Wikinativa/Julia Valle (vivencia Guarani 2022 - SMD - relato de experiência)


Imersão no paraíso: uma experiência transformadora.


Este relato trata-se da observação participante da aluna Julia Valle Silva, durante a viagem de campo para a Aldeia Guarani Rio Silveiras, realizada nos dias 4, 5 e 6 de novembro de 2022, através da disciplina “Seminários de Políticas Públicas Setoriais II” ministrada pelo Prof. Jorge Machado.

O objetivo dessa pesquisa e da disciplina em si é a busca por aproximar o olhar dos estudantes, que experienciam, em sua maioria, uma cultura e modo de vida civilizatório e/ou urbano, ao modo de vida e tradições de comunidades tradicionais indígenas. Ao abordar e buscar compreender uma realidade diferente da nossa, a partir de um viés mais voltado ao relativismo cultural, em que parte do pressuposto de estar adentrando e observando uma cultura, um modo de vida, seus elementos e valores do ponto de vista dela própria, dentro de seu conceito, e não a partir da cultura em que estamos inseridos (Wikipedia), para que assim seja possível elaborar modelos e conceitos a respeito das diversidades culturais, sem o viés do preconceito etnocêntrico (Meneses, 1999).

Partindo disso, irei iniciar o relatório da minha pesquisa de observação participante, que desempenhei durante a vivência. Tenho para mim que esta experiência foi quase como um intensivo de aulas, mas não do modo convencional que conhecemos, algo muito além disso, foram aulas de valores, de comportamentos, de elementos culturais e tradicionais, de respeito, de empatia, de união, de uma percepção sobre o que é uma sociedade, de luta, de preservação, de um entendimento do todo e de que nós fazemos parte dele, de cuidar, de entender que se o outro sofre isso também nos afeta, e tantas outras coisas importantes e especiais…..

Essa experiência me proporcionou grandes aprendizados, ao iniciar com a recepção e disposição dos indígenas da Aldeia Guarani Rio Silveiras em receber, a nós, juruas, em sua terra sagrada, seu território, e casa. Diferente de anos anteriores, senti falta da presença de mais adultos, desde o princípio, mas não senti diferença na recepcionalidade, sempre com respeito e acolhimento, mesmo tendo todos os motivos históricos e vivos de não quererem que nós ocupassemos aquele lugar que é de tanto valor para eles. Me fez refletir em como as diferenças são percebidas por eles, e aceitas e respeitadas.

Chegamos a noite, e não demoramos muito para ir a casa de reza, lugar extremamente sagrado aos indígenas, onde fomos recebidos e acolhidos. Esta primeira reza foi ministrada pela filha do pajé, que estava de cama por motivos de saúde. Foi emocionante e enriquecedor ouvir sobre as tradições culturais e religiosas da cultura indígena, entender as subjetividades que a compõem, seus símbolos e valores. Ouvir mais sobre Nhanderu, denominação de Deus para indígenas Guarani, sobre como para eles é mais fácil compreender a ligação de todas as coisas, do todo, do mundo, e de fazerem parte disso. Como a mãe natureza é louvada e respeitada pela cultura indígena, que entende o seu real valor, de uma mata em pé, de rios limpos, de animais vivos. Mesmo tendo dificuldades quanto a alimentação naquele território, por motivos ligados às limitações de cultivo no território, e de acesso a alimentos direto da terra, que sempre fez parte da cultura dessa comunidade, ouvir-lhes dizer que não pescam e caçam determinados animais para não pôr em risco a sua existência, evitando assim a sua extinção, me tocou muito, mesmo com pouco, precisando em alguns momentos de mais alimentos nesse sentido, tendo que recorrer a uma alimentação industrializada, eles prezam pela vida, pela conservação de um bem maior que é a natureza e seus processos, que nos permitem estar estar vivos aqui na terra, todos nós. Os indígenas são e sempre foram os guardiões dessa terra que lhes foi roubada e ainda é.

