Wikinativa/Jessica Tauane F. de Souza (vivencia Guarani 2016 - relato de experiência)
Jéssica Tauane Fernandes de Souza, Nº USP 9065002
O presente relato tem como objetivo descrever as atividades e percepções individuais da viagem à aldeia indígena Rio Silveiras,localizada em Bertioga, entre os dias 28 a 31 de outubro de 2016. Na qual tivemos oportunidade de conhecer com um grupo de estudantes um pouco mais sobre a cultura indígena vivenciando suas rotinas. Estas atividades fazem parte de uma disciplina chamada politicas setoriais II, coordenada pelo Professor Jorge Machado e oferecida na Escola de artes Ciências e Humanidades- USP. Ao longo do processo de preparação, a experiência e o pós viagem, me trouxeram diversas percepções positivas, me despi de estereótipos e mitos a respeito da cultura indígena, cresci pessoalmente e profissionalmente, pois meus valores. Na minha opinião foi a melhor experiência acadêmica que tive até o momento na graduação, pois sai do ambiente formal e do meu nicho cultural para vivenciar outras rotinas e aprender diversas ações que não estavam presentes no meu cotidiano e que agora depois da viagem, de certa forma mudaram minhas percepções e atitudes. O relato é estruturado em antes, durante e depois da viagem.
Antes da viagem tivemos uma introdução sobre aspectos socioculturais da cultura indígena, através de documentários, artigos e discursões conceitos importantes para a vivencia como o relativismo cultural, no qual parte do pressuposto que cada cultura se expressa de maneira diferente, as crenças e costumes são relativos, tudo depende do contexto social, na qual estamos inseridos, o que é moral em uma sociedade pode não ser em outra, sendo assim, devemos observar ou imergir sem ter uma visão etnocêntrica e estereotipada em relação aos costumes observados. Outro ponto importante foi às reflexões sobre o tempo cronológico que também é relativo e socialmente construído, pois cada sociedade tem seu ritmo. Também houve discussões bem relevantes sobre a questão política , como a PEC 241, política etnocêntrica que em como objetivo dizimar a cultura indígena. Todas estas questões me ajudaram a entender melhor as características desta cultura e os direitos pelo quais lutam.
Estas discursões e documentários, criei expectativas que não fugiram muito da realidade que vivenciei, porém eu tinha algumas ideias equivocadas, porque pensei que as crianças de 0 a 5 anos não falariam português, pois ainda não frequentaram o 1 ano do ensino fundamental ou período de alfabetização; também achei que o pajé e o cacique seriam idosos, e quando cheguei vi que não era bem isso. Um outro fator que foi importante para a preparação da vivencia foi a vista à aldeia Tenondé Porã no Jaraguá. Pois, na conversa com a liderança da aldeia, percebi o quanto a demarcação de terras está dissipando a cultura indígena, o espaço que eles vivem nesta aldeia é muito pequeno e a vulnerabilidade apresentada no espaço afeta todos. Após esta vivencia se iniciou a preparação das atividades que iriamos desenvolver na aldeia, o tema do meu grupo foi artes, sendo assim, criamos algumas intervenções artísticas que contribuíssem para uma maior integração dos estudantes com a aldeia, e fiquei muito grata em poder incluir o violino na atividade, porque são raras as vezes em que trago a música para outros ambientes que não sejam orquestras e apresentações formais, por isso levar o violino para uma aldeia foi uma experiência totalmente nova e divertida.
No dia da viagem eu acordei animada e ansiosa para chegar na aldeia e vivenciar as experiências na qual eu estava me preparando ao longo do semestre, a agitação já começou no ônibus com um grupo de artes, pois estávamos tocando e cantando diversas musicas, não sei se foi um incomodo para as outras pessoas que queriam viajar em silencio, espero que não, mas paramos para pensar nisso só depois, porque no momento a euforia era muito grande. quando chegamos na região onde se localiza a aldeia já ficamos pasmados com a praia maravilhosa que é bem perto e todos os espaços verdes em torno, e quando íamos entrando na aldeia fiquei impressionada ao ver diversas casas com paredes de madeira e teto de palha, era encantador.
