Wikinativa/Caripunas-do-amapá

Os Caripunas-do-amapá são um grupo indígena que habita o Norte do estado brasileiro do Amapá, mais precisamente nas Áreas Indígenas Galibi, Uaçá I e II, e Juminá. As línguas faladas pelo grupo são o português e o patois.[1]

A origem histórica dos Caripuna ou Karipuna remete a quatro principais processos migratórios.[2] O registro mais antigo é o da migração do povo Yao para a foz do Rio Oiapoque, ao se refugiar dos avanços militares espanhóis sobre a ilha de Trinidad em inícios do século XVI. Já no século XIX, três outros grupos se deslocam para a região: grupos Tupi, escapando dos conflitos da Cabanagem (1835-1840); mineradores de origem santa-lucense, árabe, chinesa, brasileira e guianense, que chegam com as notícias de ouro datadas de 1854; além de ex-escravos de origem africana que, ao longo desse século, conseguiram escapar do trabalho forçado.

Introdução editar

Os Karipuna fazem parte do complexo de povos indígenas da região do baixo rio Oiapoque, que estão inseridos em redes amplas de intercâmbio, que englobam famílias índias ou não-índias estabelecidas em aldeias e cidades vizinhas, no Brasil e na Guiana Francesa. A despeito de tratar-se de uma sociedade com fronteiras pouco precisas, fluidas e indefinidas, dados os constantes intercâmbios, intercasamentos e realocações das famílias, os Karipuna utilizam a expressão “nosso sistema” para definir um conjunto de práticas, conhecimentos e crenças que consideram próprias, englobando conhecimentos xamanísticos e católicos.[3]

Lingua e Nome editar

Os Karipuna falam português e patois, que é a língua franca da região, mas que apresenta variações do patois falado por outros grupos indígenas e, principalmente, do patois de Caiena. O termo “Karipuna” é usado como autodenominação por essa população e indica uma identidade de “índios misturados” ou “civilizados”, que é tanto atribuída como assumida pelas famílias Karipuna.[4]

História editar

Sobre a história mais geral da região, cabe enfatizar que, no palco comum do Oiapoque, diversas etnias indígenas, pertencentes aos troncos lingüísticos Aruak, Karib e Tupi, desde o século XVI conheceram o contato com os europeus, com suas diferentes nacionalidades e intenções: franceses, portugueses, holandeses, ingleses, membros de expedições missionárias, comerciais, armadas, científicas. Cada qual, entre nativos e estrangeiros, de acordo com as contingências e interesses próprios, estabeleceram alianças, trocas ou fizeram guerras. Nesse processo, ao qual, nos séculos subseqüentes, uniram-se populações negras refugiadas ou alforriadas, bem como grupos indígenas foragidos de perseguições, algumas etnias indígenas desapareceram, outras fundiram-se ou foram incorporadas em grupos maiores, ou­tras ainda se formaram, processos que geraram os atuais povos indígenas do Uaçá. Particularmente, a população Karipuna do Curipi resulta assim da fusão de diversas etnias.

Foi apenas no século XX que os grupos do Uaçá conheceram uma presença mais constante do governo brasileiro, bem como de órgãos missionários. Essa história mais recen­te foi fundamental para a elaboração de uma identidade conjunta atualmente com­partilhada por esses grupos. Ao mesmo tempo, de acordo com as diferentes atitu­des de cada povo frente à atuação desses órgãos governamentais ou missionários, traços específicos vão se imprimindo em suas culturas, atualmente usados como fatores de diferenciação dos grupos.

A virada do século XIX/XX representa um momento decisivo para esses grupos, pois é definido que a região do Uaçá, disputada com a Guiana Francesa, seria parte do território brasileiro. A partir da década de 1920, as autoridades brasileiras julgaram necessário exe­cutar projetos de ocupação do antigo território contestado, cujas populações con­sideradas "afrancesadas" eram vistas como ameaça à garantia da integridade territorial.