Também me interessou muito saber a respeito da escola indígena que integra a Aldeia, perceber que, como todos os outros direitos, este foi mais um que fez parte de uma luta da comunidade para que houvesse o ensino desde o primário até o ensino médio dentro da Aldeia, voltado a comunidade indígena. E além disso, sendo uma escola fundada a partir da cultura indígena, tendo em seu âmago e consequentemente em sua grade horária e possivelmente em uma proposta pedagógica o ensinamento da cultura, história e tradição indígena, com professoras nativas, bilíngue, enfim, quase um sonho para essa comunidade. Quando deveria ser direito garantido a todos os povos indígenas a manutenção da cultura e tradição através da educação, acredito que não somente em escolas destinadas à comunidade indígena, deveríamos aprender isso nas escolas tradicionais da cidade, aprender a respeitar e valorizar os verdadeiros nativos desde antes da invasão de nossas terras.

A noite de sábado na casa de reza também foi muito potente, com a reza sendo conduzida pela pajé Pará, convidada devido a ausência do pajé. Foi potente duas noites orientadas por mulheres indígenas fortes, que puderam demonstrar sua força e de sua comunidade através de falas, ensinamentos, cultura, tradição, religião, empatia e respeito. Eu chorei do começo ao fim na segunda noite, senti uma energia forte, potente, diferente. Que movimenta mas não destrói, constrói, com amor. Ouvir a força que traz Pará em suas falas da resistência e luta do povo indígena pela vida, pela terra, pelo alimento, pelos animais, pela conservação. Uma luta forte, mas com amor, não pelo ódio, não pela guerra, mas pela conquista, pela resistência de um povo, pela sobrevivência, pelo bem comunitário, pela união. Eles não querem tudo para eles, eles querem o que sempre foi deles, o que é necessário para manter uma cultura e tradição, vidas e alimentação. Não é a ganância que move a luta, é a sobrevivência de um povo e sua cultura e tradição, e isso é muito forte, potente e intenso. Pude sentir pelas palavras e energia daquela noite como isso pode mover o mundo. O bem comum precisa ser a motivação de cada um desse planeta. Por todos.

Participei da dança e canto na segunda noite, e é até difícil transformar em palavras o que senti naquele momento, o ritmo é quase que hipnótico, uma mistura de sons e batidas, com o canto das mulheres, numa entonação mais aguda, formando um dos cantos mais lindos e potentes que tive o privilégio de participar. Envolvente, em sua energia e potência, tranquiliza e revigora ao mesmo tempo. Nutri a alma, os pensamentos, emoções e sentimentos, nutri o amor e poder dentro de nós. É lindo de ver, ouvir e poder participar. Obrigada Obrigada e Obrigada Aldeia Guarani Rios Silveiras pela recepção e acolhimento nesse momento tão íntimo e sagrado. Foi uma honra fazer parte de tudo isso.

Outro momento que me marcou foi a interação com as crianças, desde o princípio muito dispostas a interagir, conversar, participarem das brincadeiras, chamar para muitas brincadeiras, sendo muito receptivas, amorosas, carinhosas e curiosas em suas ações e interações. Achei muito lindo ver como a tradição e cultura estão presentes tanto no convívio e atitude de crianças como dos mais jovens, pelo menos nesse breve contato, tive a impressão que o desejo tão comentado e trazido pelos indígenas adultos parece estar repercutindo positivamente. A tradição e cultura indígena é viva e presente nos pequenos.

O olhar e respeito sobre os mais velhos é algo muito bonito de se ver, a noção de que são pessoas que têm muito conhecimento a passar, têm se muito potencial de aprendizado nessas relações. É sabedoria viva, falada, passada a diante. A noção de comunidade, de conjunto, de uma espécie de criação coletiva das crianças, cada família com suas escolhas e hábitos, mas mantendo em si a noção da tradição indígena como coletiva. Como coletivo.

