Sociologia e Comunicação Cásper 2022/Modernidade

O problema do nosso tempo é que o futuro não é o que costumava ser” (Paul Valéry)

̽Quem me dera, ao menos uma vez/ Explicar o que ninguém consegue entender:/Que o que aconteceu ainda está por vir/ E o futuro não é mais como era antigamente ... E é só você que tem/ a cura pro meu vício de insistir/ Nessa saudade que eu sinto/De tudo que eu ainda não vi (Índios – Legião Urbana)


Eu vejo o futuro repetir o passado. Eu vejo um museu de grandes novidades. O tempo não pára. ("O tempo não pára" - Cazuza)


Walter Benjamim
Para entender as transformações trazidas pelo mundo moderno é preciso seguir os passos de Walter Benjamin e observar que:

No interior de grandes períodos históricos, a forma de percepção das coletividades humanas se transforma ao mesmo tempo que seu modo de existência. O modo pelo qual se organiza a percepção humana, o meio em que ela se dá, não é apenas condicionado naturalmente, mas também historicamente (Walter Benjamin, Obras Escolhidas III p. 169).

O mundo ocidental moderno promete aventura, liberdade, poder, mobilidade, velocidade, uma transformação constante de si mesmo e do mundo ao redor, fazendo com que a vida social se intensifique, mas, ao mesmo tempo, ameaçam romper com tudo o que construímos ou conhecemos de uma hora para outra.

Como Karl Marx destaca, um mundo em que tudo o que parece sólido pode se desmanchar no ar de uma hora para outra.

Em Sobre alguns temas em Charles Baudelaire, Walter Benjamin (1989) destaca que a grande cidade causava medo, repugnância e horror aos que, pela primeira vez, deparavam-se com ela. Mas, ao mesmo tempo, ela era um espaço de sonho e fantasia. Uma estranha fantasmagoria. Um novo processo civilizatório que começava a ganhar forma.

Esse processo civilizatório traz consigo uma série de “sintomas” identificados em um sistema que aparenta funcionar por si só,“sem atritos dos mecanismos sociais”. Para Benjamin:

O conforto isola. Por outro lado, aproxima mais do mecanismo aqueles que dele dispõem. Com a invenção dos fósforos em meados do século assiste-se à entrada em cena de uma série de inovações que têm um aspecto em comum: desencadeiam com um só gesto um processo complexo composto por uma série de momentos (Walter Benjamin, Obras Escolhidas III p. 127).

Ele constata, ainda, que a cada aperfeiçoamento desse mesmo mecanismo, dever-se-ia pressupor, também, a eliminação de determinados tipos de comportamento e de certas emoções. Nossas emoções e sensações são históricas e socialmente construídas.


A Modernidade em Anthony Giddens

No que diz respeito à vida cotidiana moderna, podemos dizer que ela se revela como um “mundo em disparada” que tende a um “desenraizamento” das antigas formas comunitárias tradicionais (pré-modernas).

Três conjuntos de elementos contribuem para esse processo.

  1. O primeiro deles é gerado pela separação entre espaço e tempo, ou melhor, o aparecimento de uma certa dimensão vazia de tempo que se descola da passagem do tempo ligadas ao ritmo da natureza ou ao ritmo da própria vida da comunidade.
  2. Essa condição cria, ainda, uma percepção do espaço que se descola do lugar (da experiência direta das pessoas nos locais em que vivem).
  3. As organizações passam a depender da coordenação da ação de pessoas que estão distantes umas das outras.

Nessa nova ordem, faz-se necessária, cada vez mais, uma nova articulação entre o tempo comum dos encontros e os diferentes espaços em que as pessoas se encontram. Tudo isso produz o que Anthony Giddens chama de  “desencaixe das instituições sociais”.

Essa nova ordem social, moral, política e econômica precisa estabelecer as condições para que  novas relações institucionais de confiança e segurança sejam estabelecidas.

Vamos explorar um pouco mais essa ideia.


Sistema Abstrato (fichas simbólicas + sistemas peritos)

Sociólogo: Anthony Giddens (1938- )
Esse desencaixe das instituições pode ser percebido no aparecimento de um “sistema abstrato” caracterizado pela presença, cada vez maior, das chamadas “fichas simbólicas” e dos “sistemas especializados”.

O dinheiro é a forma mais comum de ficha simbólica. Ele se torna uma espécie de equivalente universal que pode ser trocado por qualquer coisa em qualquer lugar.