Quando chegamos fomos para um espaço em frente a casa de reza, onde montamos as barracas para acampar, neste momento me encantou a solidariedade das pessoas que me emprestaram colchão para dormir e lona para cobrir as barracas, as crianças também se mostraram prestativas a todo o momento. Com tudo organizado, deu inicio as brincadeiras e neste momento me senti uma criança, pois o verde das arvores e o espaço lúdico me trouxe a lembrança da minha infância, época em que vivia no interior e brincava sem se preocupar com o tempo, pessoas e afazeres, me sujava caia e levantava rindo. Neste momento nostálgico revivi muitas brincadeiras e ações que há algum tempo praticava como, cantigas de rodas, pular corda com outras pessoas, andar descalço, comer sentada no chão, fiquei muito grata de poder reviver este momento. Durante a alimentação vi muitas pessoas deixarem as frescuras de lado e não se importarem com o que tinha, comeram quase de olhos fechados. Eu gostei muito da comida, principalmente no dia em que teve peixe, nossa era maravilhoso, neste momento havia pessoas que não suportavam comer peixe e que no fim lamberam os dedos e pediram mais. O pão feito fubá ( esqueci) feito também era muito gostoso. Outro momento que me encantou foi acordar todos os dias com o canto daqueles passarinhos eu nunca havia ouvido tantos passarinhos cantando junto, parecia um coral de pios.
Todos os dias da experiência a noite íamos a casa de reza, e foi um dos momentos mais emocionantes da viagem, porque quando entrei e vi o tudo escuro e silencioso, me sentei e observei a dinâmica da reza, foi totalmente diferente do que eu imaginava, era um ambiente místico e transcendental, quando começou o toque do violão fechei os olhos e agradeci a Deus por estar vivendo aquele momento encantador e muito importante desta cultura, aquelas músicas me trouxe calma e me fizeram refletir sobre minha vida, depois juntou a voz de todos os índios em tupi, isto me tocou profundamente, eu não entendi nada do que estavam dizendo, mas senti a paz que aquela musica me trouxe. No final dessa dinâmica o pajé nos contou sobre a tradição na casa de reza e o quanto isso é significante para eles, nos esclareceu sobre os rituais de passagem de menina para mulher e de menino para homem, foi muito interessante, pois eu nunca so já ouvi falar de outros, tamém gostei muito de saber sobre a marcação temporal deles para transitar para uma outra fase do ciclo de vida, pois em nossa cultura estes marcadores sociais se dão pela maioridade, casamento, emprego, geração de filhos, aposentadoria, entre outros fatos que determinam nosso papel na sociedade, diferente deles. E nesta conversa foi importante saber o quão importante é o fumo e o cachimbo na cultura guarani e que estes nos rituais e rezas são usados para a purificação. Nas outras atividades preparadas por eles como nadar no rio, fazer a trilhas para cachoeira e jogar futebol foram momentos marcantes na viagem. No banho de rio foi engraçado, porque demorei muito para entrar na água que estava gelada, mas depois não quis sair mais. Na trilha para a cachoeira era linda a paisagem ,eu já sou acostumada a fazer trilhas com amigos frequentemente, porém percebi que havia pessoas que nunca tinham trilhado a mata, desse modo criou uma desorganização e a metade do grupo de perdeu na mata e acabamos não indo para a cachoeira, mas o rio foi maravilhoso, pois o banho de água fria deixava meu corpo leve. No futebol que ocorreu no terceiro dia foi decepcionante meu desempenho queria ter feito pelo menos um gol, mas perdemos de 5x0 para as indígenas elas jogam muito bem, arrasaram.
Nesta mesma tarde após o jogo estava conversando com uma mulher de 41 anos que já era avó de um menino de 5 anos e nessa conversa ela relatou como é o relacionamento com os que estão fora da aldeia, que muitas vezes são os próprios filhos que se casaram com um não- índio, disse também que sua filha casou com um "branco" e não está feliz no casamento e quer voltar para aldeia, mas ela não pode deixar porque já tem filhos, e esta e a lei da aldeia se a pessoa casar e ter mais de um filho com um não indígena de quiser separar para voltar para aldeia , não poderá regressar, ela disse também que é cuidadora da pessoa mais velha da aldeia, neste momento não resisti e pedi para conhecer esta senhora. Nossa para mim foi o momento mais marcante quando vi a pessoa mais velha da aldeia ela era linda, porém não enxergava e não escutava somente sentia, e quando a toquei me senti emocionada, pois ela ficava ali distante do contato com outras pessoas e foi muito significante, pois eu estudo gerontologia( estudo do envelhecimento) e nunca havia conhecido uma idosa indígena longeva. Sua cuidadora disse que ela tem 110 anos, porém não tem certeza, e fiquei muito grata por ela abrir a porta de sua casa para receber eu e algumas outras pessoas que ficaram interessadas em conhecer a idosa indígena.
