Wikinativa/Júlia Mota Silva (vivência Guarani 2019 - relato de experiência)

Introdução

O presente relatório refere-se a visita de campo proporcionada pela disciplina Seminários de Políticas Públicas Setoriais III - Multiculturalismo e Direitos, da Escola de Artes, Ciências e Humanidades, da USP, ministrada pelo Prof. Dr. Livre Docente Jorge Machado. A vivência foi realizada na aldeia Guarani Rio Silveiras, localizada entre os municípios de Boracéia e São Sebastião, nos dias 15, 16 e 17 de novembro de 2019. Nós partimos no dia 15, por volta das 10 horas da manhã do Campus USP Leste, nos deparando com um engarrafamento que atrasou aproximadamente em três horas a chegada.

Durante as aulas da disciplina elaboramos um cronograma que visava proporcionar o maior número de atividades de integração e imersão possível, mas que por conta do tempo e de imprevistos não pode ser totalmente realizado, e que ainda assim alcançou seu objetivo principal: tornar aqueles três dias uma experiência extremamente enriquecedora e proveitosa.

Em todas as aulas o máximo de contato com a cultura foi muito bem explorado, no entanto nada se aproximou a imersão que tivemos dentro de um território protegido e demarcado, habitado por um número aproximado de 700 indígenas, que desempenham, dentre tantas outras atividades, uma das mais importantes para a manutenção da vida: o cuidado com o nosso planeta, por meio de um modo de vida responsável, sustentável e conectado com o que é natural.

Experiência e relato

O que vivenciamos é muito difícil, para mim, de descrever, foram muitas informações que até o momento não foram inteiramente digeridas, e, acredito eu, nem irão. No primeiro dia, assim que chegamos, fomos recebidos da melhor maneira possível, com sorrisos largos que me deixaram, sobretudo, confortável com toda a situação; a minha apreensão de parecer apenas uma intrusa foi deixada de lado, e nesse momento eu comecei a entender o aquela imersão seria.

Ainda no primeiro dia, montamos nossas barracas e começamos a conhecer melhor o ambiente, a disposição das casas e a interação que teríamos com os moradores da aldeia. Como uma das integrantes do grupo de brincadeiras, acompanhei os meus colegas e iniciamos um pequeno jogo com uma bola que levamos, junto a algumas crianças que estavam por perto; a risada era boa, e a comunicação, ainda que com alguns empecilhos, começou a desenrolar de forma muito natural. Depois do jogo e de jantarmos uma das comidas mais leves da minha vida, nos direcionamos para a casa de reza, a Opy, onde tivemos uma breve conversa e uma iniciação aos rituais que eram realizados.

Na Opy tivemos o prazer de acompanhar um canto parte de um ritual, que dividia entre os homens e as mulheres diferentes instrumentos e participação, fomos todos convidados a participar de algo inexplicável, que unia a perfeita composição de vozes graves e percussão, criando o que pareciam ondas em nossos ouvidos e no chão.

No segundo dia, acordamos pela manhã com um café reforçado, o que seria nossa única refeição por muito tempo, sem que eu sequer notasse que este passava. Fizemos uma trilha, que nos levou inicialmente a outro núcleo da aldeia, local em que tivemos uma conversa com o cacique. Fomos apresentados a um discurso recheado de exemplos de resistência, formado também por uma breve explicação de como eles se organizavam no local. Seguimos caminho em direção a uma área que podia ser adentrada apenas com a permissão do povo Guarani, e que nos guiava a uma cachoeira formada por rochas enormes.

Por volta do que seria umas três da tarde, retornamos à aldeia, e ainda que eu achasse que não teria mais energia para nada, ao chegar no local colocamos em prática umas das brincadeiras planejadas, e fizemos uma roda de apresentação incrementada com um rápido jogo de mímica. Participamos ainda de uma oficina de mandalas, que foi surpreendente por integrar as mais diversas idades, possibilitando que observássemos o comportamento das crianças, que contava com muita atenção e responsabilidade por parte delas, sem contar a habilidade com as mãos e a facilidade entender o que era proposto.

Fomos novamente para a casa de reza, onde participamos de um ritual proporcionado pelo Pajé da aldeia, esse, no entanto, foi restrito a um número menor de pessoas, já que a troca de energia e limpeza era tão forte que acabou deixando o Pajé indisposto para continuar a reza de cura.

No último dia fomos para a praia rapidamente e quando retornamos realizamos a oficina de bilboquês e participamos de uma roda, na qual os meninos menores realizavam alguns desafios, e posteriormente, estes foram abertos para todos os que estavam no local, virando uma grande roda de obstáculos.

Infelizmente, depois dessa roda, começamos a nos organizar para partir, e sob olhos caídos com a melancolia da partida, nos despedimos e retornamos a USP.

Conclusão

Uma viagem de campo tem sobre mim um efeito muito forte de retorno, retorno tanto do que eu aprendi dentro da universidade e da sala de aula à sociedade, quanto do conhecimento que se obtém por meio da vivência à minha construção como pessoa. Essa viagem me proporcionou, sobretudo, uma expansão de ideias e de opiniões. O contato direto com uma cultura diferente me fez ver além, ressignificando a minha ideia do curso de Gestão de Politicas Públicas, tirando seu teor acadêmico e reforçando a ideia da importância das ações de um Estado para minorias, me lembrando que os desafios dos que vivem na aldeia são diversos e que eu tenho em mãos uma arma poderosa para combater algumas das ameaças que os afetam.

Acredito que o que vivemos tenha sido um pouco romantizado pela quantidade de tempo que tivemos, e por termos visto apenas o que os nossos olhos enxergavam, no entanto, compreender que nada do que os moradores da aldeia passam e possuem vem fácil, foi de suma importância para filtrar qualquer pensamento que os colocasse à margem da nossa sociedade. Elxs também são parte do meio, e, penso eu, que não vê-los a margem do que somos, é o primeiro passo para a desconstrução de preceitos atrelados a nossa criação. Tratar o diferente compreendendo suas diferenças, para que ele possa ser igual.

Espero que após essa visita, a maioria de nós entenda sua posição em meio a tanta coisa e continue na luta contra esse sistema, que dentre tanto ataques, busca apagar de onde viemos e possíveis caminhos para onde poderíamos ir.