Me apeguei às crianças, são muito dóceis, felizes, energéticas e amorosas. Todas chateadas, assim como nós, de termos que ir embora, parar de brincar. O quanto todo mundo se divertiu com o pique-bandeira, ou esconde esconde é brincadeira, literalmente. Foi muito divertido poder ser criança de novo, com toda a espontaneidade, alegria e leveza, sem muitas regras para agir, podendo experimentar, imergir nessa experiência por completo. Trago muito aprendizado e conhecimentos através das trocas que ocorreram, espero ter deixado um pouquinho de alguma coisa lá também.

Por fim, eu particularmente tenho um fascínio pela natureza, pela sua potência, força, seus detalhes magníficos, sua magia, seu poder de regeneração, sua capacidade em nos dar vida e energia, por cada processo que lhe diz respeito. Pois no fim de todos os processos dependemos da natureza para sobreviver, para a manutenção da vida. E o que mais me fascinou foi perceber que o respeito e compreensão são processos subjetivos e intrínsecos aos indígenas, a percepção deles da conexão da vida como um todo com a preservação da natureza e seus processos, a necessidade de cuidar para conservar, de utilizar para a subsistência mas entender o seu valor, para muito além do valor econômico que uma floresta desmatada têm. Ver que dói neles o sofrimento da natureza, a sua degradação, não apenas para seus processos de sobrevivência, mas em relação a perda dessa entidade, dessa força, dessa mãe que é a natureza para todos nós.

A natureza integra a vida deles, o cotidiano, o contato com ela tranquiliza, traz paz, harmonia, e a falta dessa relação quase que adoece eles, como foi conversado durante uma das rezas na casa de reza, em que caciques se viram doentes por ficarem muito tempo longe de suas casa e do contato com a natureza. Eles entendem e valorizam estes processos. E como também foi comentado durante a conversa, é nítido perceber, olhando para os mapas, que onde há mata, onde há preservação, há demarcação de terras indígenas, há a cultura da preservação de algo tão importante para todos os seres humanos. Eles sempre serão os que mais fizeram pela terra, a luta deles é diária e permanente, e advém deste entendimento, que para mim é uma das coisas mais lindas do mundo. Essa concepção fazer parte de um entendimento da vida, fazer parte de uma cultura e tradição tão antiga, e tão preservada até hoje. Entender a conexão e valorizar a natureza para a manutenção de nossas vidas, a importância de cuidar da biodiversidade, dos rios e árvores.

Saio dessa experiência com um sentimento de esperança, de força, de potência, de ver que não estou sozinha na luta por um mundo melhor, que posso usar da minha profissão para o bem daqueles que são tão silenciados, discriminados, mortos por lutarem por sua existência. Ver que é possível resistir se formos juntos, juntos sempre seremos mais fortes. E eu quero fazer parte disso. Percebi que mesmo nascendo e morando 23 anos na cidade ‘civilizada’ eu me identifico quase que por completo com todos os valores, cultura e tradição indígena, muito mais que da cidade, do capitalismo. Eu sonho com um mundo onde a natureza e a vida sejam mais valorizadas que o dinheiro, o lucro. Onde possamos ser livres para ser quem somos, independente da crença, valor ou tradição que se deseja seguir ou acreditar. Onde o respeito prevalece. A diversidade soma e multiplica, e não extermina ou determina qual vida tem mais valor. Onde se possa escolher o que quer fazer da vida, por escolha e não por necessidade de sobrevivência, precisando se curvar às necessidades do mercado capitalista.

O mundo precisa mudar. Para ontem. Por todos que jà se foram lutando e por todos que lutam até hoje. E aprendi muito sobre a luta, a persistência, a resistência e a força com os indígenas. Que mesmo sendo exterminados desde que essa terra se denomina Brasil, pelos Portugueses, ainda lutam pelo amor a vida, a tradição, a cultura e valores, amor à terra e pelo seu povo. Não é romantizando, é buscando entender que o caminho não é necessariamente a guerra, podemos nos armar de outras coisas. E acredito que o conhecimento que adquiri na faculdade e nessa experiência tão rica são a minha arma. Assim como a força, amor e esperança são a arma dos indígenas, que os mantém tão resistentes.

