Utilizador:Solstag/Comentário/Compartilhamento Legal
- Comentando Compartilhamento Legal por Tereza Kikuchi
Ni!
Oi Tereza,
Eu gosto muito da ideia por trás do Compartilhamento Legal, porém ela mistura alhos com bugalhos por falta de clareza analítica e, em síntese, não funciona como proposta.
Contudo, enquanto a proposta é inviável e até nociva, é possível aprimorar a ideia por trás.
Primeiro é preciso entender que essa ideia tem três elementos:
1) financiamento estatal complementar para a cultura
2) mecanismo de democracia direta
3) novo tributo, contribuição social
Ou seja, O Compartilhamento Legal é uma proposta de financiamento estatal complementar da cultura por um mecanismo de democracia direta viabilizado por uma nova contribuição social.
Portanto única coisa inovadora e interessante na proposta é o mecanismo de democracia direta (2) que… ops, ela não apresenta em nenhum detalhe!
Sobre (2)
A ideia que a proposta apresenta muito vagamente, de conta downloads, é impraticável. Há incontáveis maneiras de viciar um sistema desse, ou jogar com ele. E dificilmente isso poderia ser feito de forma confiável sem violar a privacidade. Por fim, reduzir o valor da cultura a um concurso de popularidade é muito problemático, principalmente pela mensagem conceitual, mas também por questões práticas de obras com custos de produção e públicos distintos.
Enquanto alguns setores, como intérpretes de música popular industrializada de baixo custo de produção, que na prática já nem dependem de direito autoral, vão gerar milhões de downloads, outros, como livros de arte contemporânea inspirada na antiguidade etrusca, que podem tomar anos da vida de algumas pessoas para produzir um único item, vão quando muito ter uns poucos milhares de acessos.
Mesmo que setorializado, não há uma forma justa de adequar o paradigma. É muito microcosmo e diversidade para depender de articulação política. Imagine que até pra dividir as migalhas atuais do MinC e dos estados as áreas da cultura já tem dificuldade de se articular como blocos macro. Fora que, setorializando, já subiu no telhado a ideia de democracia direta. E esse é apenas um dos problemas dessa ideia de contar downloads.
No fundo, apesar da aparência e da intenção, ela não é nada democrática.
Sobre (3)
Outra questão que eu considero problemática é impôr um tributo sobre um serviço cada vez mais essencial para a vida e a cidadania. Tornar o acesso à Internet mais caro do que já é não pode ser a saída para promover a cultura. É contraproducente e, eu diria até, vil. Ainda que eu tenha certeza que a proposta é feita na melhor das intenções.
Sobre (1)
Antes que alguém comente “ah, não gosto de financiamento estatal”, é bom lembrar que o direito autoral é uma forma de financiamento estatal, apenas regulada – parcialmente – pelo mercado. É o Estado quem financia o custo e garante o uso da polícia e dos tribunais para garantir uma lei que reprime a natureza reprodutiva da cultura e limita o direito à propriedade privada. Pior, uma lei que limita até o direito humano de usar o próprio corpo para expressar-se – já pensou o que significa proibir alguém de cantar em público? Poucas leis são tão profundamente dependentes do Estado quanto o direito autoral.
Sobre (4)
Ok, não tem quatro, mas já que você provocou a propôr algo diferente… como eu disse, gosto da ideia por trás, que é essa combinação que eu desmontei entre (1), (2) e (3).
A questão (1) é pressuposta pelo problema: estamos falando de um financiamento estatal complementar em substituição ao atual financiamento estatal complementar chamado direito autoral.
Na questão (2), uma forma de implementar um sistema mais democrático e autogerido seria o Estado distribuir a arrecadação do fundo (3), seja qual ele for, na base de contrapartidas proporcionais.
Artistas poderiam cadastrar-se num sistema web no qual apenas pessoas físicas poderiam fazer doações para seus artistas favoritos. O governo, então, além de repassar essas doações integralmente, comprometeria-se a distribuir os valores do fundo segundo uma distribuição proporcional à distribuição feita pelas pessoas, normalizando contudo a um salário mínimo por ano o total de quem doou mais que esse valor.
Dessa forma, não só a opinião das pessoas conta, sem a opinião de ninguém contar demais, mas também você tem imediatamente um retorno sobre o valor relativo dos objetos culturais.
Alguém que paga pelo disco novo da banda pop poder querer dar só dois reais, porque quer doar pra várias bandas ou sabendo que alguns milhões de pessoas doarão mesmo e ainda terá o complemento do governo, mas quem doar para aquele livro de arte etrusca irá doar bem mais, na compreensão do valor da obra e do seu alcance limitado, e virá ainda a contrapartida do governo. Mais do que isso, talvez mais alguns milhares resolvam doar dois reais para o livro, pois quem sabe puderam acessá-lo gratuitamente para fazer o trabalho escolar do seu filho, sendo que ordinariamente essas pessoas jamais sequer teriam acesso a uma publicação dessas, que costuma ser caríssima.
