Sociologia e Comunicação/Estudo 8

“As cidades habitam os homens ou são eles que moram nelas? Hoje, nem a cidade – sem rastros e sem história - nos habita, nem os homens – que não sabem mais ver – habitam a cidade. A alma dos lugares parece ter se perdido para sempre. Reduzidos a locais moldados pelo hábito, com seus habitantes conformados com traçados pré-estabelecidos. É o aparente paradoxo da obra de Benjamin: o encontro da cidade com os homens se dá quando este percorrem terras desconhecidas ou quando se fazem estranhos em sua própria cidade.

(Sergio Paulo Rouanet/Nelson Brissac Peixoto. É a cidade que habita os homens ou são eles que moram nela?)


“Para os viajados, aqueles que conhecem mais as esquinas da avenida dos Champs Elysées parisienses, com seu grotesco novo-riquismo, do que as alamedas dos Campos Elísios paulistas, nas entremeaduras da crackolândia _para esses viajados, o centro é um fetiche. Do automóvel coberto de insulfilm, parecido a um carro funerário, eles miram um decrépito prédio belle-époque no centro de São Paulo e ficam suspirando nostalgias. Para os membros da elite vanguardeira, o centro é uma aventura de ocasião. Poucos dentre eles se arriscam a andar meio palmo além dos claustros de arte instalados como paraísos culturais no meio do caos das ruas. Eles sonham com as teorias de Baudelaire e Benjamin, mas preferem passar as tardes de domingo nos ambientes bem protegidos dos Jardins, do Itaim e dos shoppings. Na verdade, não há nada a recuperar no centro, fora os prédios e as ruas iraquianas. No plano social, o centro continua plenamente vivo, variado, confuso e arriscado, com seus pobres e empobrecidos, e parece resistir às contínuas formas de discriminação, marginalização e criminalização das classes populares em São Paulo.”

(Alcino Leite Neto. Viva o Centro de SãoPaulo: pobre, popular e marginal)


LITERATURA editar

"Mais adiante havia o depósito de garrafas, o caixote de madeira, o livro apodrecido de contadoria, um pano sujo e de novo a laranja. O olhar não era descritivo, eram descritivas as posições das coisas. Não, o que estava no quintal não era ornamento. Alguma coisa desconhecida tomara por um instante a forma desta posição. Tudo isso constituía o sistema de defesa da cidade. As coisas pareciam só desejar: aparecer - e nada mais. 'Eu vejo'- era apenas o que se podia dizer. (...) Estava olhando as coisas que não se podem dizer. (...) Mesmo o erro era uma descoberta. Errar fazia-a encontrar a outra face dos objetos e tocar-lhes o lado empoeirado. (...) Faltava a parte mais difícil da casa: a sala de visitas, praça de armas. Onde cada coisa esperta existia como para que outras não fossem vistas? tal o grande sistema de defesa. (...) As coisas eram difíceis porque, se se explicassem, não teriam passado de incompreensíveis a compreensíveis, mas de uma natureza a outra. Somente o olhar não as alterava."

(Clarice Lispector. A Cidade Sitiada )



É muito conveniente, em certas horas do dia ou da noite, observar profundamente os objetos em descanso: as rodas que percorreram longas, poeirentas distâncias, suportando grandes cargas vegetais ou minerais, os sacos das carvoarias, os barris, as cestas, os cabos e asas dos instrumentos do carpinteiro. Deles se desprende o contato do homem e da terra como uma lição para o torturado poeta lírico.

As superfícies usadas, o gasto que as mãos infligiram às coisas, a atmosfera frequentemente trágica e sempre patética destes objetos infunde uma espécie de atração não desprezível à realidade do mundo.

A confusa impureza dos seres humanos se percebe neles, o agrupamento, uso e desuso dos materiais, as marcas do pé e dos dedos, a constância de uma atmosfera humana inundando as coisas a partir do interno e do externo.Assim seja a poesia que procuramos, gasta como por um ácido pelos deveres da mão, penetrada pelo suor e pela fumaça, cheirando a urina e a açucena salpicada pelas diversas profissões que se exercem dentro e fora da lei.

Uma poesia impura como um traje, como um corpo, com manchas de nutrição, e atitudes vergonhosas, com pregas, observações, sonhos, vigília, profecias, declarações de amor e de ódio, bestas, arrepios, idílios, credos políticos, negações, dúvidas, afirmações, impostos.

A sagrada lei do madrigal e os decretos do tato, olfato, paladar, vista, ouvido, o desejo de justiça, o desejo sexual, o ruído do oceano, sem excluir deliberadamente nada, sem aceitar deliberadamente nada, a entrada na profundidade das coisas num ato de arrebatado amor, e o produto poesia manchado de pombas digitais, com marcas de dentes e gelo, roído talvez levemente pelo suor e pelo uso. Até alcançar essa doce superfície do instrumento tocado sem descanso, essa suavidade duríssima da madeira manejada pelo orgulhoso ferro.

A flor, o trigo, a água têm também essa consistência especial, esse recurso de um magnífico tato. E não nos esqueçamos nunca da melancolia, do gasto sentimentalismo, perfeitos frutos impuros de maravilhosa qualidade esquecida, deixados de lado pelo frenético livresco: a luz da lua, o cisne ao anoitecer, “vida minha” são sem dúvida o poético elementar e imprescindível.

Quem foge do mau gosto cai no gelo.


Pablo Neruda. Sobre uma poesia sem pureza