Por for das pesquisas

Caminho longo, curvas acentuadas, expectativa alta. O que encontrar por ali? A ansiedade nos levou a adiantar a parada do carro, descemos em Parelheiros achando que Marsilac havia chegado depois de uma hora e meia de viagem. Mas não, tínhamos mais alguns quilômetros pela frente… Marsilac e Parelheiros são dois distritos pertencentes à cidade de São Paulo nos registros territoriais, e que estão sob responsabilidade da Subprefeitura de Parelheiros. Entretanto, os olhos acostumados com o centro da capital paulistana duvidam que os distritos possam pertencer a ela, principalmente Marsilac. Nossos olhos expressam curiosidade ao chegar, numa resposta mutua, os olhares dos moradores de Marsilac nos olham instigados e também curiosos. O pequeno centro que nos recebe é composto por uma rua principal, com extensão de cerca de um décimo do comprimento da Avenida Paulista. As casas são coloridas, a rua asfaltada em um trecho de sua extensão. As inúmeras roupas penduradas no varal de cada casa apresentam o clima interiorano, em que famílias grandes moram na mesma casa, compartilham a rotina, os acontecimentos, e o sentimento de carinho e pertencimento pela extensa área verde de Mata Atlântica e reserva ambiental que lá compõe. “O homem faz parte da natureza. Então está sempre querendo voltar, né. Mesmo que tenha ido pra cidade está sempre procurando um lugarzinho, pra botar o pé na água, na terra.”, reflete Maria Lúcia Cirillo, moradora de Marsilac há 32 anos, mãe solteira de dois filhos, ex-técninca em eletrônica, cabelos brancos, estatura média, roupas confortáveis, e 60 anos de conhecimento e experiência nas costas curvadas e pernas endurecidas. A proximidade com a natureza é, sem sombra de dúvida, o maior orgulho da população de Marsilac. Que paulistano pode dizer que tem Mata Atlântica no quintal, cachoeira como piscina e índios presentes no cotidiano? Afinal, dividem o distrito com índios Guarani Mbya, que lutam pela demarcação de suas terras e com a APA Capivari-Monos, a primeira Área de Proteção Ambiental criada em São Paulo. Não tem uma conversa que não comece enaltecendo essa particularidade verde do bairro. Antônio, morador de Marsilac há 25 anos, afirma com convicção que sente a diferença no ar só de sair dali: “Minha renite ataca na hora. Só quem mora na poluição que não percebe.” O sentimento geral é de orgulho pelo fato de que aquele pedaço ali, ainda não tinha se transformado na São Paulo de concreto. A alegria e a satisfação com o bairro contrastam com as notícias, sempre negativas, escritas à distância, baseadas em dados frios que não refletem a realidade do povo de Marsilac. Com 8,2 mil habitantes, o distrito é sempre lembrado por suas deficiências. Ocupa a lanterna do Índice de Desenvolvimento Humano de São Paulo; Com 0,701 nesse índice, Marsilac é o pior colocado de toda a cidade. Não tem saneamento básico e tem apenas uma escola estadual e uma UPA. Marsilac não é o fantasma que parece ser nas pesquisas estatísticas, mas não deixa de carecer por mudanças, garante Maria Lucia. Foi ela quem fundou a Associação de Moradores de Marsilac e presidiu por 13 anos. Um dos principais serviços que ela ofereceu para a população através da associação foi a caixa de correio comunitária. As ruas de Marsilac não tem CEP, e portanto, não chegam cartas. Com muita luta ela conseguiu instalar a caixa, e desde que fechou a associação, os moradores dependem da caixa de correios da escola. “Acabou porque associação de uma pessoa só não existe, né?” diz. Os custos para manter o CNPJ e o avanço da idade a levaram a fechar a associação. Mas ela nunca jogou nenhum documento fora; entre nós estão dezenas de pilhas de papel em uma organização caótica. Fizemos a entrevista atrás do balcão de sua venda, atividade que cultiva para o sustento, mas “principalmente pela distração”. Seu lazer preferido é ler livros e artigos científicos, o que fica difícil de fazer sem acesso à internet. Existe um aparelho que trouxeram de Paralheiros que consegue captar sinal clandestino de internet via rádio, mas Maria Lucia não tem paciência para a demora e não quer se envolver com problema: “Quando meu filho vem me visitar ele leva meu kindle para subir artigos novos e trazer na próxima visita”. Telefone fixo quase ninguém tem, é difícil de instalar e sem CEP não tem como registrar. Sinal de celular só tem no campinho de futebol, que acabou virando o ponto de encontro dos jovens da região. Ou seja, para quem procura por emprego, não consegue receber a resposta por carta, nem telefone fixo e nem celular. Essa é a grande reclamação de uma população que sofre severamente com o desemprego. “Não tem onde trabalhar aqui, não tem fábrica nem comércio. E não tem como receber vaga de fora. É muito difícil!”, explica Airton, de 26 anos que está desempregado há quatro anos e já perdeu a conta dos trabalhos que deixou de conseguir por simplesmente não ter nenhuma forma de comunicação. Nós, jovens nascidos com internet em casa, não conseguimos processar a informação. “Mas e se você quer falar com um amigo?” perguntávamos tentando digerir o que esse isolamento