações alimentavam a procura por referenciais teóricos que pudessem iluminar nossas reflexões acadêmicas sobre o papel das classes subalternas como coparticipantes decisivas dos movimentos sociais da História do Brasil. Foi assim que descobrimos E. P. Thompson, historiador inglês estudioso dos movimentos sociais autonomistas da Inglaterra do século XVIII. Thompson influenciou a pesquisa de inúmeros colegas acadêmicos da época. Minha dissertação de Mestrado sobre os camponeses da região de Campinas foi, mesmo que de forma ainda tangencial, influenciada pelos referenciais teóricos de Thompson. Em meu trabalho de doutoramento sobre a cultura popular brasileira à luz de relatos dos viajantes estrangeiros que visitaram o Brasil desde fins do século XVIII até meados do XIX, Thompson exerceu influência mais densa, principalmente por sua abordagem cultural e antropológica para entender a luta dos pequenos camponeses e artesãos, num momento em que o liberalismo inglês atuava de forma avassaladora para a "modernização" da economia inglesa e destruição dos velhos costumes populares da época. ao mesmo tempo, outros historiadores vinculados à temática da História Cultural e Teoria da História passaram a povoar nosso universo de reflexão historiográfica.
Começando a trabalhar na UNESP de Assis senti já de início algum desconforto. O diretor da instituição adotou a política de colocar janelas de vidro nas portas das salas de aula. A pergunta que surgia entre os professores era a de se nossas salas de aula estavam sendo vigiadas e por quem. Ao mesmo tempo, instituiu-se a política de controle de entrada e saída dos professores das salas de aula. Havia um "bedel", uma funcionária administrativa, que registrava se os professores chegavam atrasados e saíam antes do término do horário da aula. Os registros da funcionária eram encaminhados à diretoria para impor a devida punição aos faltosos. Nunca soube se alguma punição foi levada a efeito, mas certamente esse clima de intimidação tinha desdobramentos negativos sobre a atividade dos professores. Sob esse clima de intimidação, discutia com meus alunos do curso de História Contemporânea os capítulos históricos de "O Capital" de Marx (Artesanato, Maquinaria e Grande Indústria) que nada tinham de "subversivo" ou de perigo à ordem institucional vigente. Diante de toda aquela situação, dava um jeito de entrar em sala de aula com o livro escondido entre outros materiais que utilizaria em sala de aula. Felizmente, isso foi mudando com a substituição do diretor e com a forte oposição da Associação de Docentes à política de vigilância institucional que constrangia e atrapalhava o desenvolvimento do processo educacional do Câmpus"
A Ditadura Militar e a Repressão na Vida Acadêmica no período de 1964-1985
A resposta do Professor José Carlos Barreiro à questão de nº 4 evidencia, a partir de sua memória individual, traços do que marcou a memória coletiva brasileira no período da ditadura militar, especificamente no contexto da repressão à liberdade de cátedra e à vida acadêmica.
A ditadura militar no Brasil (1964-1985) foi caracterizada por um regime autoritário instaurado após o golpe de Estado de 31 de março de 1964, que depôs o presidente João Goulart. Durante esse período, o governo militar implementou mecanismos de repressão e controle social que impactaram diversas esferas da sociedade brasileira, incluindo a liberdade de cátedra (o direito de professores ensinarem livremente) e a liberdade acadêmica nas instituições de ensino.
Os militares justificaram o golpe com o discurso de combate ao comunismo e preservação da ordem, promovendo uma política de controle ideológico. A educação, considerada um espaço estratégico para moldar ideias e formar cidadãos, tornou-se alvo direto da repressão.
O Ato Institucional nº 5 (AI-5), de 1968, suspendeu direitos políticos e garantias constitucionais, permitindo cassações, prisões e perseguições sem justificativa legal.
A Lei de Segurança Nacional foi utilizada para criminalizar professores, estudantes e pesquisadores acusados de subversão ou de difundir ideias contrárias ao regime.
O Decreto-Lei nº 477/1969, conhecido como o "AI-5 das Universidades", punia professores, estudantes e funcionários envolvidos em atividades consideradas subversivas, incluindo penas de demissão, expulsão e cassação de direitos políticos.
Os reitores passaram a ser nomeados diretamente pelos militares, centralizando o controle sobre as universidades. Foram implantados os departamentos e colegiados, que enfraqueceram a autonomia dos docentes e permitiram maior vigilância ideológica.
A reforma universitária de 1968, promovida pelo governo, buscou adequar as instituições às demandas econômicas e políticas do regime, muitas vezes em detrimento de disciplinas humanísticas e sociais.
O governo censurava materiais didáticos e livros considerados ideologicamente inadequados. Professores e estudantes eram monitorados por órgãos de repressão como o Serviço Nacional de Informações (SNI) e o Departamento de Ordem Política e Social (DOPS).
Muitos docentes e alunos foram demitidos, presos, torturados ou forçados ao exílio por suas posições políticas ou pelo simples exercício de pensamento crítico.
Disciplinas que fomentavam o pensamento crítico, como Filosofia, Sociologia e História, foram marginalizadas nos currículos escolares.
Referências Bibliográficas
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RODRIGUES, Paulo César. Introdução à filosofia de Bergson. São Paulo: Editora UNESP, 2022. 135 p. ISBN: 978-65-5714-302-5. Disponível em: https://doi.org/10.7476/9786557143025.
Soares, M. T. M. (Ano). A memória que herdámos dos gregos: da poesia, história e filosofia. Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da Universidade de Coimbra
FERREIRA, Marieta de Moraes; NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. Ditadura militar, esquerdas e sociedade. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.