Desejo que o amor vença, que o respeito prevaleça, que as culturas sejam meios de troca de saberes e conhecimento, com compreensão sobre o outro e sua existência. Que a natureza tenha o seu valor garantido, em pé, viva, diversa. Que as terras indígenas cheguem a ser maiores do que aquelas usadas na agricultura e pecuária em larga escala. Que nasçam mais indígenas do que morrem pela intolerância. Tenho esperança, me nutri da esperança dos indígenas, direto da fonte, pela vida, e por todos nós. Desejo que esse amor, força e esperança toque o máximo de pessoas ao nosso redor, no nosso planeta, e que cada vez mais pessoas se unam nessa corrente de luta por um mundo melhor para todos os seres vivos que habitam essa terra.

Percebi que essas “aulas” de sabedoria que tive na Aldeia Guarani Rio Silveiras ainda não tocaram a grande maioria da população. A sociedade tão civilizada, tão “poderosa”, tão capaz de construir bombas atômicas e levantar prédios como ninguém ainda não aprendeu, e o pior, parece que não quer aprender. O etnocentrismo, não nos permite enxergar os valores de outras culturas como potentes, como elementos importantes de tradição, com a qual podemos aprender muito ainda. E nós deixar escapar um dos maiores sentidos dessa vida, a aceitação, o amor e a conexão com o todo, com o outro com a natureza, isso é a vida.

Pelo contrário, valorizamos um modelo de vida, cultura e valores de forma cega pela grande maioria, quase como se fosse esta a forma ideal e exclusiva de habitar a terra, o que por consequência não permite que outros modelos de vida sejam inseridos ou aceitos ou ao mínimo respeitados. Não os enxergamos como merecedores de valor, e dai vem o etnocentrismo. Este modelo social urbano civilizatório nos leva a não enxergar mais a dor do mundo, a dor do outro, às nossas matas morrendo, às pessoas morrendo, a violência. Os valore$ se inverteram. Vale mais a busca pelo acúmulo desenfreado de riqueza para alguns em detrimento da miséria de grande parte da população.

Espero que num futuro próximo, consigamos, enquanto sociedade, realizar alguns questionamentos de forma crítica sobre este modelo, nós questionar sobre ‘Progresso para onde?’ ‘Para quem?’ ‘Às custas de quem e do que?’ ‘O que realmente buscamos enquanto sociedade?’ ‘Quais valores são cultivados em nossa sociedade?’. Para que assim seja possível iniciarmos ocaminhar por um caminho para a mudança, juntos e com objetivos para isso. Esse é meu sonho, e que eu veja isso viva, tenho esperança.

Quero finalizar agradecendo ao professor Jorge pela oportunidade, a USP por possibilitar esse intercâmbio cultural, a todos os meus colegas, e principalmente a Aldeia Guarani Rio Silveiras pela recepção, acolhimento e por tanta sabedoria que nos foi passada. Obrigada por abrir as portas das casas de vocês com tanto amor e respeito. Obrigada por todas as rezas, momentos de conexão com a natureza, com a vida, com o amor, com a esperança, com a resistência e forças que vocês carregam dentro de vocês, de maneira tão viva. Volto para minha casa com o coração transbordando e com a mente focada, em fazer parte dessa força e dessa mudança, com nossas armas tão potentes e capazes de mudar esse mundo. Eu acredito e vocês me ajudaram a acreditar que é possível se formos juntos. Gratidão, de coração.

Com muito amor.

Julia.

Novembro/2022.


Referências


MENESES, Paulo. Etnocentrismo e relativismo cultural: algumas reflexões. Revista SymposiuM, [s. l.], ed. número especial, p. 19-25, dezembro, 99 3. Disponível em: https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/3152/3152.PDF

RELATIVISMO cultural. Wikipédia, 21 ago. 2022. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Relativismo_cultural.