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Karl Popper e Thomas Kuhn

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O conceito de falseabilidade desenvolvido por Karl Popper na década de 1930 é um bom ponto de partida para compreender a atividade científica. Ele indica que ciência é aquilo que pode ser refutado. Sendo assim, as inúmeras evidências que apoiam uma teoria ou princípio podem cair.

A ideia de ciência normal e ciência extraordinária proposta, anos mais tarde, por Thomas Kuhn dá continuidade à estruturação das bases filosóficas da ciência. A normalidade é quando o conhecimento avança mantendo os paradigmas estabelecidos e a extraordinária, quando algum desses paradigmas não pode ser aceito. Nesse momento, é preciso estabelecer novos paradigmas.

Além desses termos clássicos frequentemente adotados para explicar a filosofia e metodologia científicas, o próprio Ensino de Ciências esclarece questões sobre o tema. Nesta área, muitos pesquisadores pensam a ciência como uma linguagem cuja construção é socialmente negociada. O aprendizado da ciência seria, então, desenvolver a habilidade de observar a natureza utilizando essa linguagem.

 
Detector OPERA

Para exemplificar alguns dos conceitos apontados anteriormente, vamos discutir um evento ocorrido no ano de 2011. Nesse ano, a colaboração OPERA, especializada em estudar neutrinos, obteve resultados que indicavam que a velocidade dessas partículas poderia ser maior do que a da luz. OPERA é o acrônimo de Oscillation Project with Emulsion-tRacking Apparatus e nomeia o projeto construído no início dos anos 2000 a partir da colaboração de diversas instituições de pesquisa europeias para realizar experimentos com neutrino.

Que problema levanta esse resultado da velocidade dos neutrinos? A Teoria da Relatividade, como proposta por Albert Einstein, tem como um dos seus postulados que a velocidade da luz, o limite superior para todos os corpos, é uma constante para qualquer observador. Uma das suas consequências é que qualquer partícula que tenha uma massa de repouso diferente de zero, como é o caso do neutrino, tem a velocidade da luz como limite. A observação do OPERA, se confirmada, falsearia uma das hipóteses da teoria da relatividade como pensada por Einstein.

O resultado do OPERA estimulou outros laboratórios a repetir o experimento, pois um dos fundamentos da Teoria da Relatividade parecia ter sido violado. Se o resultado estivesse correto, teríamos que construir uma nova teoria. Essa seria o caso de uma ciência extraordinária, já os avanços no entendimento dessa teoria podem ser explicados pela ciência normal. Dois laboratórios repetiram o experimento e obtiveram como resultado um valor da velocidade do neutrino menor do que o da luz, assim mantendo a hipótese de Einstein.[1]

Esse caso sobre a velocidade dos neutrinos ilustra como a ciência busca o consenso e como opera para testar constantemente seus próprios paradigmas. Resultados impactantes que podem contestar uma teoria são repetidos ou reanalisados. O resultado pode ser pensado como uma negociação na comunidade para construir esta linguagem. Bem como o Ensino de Ciências orienta o aprendizado na área.

O nascimento da ciência extraordinária

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Ludwig Boltzmann

Há pouco mais de cem anos, um projeto científico de grande originalidade se chocou com a incompreensão da maioria das autoridades científicas do período. O projeto do físico e matemático Ludwig Boltzmann tinha como objetivo derivar as leis da Termodinâmica a partir do estudo de sistemas de moléculas como as da água que, ao ser aquecida e evaporar, aciona turbinas e faz funcionar as máquinas a vapor. À época, a Física havia sido recentemente enriquecida por uma nova área de pesquisa que recebeu o nome de Termodinâmica, criada para descrever o funcionamento das máquinas a vapor.[2]

O grande absurdo na ideia de Boltzmann para a comunidade científica residia no fato de que ele queria derivar as leis da Termodinâmica a partir do estudo da evolução de sistemas de moléculas. As moléculas que compõem, por exemplo, a água estão sujeitas às leis da Mecânica derivadas no século XVII por Isaac Newton. Os movimentos descritos pela Mecânica são por sua própria natureza reversíveis. Todo movimento mecânico pode ser invertido no tempo. Essa é a reversibilidade característica das leis da Mecânica.