Em 1920 foi criada a Comissão Colonizadora do Oiapoque, que percorreu a fronteira em viagem de reconhecimento, e cujas con­clusões alardearam a necessidade de colonizar a região com "elementos nacionais". Acima da vila Martinica (atual sede do município de Oia­poque), a comissão propôs a construção da Colônia Agrícola de Clevelândia, fundada oficialmente em 1922, recebendo colonos provenientes do Nor­deste. Em 1924, essas famílias de colonos tiveram que dividir os alojamentos com 1.630 presos políticos, opositores do governo de Artur Bernardes. No ano seguinte, presos e colonos foram vítimas de uma grave epidemia, e os sobrevi­ventes foram transferidos para a vila Martinica.

Tendo fracassado a empreitada colonizadora, o governo volta sua atenção para as populações indígenas. Em 1927, o rio Oiapoque é percorrido pela Comissão de Inspeção de Fronteiras do Ministério da Guerra, comandada pelo general Rondon. Os relatórios produzidos pela Comissão mencionam as etnias da bacia do Uaçá, com os mesmos etnônimos usados atualmente, e ainda apontam para a necessidade de criação de um posto indígena e de uma escola, como primeiras instituições desti­nadas a "incorporar os índios à sociedade".

Foi também na década de 1920 que Curt Nimuendaju realizou sua pesquisa entre os povos do Uaçá, especialmente entre os Palikur. Esse trabalho, juntamente com aqueles realizados nas décadas seguintes por Eurico Fernandes (1948, 1950), são os únicos registros de cunho et­nográfico que temos sobre os índios da região na primeira metade do século XX. De acordo com as informações de Nimuendaju, Karipúna refere-se a "um número bastante grande" de falantes da Língua Geral Tupi, fugitivos das missões do Cunani e Macari que migram para o Oiapoque no final do século XVIII, juntamente com índios Aruãs, após ter havido o despovoamento da região pelos portugueses.

Na década de 1930 ocorreu um incremento de explorações econômicas no território ocupado pelos índios. Uma usina de extração de pau-rosa funcionou no Curipi de 1932 a 1935, até o esgotamento dessa madeira, tendo empregado vários Karipuna. Explorações auríferas foram realizadas principalmente por crioulos nos rios Oiapoque e alto Uaçá. Do ponto de vista das políticas governamentais, ocor­rem nessa década três fatos importantes para as populações do Uaçá: a implanta­ção de escolas primárias em 1934, a expedição de 1936 de Luís Thomas Reis, envia­do para a área como inspetor de fronteiras para verificar a possibilidade de utilizar a população indígena como "guardas de fronteiras", e a nomeação de Eurico Fernan­des, que já tivera anteriormente contato com os povos do Uaçá, como inspetor dos índios.

O reconhecimento oficial das populações do Oiapoque na categoria de "indígenas", que implicava a nomeação de um Inspetor de Índios como agente do SPI, deve ser entendido como uma medida governamental visando o controle daquela população de fronteira. As famílias das aldeias foram imediatamente consideradas "índias", não havendo necessidade de averiguar seus traços culturais, como ocorreu em outras regiões, notadamente no Nordeste, onde as estratégias de controle se deram justamente através da negação da condição de "indígenas".

Conforme se de­preende dos relatórios de Inspeção de Fronteiras, a necessidade da escola, ideali­zada como escola profissional, estava vinculada à necessidade da "formação de trabalhadores nacionais", devidamente controlados por meio da construção de um posto indígena que contaria com o "apoio social e político" do destacamento militar de Clevelândia. O projeto de escola, portanto, pautava-se no ideário posi­tivista, nacionalista, coercitivo e autoritário comum àquela época, base ideológica do próprio Serviço de Proteção ao índio.

Re­sumidamente, pode-se dizer que em 1934 duas professoras foram contratadas pelo governo para lecionarem na vila Espírito Santo no Curipi e em Santa Maria dos Gallibis no Uaçá (atual aldeia de Kumarumã). As escolas funcionaram nas casas dos chefes das aldeias durante apenas três anos. Em 1945, através do SPI, a escola foi novamente ativada no Uaçá e no Curipi, dessa vez na aldeia Santa Isabel, onde funcionava o estabelecimento comercial do líder Coco.

