Wikinativa/Lauana Simplicio Pereira (vivencia Guarani 2018 - relato de experiência)
Introdução editar
Este relato conta minha experiência pessoal ao longo da disciplina “ACH3707 - Seminários de Políticas Públicas Setoriais 2 - Multiculturalismo e Direitos”, ministrada no segundo semestre de 2018. A proposta do curso é fazer com que os discentes conheçam as culturas dos povos indígenas e, para além de uma perspectiva histórica, propõe o estudo e discussão das dinâmicas sociopolíticas envolvidas na vivência destas culturas. A metodologia utilizada é experiência contra hegemônica se comparada à maioria das demais disciplina na graduação, porque realiza, para além de discussões teóricas em sala, a vivência e contato direto com os povos originários do nosso território, com o objetivo de nos integrar, de nos fazer compreender suas formas de vida e relações sociais e da descoberta disso por nós mesmos, em uma contínua relação de ensino-aprendizagem. Tive a oportunidade de estar presente em duas vivências, uma na Aldeia Guarani no bairro do Jaraguá em São Paulo e outra na Aldeia Rio Silveiras, no município de Bertioga. O relato está dividido em quatro partes, sendo esta introdução a primeira. Na segunda parte, conto a minha experiência na aldeia localizada na capital paulista; em seguida, discorro sobre minhas impressões na Aldeia Rio Silveiras e, na última parte, apresento breves conclusões.
Vivência na Comunidade Guarani do Jaraguá
As terras indígenas localizadas no bairro do Jaraguá em São Paulo compreendem cinco aldeias, Tekoa Pyau,, Ytu, Itawera, Itakupe, Itaendy e Yvy Porã, nas quais habitam cerca de 700 pessoas. Nossa visita à aldeia aconteceu em agosto de 2018 e, na ocasião, ocorria a finalização da construção da “Opy” ou casa de reza, um local sagrado para os indígenas. Fomos convidados a participar do mutirão de barreamento da construção e, em seguida, de sua inauguração.
Antes de seguirmos para o mutirão, conhecemos as aldeias mais próximas da entrada das terras. Chamou minha atenção a condição de precariedade das moradias, inclusive por haver vários pontos sem saneamento básico. Some-se a isso a grande população de cães e gatos, que se aproxima ao número de moradores. A informação dada é que os animais são abandonados no local e são aceitos pelos moradores. Enquanto caminhávamos pelo espaço, pudemos conhecer um pouco de sua história. As terras do Jaraguá constituem a menor reserva indígena do país (1,7 hectares). Há alguns anos, após travada luta política pela comunidade Guarani, a reserva havia sido demarcada e teve seu território aumentado para 532 hectares. Contudo, recentemente o Governo Federal revogou a portaria que instituiu a demarcação. Tal fato, além de representar um ataque aos direitos daquela população, parece representar um posicionamento do governo de indisposição para agir no sentido de diminuir a vulnerabilidade social ali presente.
A aldeia está dentro da cidade e é cercada por grandes rodovias. Uma complexa questão é tentar entender como se dá a manutenção da vida naquele território e os constantes “choques culturais” pela proximidade com os não-indígenas e a contínua interação. De que modo isso impacta a vida dos Guarani? Um ponto que me marcou foi quando um morador da aldeia, já no mutirão de barreamento, mostrou um tanque construído em que seriam colocados peixes para que pudessem pescar, já que não há mais rios no local. Além disso, em um determinado momento, uma das crianças da aldeia que estava junto do nosso grupo desde o início da visita, pediu-me para que o levasse de volta à aldeia dele, localizada na entrada das terras. Quando o perguntei o porquê, ele me respondeu que se sentia amedrontado de atravessar a estrada sozinho pois, certa vez, quando estava com sua irmã, foi abordado por um estranho que tentou pegá-los. Em minha visão, a demarcação da terra e aumento do território reservado poderia ser positivo para garantir maior segurança à comunidade e liberdade para o exercício de seus direitos.
O dia seguiu com o mutirão de barreamento e o grupo conseguiu finalizar a casa de reza. Entre as impressões da visita destaco, para além da preocupação causada pelo contexto de vulnerabilidade social apontado, a grande generosidade do povo guarani ao compartilhar conosco um momento de muito valor para eles - a construção da casa de reza - e o senso de coletividade notado em cada ação, desde a receptividade e partilha do almoço e espaço à contação de suas histórias e experiências.
Vivência na Comunidade Guarani Rio Silveiras
editarA visita à aldeia Rio Silveiras, em Bertioga, foi o ponto alto do curso. Preparamo-nos durante todo o semestre para a imersão. Dividimo-nos em grupos, cada um encarregado de propor determinadas atividades para tornar a vivência mais prazerosa e um momento de interação e aprendizagem mútua entre nós e a comunidade Guarani. Optei por estar no grupo encarregado de registrar as histórias orais do povo da aldeia. Nosso objetivo era, sabendo da rica quantidade de histórias e saberes partilhados pelos índios oralmente, registrar um pouco disto para construir algo físico, que pudesse servir para difusão desta tradição e acesso à memória coletiva. Chegamos na aldeia na quinta à noite (11/10) e lá permanecemos até a tarde de domingo (14/10).