Já os fenômenos descritos pela Termodinâmica são irreversíveis. Irreversível, por exemplo, é o processo de evaporação da água ao ser aquecida, transformando-se em vapor que servirá para empurrar os pistões de uma máquina a vapor. Para ilustrar essa ideia, tomemos como exemplo dois botijões de gás ligados por uma mangueira. Dois compartimentos iguais estão conectados por um tubo no qual foi instalado um registro. No início da experiência um dos dois compartimentos contém um certo volume de gás e o outro está vazio. E o registro instalado no tubo está fechado, impedindo o gás de passar de um compartimento para o outro.

Ao abrir o registro no tubo que conecta os dois compartimentos, o gás flui pelo tubo de conexão indo de um recipiente ao outro. O gás se distribuirá nos dois recipientes. Ao cabo de um certo tempo, os dois recipientes conterão quantidades aproximadamente iguais do gás. Ninguém nunca observou o gás, que tinha ido para o segundo compartimento, refluir em seguida totalmente de volta para o primeiro compartimento. Essa observação, portanto, confirma se tratar de um fenômeno irreversível. As coisas acontecem ao longo do tempo numa certa direção e não na direção inversa. O gás flui de um compartimento para o outro, ocupando os dois compartimentos uniformemente. E o fluxo oposto nunca foi observado. Para os cientistas, se o programa de Boltzmann fizesse algum sentido, esse fluxo contrário deveria poder ser observado experimentalmente. Como isso nunca aconteceu é claro que essa reversão é impossível.

O modelo de Ehrenfest

 
Tatyana Ehrenfest
 
Paul Ehrenfest

Os matemáticos Paul e Tatyana Ehrenfest entenderam que não havia impossibilidade lógica no projeto de Boltzmann. Eles mostrariam que, na verdade, reversibilidade e irreversibilidade são dois aspectos da mesma história. No modelo proposto por Paulo e Tatiana os dois recipientes são representados por duas urnas. Vamos chamá-las de urnas A e B. O gás, ou melhor o conjunto de moléculas que o constituem serão representados por um conjunto de bolas iguais e numeradas de 1 até um número fixado muito grande.[3]

A evolução no tempo das posições das moléculas do gás será representada por uma sequência de sorteios de bolas. Considerando uma roleta perfeitamente honesta dividida em espaços iguais numerados de 1 até o número total de bolas. Ou seja, se usarmos 100 bolas, a roleta terá 100 divisões iguais, numeradas de 1 até 100. Usamos essa roleta para alterar ao longo do tempo as posições das bolas. A bola cujo número foi sorteada é “candidata” a mudar de urna. Para decidir se a mudança de urna ocorrerá ou não, uma moeda honesta é lançada. Se sair cara, a bola cujo número havia sido sorteado na roleta muda de urna. Se a bola estava na urna A, ela muda para a urna B. Já se sair coroa, a bola cujo número foi sorteado permanecerá na urna em que estava. Fazemos isso sucessivamente. A evolução das posições das bolas representará a evolução das moléculas do gás, passando de um outro para o outro recipiente. No início, todas as bolas estão na urna A. Representamos assim o fato que inicialmente um compartimento continha todo o gás e o outro estava vazio. Ao longo dos sorteios sucessivos da roleta e da moeda, as bolas irão mudando ou não de urna. Exatamente como ocorre com as moléculas do gás.

O interesse do Modelo de Ehrenfest é que sua evolução pode ser simultaneamente descrita como sendo reversível e irreversível. Reversível como previsto pelas leis da mecânica que descreve a evolução de um sistema de moléculas. E irreversível como previsto pelas leis de termodinâmica que controla a evolução de um gás. A chave do mistério é simples: os aspectos reversível e irreversível da evolução das posições das bolas aparecem em níveis distintos de descrição do sistema.

O aspecto irreversível da evolução

A evolução é irreversível porque ela “tende” a embaralhar cada vez as posições das bolas entre as duas urnas. Começamos com uma situação totalmente ordenada: todas as bolas na urna A. E terminamos com todas as bolas distribuídas da maneira a mais aleatória possível. Ao longo dos sorteios, o sistema evoluiu para uma distribuição de máxima desordem, aquela em que cada bola está com igual probabilidade numa urna ou na outra e isso independentemente das posições das outras bolas.[4]

O sistema converge para uma situação de “entropia” máxima, isto é de desordem máxima. No artigo em que o modelo foi apresentado, Paulo e Tatiana mostraram que a evolução das posições das bolas entre as duas urnas satisfazia a Segunda Lei da Termodinâmica.