Ainda que aparentemente precária e descontínua, a educação escolar teve fundamental importância para a formação da atual identidade desses grupos, para a propagação do uso do português e para a configuração das aldeias. Noções cívicas como o hasteamento da bandeira, a comemoração do Sete de Setembro, o hino nacional e a prática cotidiana do jogo de futebol foram alguns dos legados introduzidos pela escola.

A partir da década de 1950, com a saída de Eurico Fernandes, o controle do SPI deixa de ser tão marcan­te, havendo uma diminuição dos projetos, uma abertura para entrada de regatões, menor controle e até incentivo dos casamentos com não-índios. Com a diminui­ção dos recursos, a atuação do SPI torna-se menos eficaz, e o novo agente deste órgão volta-se para acordos com políticos locais, incentivando o alistamento eleitoral dos índios e estabelecendo uma política clientelista. Os Karipuna são os que mais participam desse alistamento e logo passam a votar de acordo com as indicações de seus líderes, contrariando as do próprio agente do SPI.

Em 1962, o mesmo agente entrou em acordo com a Colônia Militar de Oiapoque, autorizando a instalação de fazenda de bubalinos na ilha Suraimon, próxima da aldeia Galibi. Foram vá­rios os conflitos decorrentes da instalação dessa fazenda. A criação da Funai, em 1967 (órgão oficial sucessor do SPI), muda o quadro administrativo da região, com a criação de dois postos indígenas: PI Kumarumã e PI Palikur. A população Karipuna con­tinua sendo atendida pelo PI Encruzo até o final da década de 1970, quando é construído um posto no Curipi.

A presença do Cimi, nas pessoas de padre Nello Ruffaldi e irmã Rebecca Spires, será importante para o desenvolvimento de uma identidade conjunta aos quatro povos indígenas do Oiapoque. Por meio do contato com as aldeias indígenas, Nello Ruffaldi, pároco de Oiapoque desde 1972, se aproxima da linha do Cimi e inicia projetos voltados para a autonomia dos grupos e para a valorização de aspectos de suas culturas (como o próprio idioma patois). Entre os projetos destacam-se o cimento das cooperativas de comércio (que chegaram a dar alguns resultados, mas acabaram fechando até o final da década de 1980), o incentivo à organização de assembléias políticas e os projetos para educação diferenciada. Esses dois últimos com resultados visíveis e crescentes em nossos dias.

A década de 1970, portanto, foi marcada por uma maior participação política das lideranças do Uaçá, que passaram a atuar de forma mais organizada. Conjuntamente opuseram-se à fazenda Suraimon (que chegou a ser desativada no início dos anos de 1980) e iniciaram um processo de reivindicação pela demarcação e homologação de suas terras. Foram bastante pressionados pelo governo do território em 1980, quando te opuseram ao traçado proposto para a rodovia BR-156 (Macapá-Oiapoque), prevendo a perda das cabeceiras dos rios Uaçá e Curipi. Nessa ocasião, o padre Nello Ruffaldi foi acusado de insuflar os Índios, sendo ameaçado de expulsão do país. O chefe de posto Cezar Oda foi afastado do cargo sob acusação de divulgar livros e panfletos "subversivos". As lideranças acabaram aceitando o traçado da rodovia e assinaram termo de compromisso que previa, entre outras coisas, a construção de postos de vigilância junto à estrada e a contratação de chefes de postos indígenas para auxiliar a fiscalização das fronteiras do território indígena.

Apesar de derrotas como essa, que acabaram abalando a confiança das famílias nos líderes que assinaram o termo de compromisso, o processo de organização das lideranças e de participação política não esmoreceu. As assembléias indígenas do Oiapoque, inicialmente promovidas pelo Cimi e incentivadas pelos chefes de posto, passaram a ser cada vez mais promovidas e organizadas pelos próprios índios. Atualmente, são conhecidas em todo o Estado do Amapá e consideradas como exem­plos de organização. Quanto à participação na vida política da região, a atuação de algumas lideranças, que antes dos anos de 1970 limitavam-se ao estabelecimento de alianças com políticos locais, passa a ter um caráter mais conjunto e integrado. Nesse processo, uma identidade mais geral de "povos indígenas do Oiapoque" tornou-se visível.