Esse sistema, evidentemente e como você discute muito bem no seu texto, precisa facilitar também o outro lado, voltado para os próprios autores, das relações de atribuição, coautoria e trabalhos complementares na obra. Se é que faz sentido chamar de complementares, ao invés de considerá-los autores responsáveis por diferentes aspectos – no caso de um livro, o texto, diagramação, capa, ilustrações etc.
Bem, já escrevi demais hahaha… só pq eu sei que vc não vai reclamar ; )
E talvez a pergunta seguinte seja: dá pra fazer isso sem o governo? Ou seja, sem (1)?!
Um link pra inspirar… http://www.humblebundle.com/
Beijão,
ale .~´
- Respondendo ao Miguel Vieira
Ni! Opa, você entendeu direitinho.
E, decerto, quando eu digo "um salário mínimo" é só uma sugestão inicial de algo que parece fazer sentido (uma "educated guess"), mas isso precisaria de uma constante e transparente análise.
Sobre a proposta do Stallman, o negócio da raiz não me parece mais que uma maneira tosca de tentar atenuar os defeitos do sistema equivocado da contagem de downloads.
Tipo "tira uma raiz, 'there I fixed it'". Pra mim isso sugere que ele tem um entendimento superficial da economia da cultura. Ele ou está supondo que o sistema é viável, mas preocupado com desigualdade na distribuição, e nesse caso a proposta dele é uma gambiarra tosca que só faz sentido pra contagem de downloads - que eu considero irremediavelmente equivocada, - ou ele está supondo que desigualdade é o grande risco ao funcionamento do sistema, só que desigualdade não é sequer um problema para a viabilidade do sistema, os problemas são ignorar as diversidades intrínsecas dos objetos culturais e no poder econômico dos indivíduos.
O que eu proponho é resolver o primeiro problema estimulando os artistas a "negociar" com os indivíduos o valor das doações, tornando transparentes os custos da obra, e o segundo problema limitando a influência individual a um patamar comum.
Posto isso, distorcer essa influência acumulada já de forma democrática por qualquer fator apenas desincentivaria as pessoas a doar, desincentivaria artistas de qualquer repercussão - mesmo que modesta - a participar, e eventualmente invalidaria projetos culturais mais ousados e de amplo interesse, deslegitimando e e retirando recursos do sistema - mesmo que a participação nele fosse automática.
Lembrando sempre que esse é um sistema de financiamento, complementar a outros - estatais ou não. Certamente há áreas e condições que continuarão precisando de apoio na forma de editais e mecenato, assim como há hoje com o direito autoral em pleno vigor.
Voltando à questão da desigualdade, porque apesar da solução do Stallman ser tosca é algo consequente no formato das propostas...
A desigualdade na cultura tem duas fontes intrínsecas a ela: o próprio direito autoral, com o qual se controla tanto as referências das pessoas quanto a matéria-prima da cultura que é ela própria, e a concentração da mídia, com a qual se controla a atenção e as opções das pessoas.
Nisso, o parâmetro efetivo para um sistema de compartilhamento legal combater a parcela da desigualdade gerada pelo direito autoral é a transformação da própria lei.
E há dois níveis de transformação que afetam essa desigualdade. Primeiro é o nível de circulação, com a eliminação das barreiras ao acesso à cultura, estática e fora de circuitos econômicos, que é pressuposto em qualquer sistema de compartilhamento legal - e também é só do que fala a proposta original do Volker.
Isso tem um impacto educacional grande, mas não transforma diretamente a economia nem a sociedade, pois o grosso da desigualdade cultural não é baseada no controle da circulação, e sim no controle da resignificação pela transformação e, destacadamente dentro disso, o uso econômico para dar escala a essas transformações.
Portanto o outro nível de transformação da lei, que traz as consequências mais profundas contra a desigualdade, só ocorre se o sistema proporcionar, de alguma forma, a abolição do direito patrimonial de autor - seja pelo uso de licenças livres ou pela mudança de fato da lei, - preservando apenas o direito moral à atribuição, com as punições já existentes para quem fraudar autoria ou omitir derivação.
Ou seja, quanto mais a ideia de compartilhamento legal se restringir apenas à circulação, menos ela contribui para a redução do grosso dessa desigualdade.
Por fim, há a parcela da desigualdade relacionada à concentração da mídia. Aí, para além de remover o fortíssimo feedback positivo entre ela e a parte originada no direito autoral, ao remover esta e oferecer um canal alternativo e democrático de organização, não vejo o que um sistema de compartilhamento legal pode fazer sem descaracterizar-se a ponto de estar fadado ao fracasso.
O problema da concentração da mídia é muito maior, e muito mais profundo, do que qualquer questão de direito autoral. A briga aí, como vocês sabem, vai pra liberdade da rede, concessões de TV e rádio, regulamentação da imprensa, divisão e financiamento da infraestrutura de telecomunicação, uso do espectro eletromagnético etc.
Bichos de setenta e sete cabeças que nenhuma classe ou movimento isolado, quiçá unidos, tem força para enfrentar.
Abs! l e