Os sistemas peritos (especializados), por sua vez, podem ser identificados na divisão social do trabalho presente no mundo moderno.

Giddens observa que o médico, o analista e o terapeuta tornam-se tão importantes como sistemas especialistas quanto um cientista, um técnico ou um engenheiro.

Tanto as fichas simbólicas (como o dinheiro) quanto os sistemas especialistas dependem de um elemento fundamental: um novo sistema de produção da confiança.

A confiança torna-se fundamental em um mundo em que as pessoas não se conhecem e relacionam-se em lugares muito distantes daqueles onde vivem ou trabalham. Ou, até mesmo, são obrigadas a confiar em pessoas que detêm um conhecimento técnico que desconhecem (médicos, mecânicos, advogados etc.)

Para que o mundo moderno não se desestruture, faz-se necessária a construção de novas arenas capazes de gerar um sentimento de segurança relativa na vida social. Uma dimensão importante dessa nova ordem moderna é que a tradição não lhe serve mais de referência.

A reflexividade passa a ser uma dinâmica importante da vida nessa nova configuração histórica. Tudo está sujeito a intensa revisão à luz de novos conhecimentos – normalmente produzidos pelos sistemas especialistas. A ciência passa a ser uma dimensão fundamental dessa reflexividade, pois é baseada justamente no princípio da dúvida, ou seja, todo conhecimento está sujeito a revisão ou pode ser descartado diante de novas descobertas ou mudanças de paradigma.

O próprio Eu ou o Self passa a ser construído reflexivamente. Como no mundo moderno a tradição perdeu a sua força, esse eu deve ser construído, ao menos em tese, em meio a diversas opções e possibilidades que podem ser revistas com o tempo.

Como esse Eu precisa ser construído reflexivamente, como foi dito acima, o aparecimento de “especialistas” na sua construção passa a ser cada vez mais requisitado. Quanto mais se aumentam as possibilidades de escolha, aumenta-se, também, a incerteza quanto as decisões consideradas “corretas”.

A modernidade pode ter reduzido consideravelmente os riscos em determinadas esferas da vida, mas introduziu não somente novos riscos – de que nem sequer tem ideia ainda -, mas novas formas de avalia-los e antecipa-los. Formas que não existiam em épocas anteriores.


Ulrick Beck
Ulrich Beck (1944-2015)

Para o sociólogo alemão, Ulrich Beck, o mundo moderno foi caracterizado por uma simbiose histórica entre capitalismo e democracia que se apresentou como um modelo civilizatório dominante. No entanto, ele tenta avaliar os riscos que a ampliação desse modelo civilizatório em escala global pode trazer sobre a exploração de recursos naturais, sobre as culturais locais e as formas sociais de existência dos demais povos.

Nossa modernidade produziu um modelo de sociedade na qual os riscos sociais, políticos, econômicos, culturais e individuais tendem a escapar do controle e da proteção oferecido, até um certo momento, pelas instituições modernas.

Em um primeiro momento, esse modelo de sociedade produziu efeitos que não eram vistos, imediatamente, como ameaças à sua própria existência (o desmatamento, a poluição etc.). Essas ameaças e riscos, algumas vezes vislumbrados, não chegavam a se tornar questões públicas e não apareciam no centro dos conflitos políticos.

Mas, há um segundo momento, quando os perigos desse modelo de sociedade industrial aparecem na agenda do debate público e dão início a uma série de conflitos não somente em termos políticos mas como uma série de decisões individuais que devemos tomar em nossa vida privada.

Essas preocupações assumem, então, a forma de uma teoria social e de um diagnóstico da cultura: a noção de “Sociedade de Risco”.

Esse termo passa a designar um estágio da modernidade em que essas ameaças tornam-se não apenas visíveis como são alvos de debate público. Além disso, os padrões de desenvolvimento que vigoraram até esse momento passam a ser questionados.

Precisamos definir, então, uma autolimitação a eles e reconfigurar todos os parâmetros até então conhecidos de responsabilidade, segurança, avaliação, controle de danos e distribuição das responsabilidades.

No entanto, uma questão torna-se fundamental: como avaliar as ameaças e os danos uma vez que eles, muitas vezes, escapam à nossa percepção, à nossa imaginação ou, até mesmo, à própria ciência.

Isso nos faz pensar que a própria noção de "ameaça" e "perigo" é uma construção histórica e social.