Os frutos mais positivos do processo de participação política e de autonomia dos grupos indígenas revelaram-se principalmente na década de 1990, destacando-se a homologação definitiva das terras indígenas do Oiapoque em 1992, a criação da Associação dos Povos indígenas do Oiapoque, no mesmo ano, a formatura de treze professores indígenas no curso pedagógico em 1995, e a eleição do índio Galibi-Marworno João Neves à prefeitura do município de Oiapoque em 1996.

Esses grupos, cujas gerações anteriores absorveram a "moral cívica" trazida pela escola, atualmente vivem um processo de valorização das tradições indígenas, buscando recuperar a própria história e os conhecimentos que consideram tradi­cionais.[5]

Organização Social editar

Os povos indígenas do baixo Oiapoque estão inseridos em redes amplas de intercâmbio, que englobam famílias índias ou não-índias estabelecidas em aldeias e cidades vizinhas, no Brasil e na Guiana Francesa. O auto-reconhecimento como “índios misturados” expresso pelas famílias Karipuna refere-se à sua origem heterogênea, bem como às constantes alianças que estabelecem com indivíduos ou famílias estrangeiras. Assim, os critérios de pertencimento ao grupo dependem da concordância a princípios de solidariedade e de cooperação mútua, englobando, com o tempo, pessoas e famílias que inicialmente eram consideradas “de fora”.

Os outros grupos indígenas da região com os quais as famílias Karipuna convivem são os Galibi-Marworno, os Palikur e um pequeno grupo Galibi migrado da costa da Guiana e residente no rio Oiapoque. Os Karipuna compartilham com esses povos os traços de uma tradição ampla e regional, embora possuam suas especificidades.

Nas escolhas de casamento, observa-se um expressivo número de casamentos entre parentes próximos, incluindo sobrinhos e primos. Essas uniões, tidas pelos grupos vizinhos como incestuosas, são valorizadas entre os Karipuna por corresponderem ao ideal de "não espalhar o sangue". Nos casamentos interétnicos, há uma tendência das mulheres casarem-se com homens não-índios, enquanto os homens encontram esposas junto a outras etnias indígenas. Pode-se perceber também a tendência de repetir casamentos com pessoas de uma mesma família, mesmo quando provenientes de outros grupos indígenas. Assim, a maioria dos cônjuges "de fora" acabaram incorporados à vida nas aldeias, havendo casos em que trouxeram outros familiares para comporem novas uniões.

As duas tendências de casamento dos Karipuna – a de fechamento, manifesta na endogamia no nível da família extensa, e a de abertura, evidente na valorização de uniões com pessoas “de fora” – constituem dois movimentos, aparentemente opostos, mas que se completam na construção de um padrão próprio de organização social. Esse padrão também se relaciona com a composição das aldeias.

O padrão de sociabilidade Karipuna permite a maleabilidade do padrão residencial: de grandes aldeias às pequenas localidades que abrigam uma única família nuclear, sem que haja necessidade de considerar uma ou outra forma de residência como "típica" ou "tradicional". Isso porque a rede de sociabilidade básica para a manutenção de cada família nuclear nem é tão estreita que se esgote na população de uma pequena aldeia, nem é tão ampla que abarque a população de uma aldeia numerosa. Assim, ocorre atualmente que as famílias residentes nas pequenas aldeias dispersas encontram-se unidas a outras, compondo um círculo maior de trocas e ajuda mútua, bem como as famílias residentes nas grandes aldeias não se encontram igualmente ligadas a toda a população, mas conformam círculos menores, os quais geralmente compõem segmentos residenciais no mapa da aldeia. É no âmbito desses círculos de cooperação e ajuda mútua que é possível visualizar a constituição de grupos locais, onde opera a tendência à endogamia.

É no âmbito desses círculos que ocorrem os mutirões para os trabalhos que garantem a subsistência das famílias: feitio e manutenção das casas, feitio da farinha para consumo próprio e para a venda, por exemplo. São esses cír­culos que se articulam também para ajudar determinada família nuclear a oferecer comida e bebida num mutirão de plantar (que reúne uma comunidade mais am­pla) ou numa festa de santo blaaaaaaaaa.[6]


Referências