comunicacional significava, “Ué, vai na casa dele”, rebate Airton. “E se ele não estiver em casa?”, indagávamos incrédulos, “Ué, da não fala com ele”, responde achando graça. Qualquer referência e dados do bairro que precisávamos recorremos à Maria Lucia. Estávamos no distrito de Marsilac, mas ela explicou que o bairro de nome Engenheiro Marsilac tem um total de território que representa 200 km² da cidade de São Paulo, com a menor densidade dentre os distritos paulistas. A moradora não se conforma com o esquecimento de uma área significativa. “Aqui tem um potencial enorme com os créditos de carbono e a água abundante. Como é que um gestor público não enxerga isso? Ele vai terceirizar, privatizar pra enxergar que isso aqui é um potencial imenso?!” e ela se irrita profundamente com a desculpa de que Marsilac é ocupação, e por isso não podem fazer nada. “Marsilac é dito bairro ocupado, não é ocupado! Getúlio Vargas esteve lá em 1938 para inaugura a ferrovia e nomeou o bairro Engenheiro Marsilac.”, explica convicta. A grande preocupação dela agora é a mudança na classificação de Marsilac, que esse ano passou de área rural para área urbana. Agora eles terão que pagar IPTU, mas ninguém está entendendo nada, nem mesmo a prefeitura. “Meu filho foi lá perguntar como fazia para pagar o IPTU aqui e as atendentes riram dele. É como se aqui não existisse para o poder público.”, lamenta ela. Falante, empolgada e indignada, Maria Lúcia não parou de contar as histórias de sua luta solitária pelo bairro querido enquanto não saiamos de lá, mas já passava das 14 horas, a fome batia à porta e saímos em busca de um restaurante. Perguntamos para alguns moradores onde haviaa um restaurante por ali, e a pergunta lhes pareceu absurda: “Essa hora? Não tem mais comida não.” Apontando para uma casa azul com as paredes descascadas, eles explicaram que só servia comida até as 13h30. O sol era forte e a ansiedade do paulistano de centro nos levou ao desespero. O contraste das expectativas cosmopolitas com a realidade interiorana de Marsilac era latente. Avistamos um mercadinho e a solução foi uma dúzia de pães, 500g de queijo prato, 300g de presunto e um pote de requeijão. Pedimos uma faca emprestada para o caixa, que nos cedeu sem hesitação. Com as baguetes debaixo do braço, encontramos uma escadinha e começamos então a armar o banquete. O que parecia uma desventura, foi a parte mais produtiva da visita. Ali sentados no chão, dividindo uma faca, chamamos atenção de Lucinda. Estupefata ela nos advertiu “Comendo no chão? Na minha frente não! Venham já para minha casa, eu moro ali ó...” , sem nos dar tempo sequer de engolir ela nos puxou pelo braço impacientemente uns 200 metros até o portão naquela faixa de asfalto que, em cerca de 500 metros nos apresentava um mundo diferentes daquele das pesquisas distantes. Lucinda é um furacão em pessoa, ia passando esbarrando nas coisas, falando alto, fazendo piadas e rindo das próprias. Em casa chegou anunciando: “Tuuuuurma, encontrei esse jornalistas comendo na rua” e quase atropelando a própria frase se dirige a nós orgulhosa “Venham aqui ver minha equipe. Minha filha e dois amigos. Estão desempregados e eu botei eles pra trabalhar.” Esbaforida, ela nos leva para a cozinha, mas antes, claro, coloca uma toca em cada cabeça! Na cozinha dela não tem cabelo, garante. Lucinda nos mostrou cada etapa de seu mais novo empreendimento: a melhor cocada do mundo. A receita foi descoberta por acaso; sem ter o que fazer com restos de coco que sobrara de uma festa, Lucinda e sua melhor amiga, Saionara, foram inventando com os restos até que, como um milagre, nasceu a melhor cocada do mundo. Ela garante que esse título não foi ela que deu não, mas as clientes de seu salão. Cabeleireira, Lucinda e suas colegas foram demitidas do antigo salão em que trabalhavam, da noite pro dia. Ela, que não para quieta, resolveu abrir outro no mesmo dia. O dinheiro pegou emprestado com um amigo, juntou as colegas demitidas e abriram um salão em Parelheiros. No dia que levou as primeiras cocadas, o salão surtou, conta satisfeita. Em dois meses aumentaram a produção de 20 por semana para quase 300. E só ganha cocada quem encomenda: “Não tem como a gente ir fazendo sem se planejar. Não tem os ingredientes aqui, eu tenho que buscar fora”. O único mercadinho de Marsilac, aquele que nos forneceu o rustico almoço, não tem coco. Lucinda trás nas costas um saco de coco todos os dias “Eu sou tão forte que vocês nem imaginam. Tá achando que eu sou velha?” ela provoca. Em menos de uma hora de conversa Lucinda já tinha apelidos para todos nós, e deixava a filha, tímida, envergonhada com seu jeito espalhafatoso. Para a população de Marsilac foi feita a pergunta: “você se sente um paulistano?”, quase todos disseram sim sem titubear. Exceto seu Antônio que diante da pergunta parou hesitante e concluiu “Eu sou negro, né. Não me sinto nem um cidadão brasileiro”. O racismo supera quilómetros e excluí mais ainda os já excluídos.


fotos em : https://drive.google.com/open?id=0B8yRgRPrkp8gNzhTM2NzVmRVSUE

áudios em: https://drive.google.com/open?id=0Bzvifa71Ak2KOExMX3BFNUVmWTA