Na noite do segundo dia foi passado 3 documentários indígenas neste momento percebi que eles prestavam muita atenção no filme, alguns eu não entendi porque estava em guarani , mas esta atividade foi excelente, pois trouxe um momento muito importante em que refletimos juntos sobre a cultura indígena. Outro momento muito significante foi a noite do terceiro dia, pois na casa de reza houve um momento espiritual muito intenso no ritual de purificação, pois envolveu todos os que estavam presentes, de modo que muitos choraram e inclusive eu, depois desse momento vi como é um culto a Nhanderu (Deus), e com a explicação do pajé, compreendi que eles não tem vários deuses como generalizam para nós, e isso foi outro estereótipo que deixei, pois desde criança ouvia dizer que os índios tem vários deuses como o da chuva, trovão, sol, entre outros, porém isso é só uma mitologia, ou não é igual em todas as tribos, pois não existe esta realidade entre eles. Depois da casa de reza fomos participar uma dança típica com eles e foi muito divertido, porque toquei violino com um menino e a forma dele tocar era totalmente diferente do que aprendi, para acompanha -lo precisou desafinar meu violino, foi perfeito este momento, porque eu nunca havia imaginado aprender a tocar de um outro jeito e adorei, é bem mais simples, no modo deles não há que ter uma postura especifica ou ler partituras, ou seja, eles não tocam de forma sistematizada como o modelo europeu, é bem melhor, porque dessa forma eu senti mais a musica e não me preocupei em errar. No ultimo dia antes de ir embora fiz algumas pinturas no braço e reforcei as que tinha no rosto, era muito bonito e o significado era coragem. A despedida sempre é um momento difícil, mas foi a hora em que refleti sobre tudo o que aconteceu e sai muito grata daquele lugar, onde revi meus valores e aprendi na pratica como é a realidade indígena.
No pós viagem eu cheguei na faculdade no horário de aula, entrei na sala com um mochilão e o rosto todo pintado e foi um impacto enorme na sala, todos perguntavam de onde vim e porque não tirei aquela pintura do rosto, no metro todos me olhavam também, no dia seguinte tive que ir para o estagio na UBS ( unidade básica de saúde) e usar jaleco com o rosto pintado que não era algo comum, então mais uma vez me perguntaram o porque daquilo, se passou mais uns dias e fui para o ensaio da orquestra em que toco e ali também todos me olhavam com um ar de espanto.Esta dinamica pós viagem me fez refletir muito também, primeiro porque foi um modo de transmissão da experiência, ou seja, todos que me perguntavam o que aconteceu com meu rosto e eu tinha que contar sobre experiência, talvez se meu rosto não tivesse pintado eu não iria contar em todos estes ambientes sobre a viagem, outro ponto que me fez refletir foi o fato de muitas dessas pessoas me olharem com espanto, fui chamada de louca varias vezes, sempre havia alguém que dizia " e aí quando você vai tirar isso do rosto" porque era incomodo me ver daquele modo. Se eu que não sou indígena e senti tudo isso imagine eles quando vem para estes ambientes ? Creio que vivenciam um sentimento excludente devido o olhar das pessoas, pois foi assim que me senti em todos estes espaços em que estava com o rosto pintado, também ouvi o mesmo relato de outros alunos, somente quem passou uns dias com o rosto pintado, entendeu na pele como a sociedade encara as diferenças, seja ela por cor, sexualidade ou outas formas de manifestações, por exemplo a pintura indígena no rosto.
Portanto, reafirmo que esta experiência foi a melhor que tive no ambiente acadêmico até o momento, pois vivenciei aspectos que não aprenderia lendo somente textos ou assistindo vídeos sobre indígenas, a vivencia ultrapassou todos os materiais que tive sobre esta cultura. Na minha opinião a pratica é melhor do que a teoria. Entretanto, a teoria é muito importante, pois se não tivesse aprendido os conteúdos iniciais talvez não seria tão rica a experiência. Agradeço ao a todos alunos que participaram, ao grupo de extensão pela contribuição e aprendizado e ao Profº Jorge que junto com o Carlos criaram esta ponte de comunicação com a aldeia Rio Silveiras. Já estou com muitas saudades do local.