Essa construção só se torna possível a partir do momento que a sociedade e suas instituições tornam-se reflexivas, transformando-se em um “problema” para elas mesmas. Uma sociedade que precisa imaginar os riscos que gera, encontrar formas de dimensioná-los e avaliar os controles possíveis que serão exigidos para enfrentá-los. Inclusive por meio de Convenções e Tratados Internacionais ("cosmopolitização" dos problemas no nosso dia a dia).


Sociedade de Risco

Para Beck, a primeira modernidade e a modernidade da sociedade de risco estão se chocando sem que uma parte possa ser representada na outra. Isso se traduz em políticas sem direção, muitas vezes, caóticas, marcadas por jogos de poder (com interesses de curto prazo), em práticas e arenas institucionais desgastadas (crise das formas tradicionais de participação política). Por outro lado, essa condição abre espaço para novas formas de acordos e coalizões que ele chama de "sub-política".

Há um esvaziamento das formas tradicionais da representação política, enquanto há um renascimento do político sob novas formas.

Assim, entramos em uma sociedade onde tudo deve ser escrutinado, as polêmicas estão em todos os níveis, tudo deve ser inspecionado, analisado em detalhes, discutido e debatido incansavelmente para que, no final, nenhuma das partes participantes do processo considere-se satisfeita com o resultado. No pior dos casos, enfrenta-se uma paralisia geral.

É como se a sociedade de risco anunciasse a possibilidade de muitas modernidades nas quais seriam possíveis novas articulações entre a verdade e beleza, entre a tecnologia e arte, entre os negócios e a política etc., mas que,  no fundo, gera uma profunda indecisão sobre a direção coletiva que deveríamos tomar.

Se tudo é política, como estamos acostumados a dizer, é preciso lembrar, que na modernização reflexiva, tudo é cultura e economia também.


Achille Mbembe
Achille Mbembe (1957- )

Achille Mbembe, a exemplo de Frantz Fanon [1], procura trazer para dentro do movimento que entendemos por modernidade, as visões, ações e experimentos que forjaram o racismo e a visão colonizadora que a sustentaram[2]. Se nos chocamos com a existência de um sistema de deportação de judeus, ciganos, homossexuais, comunistas, entre outros para os campos de concentração e de extermínio na II Gerra Mundial, não podemos esquecer que o modelo colonizador - assentado no trabalho escravo negro - formou as primeiras bases da lógica da deportação, concentração forçada e extermínio tanto físico quanto simbólico de certos agrupamentos humanos.

Enfrentar as contradições da formação do mundo moderno, significa enfrentar a lógica que esse mesmo mundo sempre insistiu em tornar invisível como condição de sua existência: o racismo, a opressão contra aqueles que, em determinado momento de sua existência social, passaram a ser classificados como "negros" frente ao colonizador "branco".

Mbembe observa que o maior experimento humano que antecedeu os campos de concentração foi a organização econômica, social, política e cultural que sustentou a plantation que predominou nas Américas. Nela, o "negro" é expropriado de seu lar, dos direitos sobre o seu corpo, sobre sua vontade e sobre sua vida, e isto o transforma em uma espécie de 'morto-vivo" social. Uma "coisa" que pode ser explorada sem limite. Um ser que precisa estar submetido constantemente à alienação de si mesmo.

Modernidade: Capitalismo, Colonialismo e Racismo


Capitalismo, colonialismo e racismo escondem-se atrás da "missão civilizatória" ocidental moderna na qual o colonizador em "nome da paz" - que é a garantia de seus interesses - desencadeia sobre o colonizado uma guerra sem fim.

Esse modelo de modernidade introduz no mundo colonizado a Necropolítica, o poder de administração da exploração do corpo negro (até a morte) ou o seu puro e simples exterminío.

Se, em um primeiro momento, esse outro era o "negro", a ação da necropolítica expande-se sobre os colonizados de um modo geral, sobre os desempregados, os imigrantes, os favelados, aqueles para os quais quase ninguém mais liga, diminuindo muito o custo moral do seu "descarte". É sobre essa condição que a sobrevivência desse outro torna-se um esforço cotidiano.

A escravidão negra não era um tipo de escravidão qualquer, como sempre houve em outros tempos na Europa, na Ásia ou no Oriente Médio. Ela foi um modo de produção econômico, um empreendimento lucrativo que transferiu algo em torno de 7 milhões de pessoas da África para o outro lado do Atlântico, para as Antilhas, o Caribe, Brasil e EUA. Esse empreendedorismo escravocrata era extremamente lucrativo para os nobres ou burgueses que quisessem investir seus recursos. Mas, junto com o comércio desses homens-mercadoria/homens-moeda estão línguas, culturas, religões, tecnologias transferidas de um continente a outro e que precisaram se reinventar, que se misturaram, gerando um processo nunca visto nessas proporções. Ele é um desafio à "missão civilizadora" e higienizadora do colonizador.