A convergência que acaba de ser descrita é um teorema, isto é, um resultado matemático demonstrado rigorosamente, usando sucessivas deduções lógicas. A bem da verdade, trata-se de um teorema cuja demonstração é bastante simples e pode ser apresentada num curso introdutório de Processos Estocásticos.

Processos Estocásticos são modelos matemáticos. Eles descrevem “histórias” que dependem do acaso. No modelo de Ehrenfest a história é a da evolução das posições da bolas entre as duas urnas. E o acaso é representado pelos sorteios sucessivos da roleta e da moeda governando essa evolução.

O aspecto reversível da evolução

O aspecto reversível da evolução das posições das bolas pode ser visto mais facilmente, mudando a forma gráfica de representar a evolução do sistema. Notem que não estamos mudando as regras do jogo. Temos sempre duas urnas, um conjunto de bolas numeradas, uma roleta sorteando o número da bola candidata a mudar de urna a cada passo e uma moeda que dirá se a mudança ocorrerá ou não. Vamos simplesmente utilizar uma outra representação gráfica para indicar as posições das bolas a cada passo do jogo.

Vamos fazer um filme mostrando como as posições das bolas evoluem ao longo dos sorteios. Desta vez vamos iniciar a experiência, sorteando ao acaso com igual probabilidade em que urna ficará cada bola. Faremos um sorteio para cada bola independentemente das outras. Ou seja, vamos agora iniciar a experiência, colocando o sistema na situação em que a convergência das probabilidades de ocupação o colocaria ao cabo de uma sequência muito longa de sorteios.

Passamos o filme mostrando como as posições das bolas evoluem no decorrer dos sorteios sucessivos. Fazemos isso mostrando o filme ora na sequência em que foi filmado originalmente, ora de “trás para a frente”.

E aí vem a surpresa. É impossível para um espectador identificar qual é a sequência original de filmagem e qual é a sequência invertida, quando o filme passa de trás para a frente. Num sentido ou no outro o filme mostra o mesmo tipo de evolução. Não há nada na evolução de imagens assistidas que nos permita identificar a ordem original de filmagem! No Modelo de Ehrenfest essa é a forma pela qual a reversibilidade se manifesta.

Mas afinal essa história tem um final feliz ou não? Do ponto de vista da vida pessoal de Boltzmann a história terminou em tragédia. Em 1905 ele se suicidou. É impossível saber o que o levou a esse gesto de desespero, mas podemos imaginar que a violenta campanha de descrédito movida contra ele tenha contribuído para isso.

Do ponto de vista científico essa história não terminou ainda. O projeto de Boltzmann deu origem a uma nova área de pesquisa chamada Mecânica Estatística que continua a se desenvolver com grande ímpeto. Não é exagero afirmar que a Mecânica Estatística teve e continua tendo uma influência gigantesca sobre nossa maneira de entender fenômenos naturais. Do ponto de vista da Matemática, o projeto de Boltzmann motivou a criação de novos modelos e resultados, influenciando de maneira duradoura a Teoria das Probabilidades e motivando a criação da Teoria Ergódica.

Referências

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  1. Neutrino velocity consistent with speed of light. Symmetry Magazine, ago. 2018. Disponível em: https://www.symmetrymagazine.org/breaking/2012/06/08/neutrino-velocity-consistent-with-speed-of-light
  2. GALVES, Antonio. A angústia do matemático Ludwig Boltzmann - 1ª parte. Academia brasileira de ciências, set. 2018. Disponível em: http://www.abc.org.br/2018/09/10/a-angustia-do-matematico-ludwig-boltzmann/
  3. GALVES, Antonio. A angústia do matemático Ludwig Boltzmann - 2ª parte. Academia brasileira de ciências, set. 2018. Disponível em: http://www.abc.org.br/2018/09/10/a-angustia-do-matematico-ludwig-boltzmann-segunda-parte/
  4. GALVES, Antonio. A angústia do matemático Ludwig Boltzmann - 3ª parte. Academia brasileira de ciências, set. 2018. Disponível em: http://www.abc.org.br/2018/09/10/a-angustia-do-matematico-ludwig-boltzmann-terceira-parte/


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