Logo que chegamos, pensei no contraste com o cenário das terras indígenas do Jaraguá. A Rio Silveiras é imensamente maior e possui melhores condições de infraestrutura. A terra já é demarcada e possui cinco núcleos. Ficamos acampados no primeiro deles, o Núcleo da Porteira. Se as condições de infraestrutura pareciam diferentes, a generosidade e modo de encarar a vida logo apontou semelhanças. Sob forte chuva e sabendo que teríamos de acampar, o Pajé nos recebeu e simbolicamente cedeu a casa de reza, local sagrado para seu povo, para que nós pudéssemos dormir na primeira noite. Ainda no mesmo dia participamos de cerimônia na casa de reza, atividade que aconteceu também nas duas noites seguintes. Foi a primeira vez em que pude participar de uma cerimônia do tipo. Mais uma vez, pude observar como o povo guarani é receptivo no sentido de estar aberto ao compartilhamento e de isso ser feito de um modo bastante simples e natural. Ao longo da reza, era possível juntar-se aos homens e mulheres que estavam dançando, cantando e tocando e instrumentos. Terminada a reza, jantamos e nos acomodamos em nossas barracas.
No dia seguinte, pela manhã visitamos uma cachoeira próxima e, quando retornamos à aldeia, fizemos uma sequência de brincadeiras com as crianças. À noite, voltamos à casa de reza e, desta vez, a cerimônia contou com a presença de duas lideranças indígenas de outras aldeias, que estavam a percorrer o estado discutindo a conjuntura política. Estávamos a alguns dias do segundo turno das eleições gerais e os direitos indígenas era pauta política em disputa. No sábado, fomos até o Rio Silveiras, que dá nome à aldeia, bem como conhecemos alguns dos núcleos seguintes, mais afastados. Já no domingo pela manhã começamos a preparar nosso retorno à São Paulo. A seguir, ressalto as principais impressões que tive do conjunto destas vivências.
A primeira delas tem relação com a forma com a qual os indígenas lidam com o tempo. Para mim, acostumada a olhar constantemente no relógio e dispor de cronogramas e calendários para adequar minhas rotinas de acordo com tempo definido, foi novo poder conviver em um contexto em que estar “neste tempo” não era o mais importante. Se algo não acontece em um determinado horário ou não segue estritamente o planejado, não há frustação ou estresse. É porque deveria acontecer daquela forma. É curioso perceber, por exemplo, como números e marcadores temporais comuns a nós não fazem parte do cotidiano Guarani.
Em segundo lugar, chamou minha atenção a relação da comunidade com a natureza. Para além de um espaço geográfico, a terra é, para os indígenas, um ser vivo que consideram como mãe. Dela provém não só a subsistência material, mas também a espiritual. O Nhandereko, como os Guarani chamam a cultura, demonstra a relação de cuidado com a natureza e da importância de percebê-la na sua integralidade, diretamente ligada ao seu modo de ser e viver.
A política de resistência cotidiana que vivem os Guarani também me marcou. Em conversa com o cacique, figura política máxima da aldeia, discutimos sobre as dificuldades de se manter o nhandereko e fazê-lo superar as influências externas que a todo momento tentam interferir. É desafiador transmitir a cultura e manter-se ligado às raízes quando se cria um contexto de instabilidade social e se permite a entrada de terceiros na aldeia que, pelo menos no nível do discurso, estão interessados em ajudar neste sentido, mas que não raro buscam algo em troca desta “ajuda”. O cacique comentou dos diversos grupos religiosos que tentam adentrar a aldeia para instalar templos e catequizar moradores. Ainda que em nível distinto, mesmo nós, estudantes, somos responsáveis por algum impacto na organização política da aldeia. Nossa presença em um ou outro núcleo, a distribuição dos objetos que levamos, a escolha dos lugares que visitamos, impactam em alguma medida as dinâmicas sociais e relações de poder na comunidade.
De todos os momentos vivenciados, sem dúvida o que mais me marcou foi a experiência da casa de reza na noite da sexta-feira, quando recebemos duas lideranças indígenas de outras aldeias para discutir a conjuntura política no contexto das eleições. Ouvi-los contar seus relatos de luta pelos direitos do povo indígena me fez perceber sua capacidade ímpar de organização política e de resistir. Certamente, o contexto político é desfavorável a esta organização, mas isso não os fazem recuar. Pelo contrário, percebem a importância ainda maior de continuarem a formação política e a união de forças para assegurar os direitos já conquistados e avançar em outros.
Conclusão
editarEm suma, se tivesse de definir três palavras-sentimento para esta vivência, escolheria acolhimento, sabedoria e resistência. Acolhimento porque o povo Guarani nos tratou de forma muito receptiva a todo o tempo. Compartilharam, sem hesitar, histórias, momentos, espaços. Imagino que a facilidade com que isso ocorra esteja relacionada à ausência do sentimento de posse sobre as coisas materiais e imateriais. Não se guarda para si, há o hábito da difusão, do compartilhamento. Neste sentido, percebo também este modo de vida como sábio, porque não constrange, não limita, mas expande possibilidades de viver. A relação com a natureza e os fenômenos da vida também é de uma sabedoria ímpar. Respeitar o tempo dos acontecimentos, o meio ambiente, assim como as adversidades, que são tratadas como parte da vida. Tudo isso tem a ver com resistência. Resistir, apesar das influências externas e dos conflitos que se criam internamente, para manter de pé seu nhandereko e permitir que as próximas gerações a vivam. Saio, certamente, com o olhar e modo de pensar modificados. Aos Guarani, agradeço a oportunidade e os saúdo pela sua luta.