Hoje, o neoliberalismo produz novas ordens de colonizados ou de "negros". Esse modelo passa a jogar diversos indivíduos nesse "devir-negro"[3], por meio do qual passam de trabalhadores a "nõmades do trabalho" ou, até mesmo, à condição de ameaçadoras figuras descartáveis tanto física quanto simbólicamente. Os 'mortos-vivos" de uma sociedade que não precisa mais deles a não ser na condição de exploração incansável de suas energias.

Referências

  1. FANON, Frantz. Pele negra máscaras brancas SalvadorːUFBA, 2008
  2. MBEMBE, Achille. A ideia de um mundo sem fronteiras IMSːSerrote,34,2020
  3. O devir-negro do mundo - Peter Pál Pelbartdisse, Dossiê: Achille Mbembe- Revista Cult, 5 de novembro de 2018


Bibliografia


Referências

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed. , 2001 BECK, Ulrich . A reinvenção da política: rumo a uma teoria da modernização reflexiva” In: GIDDENS, Anthony, BECK, Ulrick, LASH, Scott. Modernização reflexiva. São Paulo: Unesp, 1997 GIDDENS, Anthony. Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002 HAN, Byung-chul. Sociedade do Cansaço. Petrópolis/RJː Vozes, 2015 MBEMBE, Achille. Necropolítica. 3. ed. São Paulo: n-1 edições, 2018 SIMMEL, Georg. As grandes cidades e a vida do espírito. Mana. Rio de Janeiro, vol.11, no.2, out. 2005 [1903], p.577-591. SINGER,Ben. Modernidade, Hiperestímulo e o início do sensacionalismo moderno. In: CHARNEY, Leo & SCHWARZ, Vanessa R. (Org.). O cinema e a invenção da vida moderna. Editora Cosac Naify, 1ª edição, 2010.


Outras Referências

CRÔNICA/POESIA Leia ao menos um dos textos.

João do Rio. O automóvel (incrível capacidade de observação de João do Rio sobre o significado do automóvel no mundo moderno. As mudanças que o automóvel anuncia)

________. Pressa de Acabar (O cinematógrafo)

Terra desolada – T.S. Elliot

Ode Triunfal Álvaro de Campos (Fernando Pessoa) – incrível tradução da experiência moderna

Manifesto Futurista – Marinetti Ser moderno – Vinícius de Moraes (Rio de Janeiro, Jornal do Brasil, 31/12/1969)

OUTRAS FONTES

Moving Pictures: Magic Lanterns, Portable Projection, and Urban Advertising in the Nineteenth Century – Dec 19, 2016 By: Ellery E. Foutch – Volume 1, Issue 4 – © 2016 Johns Hopkins University Press

Para entender a modernidade e o modo pelo qual o cinema passa pelo tema. Raimo Benedetti conta o que é o Cinema das Atrações

Propagandas (século XIX)

Government corruption and the Progressive Era

A Mobilidade como objecto sociológico – Emília Rodrigues Araújo

O que é FoMO? ‘Fear of missing out’ revela o medo de ficar por fora nas redes sociais – Isabela Giantomaso – TechTudo, 27/05/2017

Ramadã, uma preocupação para o Liverpool e sete seleções que vão à Copa – Luís Augusto Monaco – Chuteira F.C. 06/05/2018

Luís Felipe Miguel. O jornalismo como sistema perito

Renato Motta. Risco e Modernidade – Uma nova teoria social?

Sérgio Augusto. Adeus às Ilusões. estadao.com.br/cultura - 25 de agosto de 2012

Zygmunt Bauman: ‘Três décadas de orgia consumista resultaram em uma sensação de urgência sem fim’ – Maria Fernanda Rodrigues, O Estado de S. Paulo 06 Agosto 2016 | 16h00

CULTURA DE CONSUMO: O GRANDE NÓ DA SUSTENTABILIDADE NA CADEIA DA MODA – por Amália Safatle – Página 22, 31/10/2107

O livro que criou o termo ‘meritocracia’ é uma distopia – Camilo Rocha – Nexo – 06 Nov 2017 (atualizado 06/Nov 00h36)