Jornalismo Básico 2: reportagens especiais/Reportagens do JOB/Ugo Sartori, Ana Beatriz Azevedo e Beatriz Issler
Uma benção para a Boa Morte
editarA Igreja da Boa Morte mantém um certo ar de mistério, 206 anos após seu nascimento. Demorada essa vinda ao mundo, depois que a congregação que carrega o nome popular da igreja conseguiu a posse do terreno, em 1813, foram muitos anos de arrecadações e doações para concretizar aquilo que se tornou algo além de uma simples igreja. A Irmandade da Boa Morte trouxe para o ritual católico elementos fortes da cultura afro, por ser uma das únicas Igrejas que os negros podiam frequentar no Brasil do século XIX, período totalmente opressivo para essas raízes, no centro de São Paulo.
E não era só isso, a Igreja privilegiada pela localização alta na cidade, era responsável por avisar a chegada de autoridades vindas do Rio de Janeiro ou de Santos. Entretanto, também se colocou na oposição da história contada pelos vencedores: era a acolhedora dos menos favorecidos, impedidos de visitar as Igrejas mais ricas do bairro, aquelas repletas de ouro, e prestava serviços de assistência, desde esmolas deixadas na caixinha de ferro fundido no fundo da casa de oração, até a benção da boa morte para aqueles que estavam condenados ao enforcamento na Igreja Santuário das Almas.
Hoje nem tudo funciona exatamente como no início. A Irmandade, movida por dificuldades financeiras deixou o comando da Igreja e hoje só se mantém forte na Bahia. A princípio, quando houve o rompimento, a casa de oração ficou fechada por longos anos e acabou servindo de moradia para famílias, homens e mulheres em situação de rua. Foi restaurada de 2009 a 2011, em um processo que reviveu a arquitetura com traços fortes do barroco e do rococó brasileiro e reinventou o propósito da Igreja, o projeto social permaneceria presente, diferente dos traços da cultura africana, mas agora o foco seria a adoração absoluta, que significa permitir aos fiéis rezar a qualquer momento do dia - e da noite. Quem hoje exerce a função de acolhimento do espaço já não é a Irmandade, e sim um segurança que protege os espaço madrugada adentro.
Entre molduras duradas; imagens de santos; cheiro de verniz para as madeiras escurecidas pelo tempo; trechos de paredes por pintar; lâmpadas e luminárias da restauração; caixa brancas de som e câmeras de segurança mostram que a tecnologia também está nos templos; velas elétricas que acendem se você depositar uma moeda, prezam pela ecologia no adesivo explicativo e apagam depois de cinco minutos, ou melhor, desligam. Essas, ficam aos pés de Nossa Sra. das Dores, próxima ao altar, uma mulher jovem de vestido branco, com um manto roxo que desce harmoniosamente da sua cabeça aos seus calcanhares. As mãos reunidas junto ao peito e os olhos fechados que não deixam de observar aqueles que ligam suas velas.
No lado oposto, ainda próximo ao altar, uma lista de presença garante o funcionamento da adoração perpétua: dia, noite e madrugada. A organização se dá por um esquema de escala rotativa: diariamente, durante toda a madrugada, a Igreja serve de templo de adoração onde pelo menos um fiel, responsável pelas atividades na hora programada, conduz as orações. Normalmente esse único fiel acaba se juntando com mais 50 à procura de luz em momentos de escuridão, que além de seguir as rezas feitas coletivamente, também tem espaço para introspecção e conhecimento dos próprios desejos.
A entrada do altar está guardada por uma cerca e por São Jorge com o dragão caído no chão e a espada em punho. O altar da Igreja é maior que os olhos. De onde se vê o padre e aqueles que o acompanham na missa, os olhos escorrem do alto, a visão desce em arcos que se apoiam sobre colunas de madeira imitando mármore, listrados de tintas que lembram ouro. Não há brilho nem dinheiro para o barroco do povo. Depois que o olhar gira com os arabescos da base do altar e cai para a esquerda, vê-se uma grande foto do Papa João Paulo com uma hóstia nas mãos. Seguindo para o outro lado, vê-se um quadro do mesmo tamanho, no qual Jesus está pintado cheio de luz e com os dizeres: “Jesus, eu confio em vós”. Entre as telas, uma caixa de acrílico parece velar a imagem gravada em um tecido que está em seu interior e de cada lado da caixa, duas velas, o único fogo verdadeiro da Igreja. Acima está uma mulher, Nossa Senhora da Boa Morte, àquela que abençoava os condenados e os sofridos da época da construção e hoje atende aqueles que buscam qualquer luz ou conselho. Ela está toda de branco, a Boa Morte tem pele clara e cabelos negros, está deitada, com as mãos em prece, os olhos fechados. Não está morta, mas em dormição, foi elevada ao céu. Acima do caixão, flores brancas, em escada, guiam o caminho dos olhos até Nossa Sra. Imaculada, que se encontra no topo e no fundo da Casa de Deus. Aos seus pés, dois anjos levam-na aos céus, de onde a Santa parece olhar, cuidar e orar por todos que entram na Igreja. A adoração de imagens no rococó em uma paleta de cores barroca dão forma e conteúdo para o interior e o exterior da Igreja.
Os fiéis, hoje, costumam ser os moradores da região. É possível ouvir uma senhora, encontra-se de joelhos ao fundo, perto da porta de saída trancada. Leves sussurros, o terço firme na mão passa de conta em conta pelos dedos, e o som que faz cócegas ao pé do ouvido, se mistura com a moto acelerando na rua, mas os santos ainda podem escutar a senhora: a cada conta um desejo, um lamento, um pedido, uma reza. Seus olhos revezam o foco entre o terço, os bancos de madeira e o altar, pedindo 200 anos depois, ainda por uma boa morte.