Wikinativa/Izabella Andrade Silva (vivencia Guarani 2019 - SMD - relato de experiência)

Povos originários, afeto e bem-viver


“Para falar do Bem Viver, é preciso recorrer às experiências, às visões e às propostas de povos que, dentro e fora do mundo andino e amazônico, empenharam-se em viver harmoniosamente com a Natureza, e que são donos de uma história longa e profunda, ainda bastante desconhecida e, inclusive, marginalizada. Foram capazes de resistir, a seu modo, a um colonialismo que dura mais de quinhentos anos, imaginando um futuro distinto que muito poderia contribuir com os grandes debates globais” - Alberto Acosta

O conceito do Bem viver aparece enquanto uma proposição que questiona a visão eurocêntrica de bem-estar -questionando o pensamento colonizador-, que se dispõe a ser um processo para se supere o divórcio entre ser humano e Natureza. Tal conceptualização se origina a partir de povos indígenas latinoamericanos e também de contribuições e outras fontes ao redor do mundo. O termo ganha evidência também no cenário de proposição política ao ser incluído, na primeira década do século xx, em Constituições de países latinos, como Equador e Bolívia.

Para além das ressalvas da aplicação de fato do conceito nas localidades supracitadas, vê-se que o Bem Viver, ainda que com muitas possíveis interpretações, aparece enquanto um meio para se atingir um equilíbrio sustentável em diversas esferas. E, isso se dá através de uma construção coletiva e comunitária, em que se diminui a dissociação entre homem e natureza, havendo uma desconstrução do humano enquanto centro, e, sim, o ser humano em consonância com a natureza. Em meio à essa descrição, não há como não se remeter às lembranças do feriado na Aldeia Guarani Rio Silveiras.

Na imersão, nós, alunos da EACH USP, pudemos vivenciar a experiência de um povo que se constrói juntamente com a natureza. Ademais, propiciou a desconstrução de possíveis estigmas, como a relação da população indigena com o meio urbanizado, um dos fatores que corrobora, por exemplo, a uma mudança de alimentação, com a ingestão de alimentos mais industrializados, como se pôde observar com algumas das crianças da aldeia comendo bolachas processadas.

Uma das características que destaco aqui em relação à imersão vivida e que se linka diretamente com o Bem-Viver é a coletividade. No decorrer de toda a viagem, nos observei produzindo, debatendo e construindo juntamente, e não apenas entre si, mas com a população indigena ali residente. E, nesse sentido, destaco aqui o momento da Casa de Reza, em que senti uma abertura e entrosamento bastante grande entre os alunos e os povos originários, principalmente quando fomos todos convidados a participarmos da dança. Me tocou profundamente ver, e sentir, a sintonia em que estavamos ali, independemente, de crença individual. Pude perceber a sinergia que nos uniu a partir da música, dança, religiosidade e afeto. E não só ali, mas foi visível o afeto também no cuidado da comunidade com as crianças, que se vê, como um todo, responsável por elas.

Essa construção coletiva e afetuosa iniciou-se também dentro da sala de aula, anterior à vivência, em que em muitos momentos tivemos oportunidades de trocar uns com os outros experiências, reflexões e conversas de maneira respeitosa. Diferentemente do que se vê ao longo da graduação, a disciplina aqui abordada, mostrou que há outras formas também para se debater, discutir e aprender, pra além do modelo quadrado que se vê cotidianamente.

Por fim, cabe ressaltar que a vivência pôde estimular muitos de nós a nos colocarmos como sujeitos ativos se somando à luta pelo direito à demarcação de terra e a própria existência dos povos originários. Além de mostrar a nós, como já diz Acosta, que o Bem Viver -tendo-se em vista sua construção oriunda dos povos originários- é uma oportunidade para imaginar outros mundos para todos.

"Os indígenas não são pré-modernos nem atrasados. Seus valores, experiências e práticas sintetizam uma civilização viva, que demonstrou capacidade para enfrentar a Modernidade colonial. Com suas propostas, imaginam um futuro distinto que já alimenta os debates globais. O Bem Viver faz um primeiro esforço para compilar os principais conceitos (...)." - Alberto Acosta