Wikinativa/Letícia Men dos Passos (vivencia Guarani 2018 - relato de experiência)
Relatório de vivência nas Aldeias Rio Silveiras e Jaraguá
editarIntrodução
editarDurante as duas vivências da Disciplina Seminários de Políticas Públicas VI, nas Aldeias Rio Silveiras e Jaraguá, pude entender um pouco sobre a situação social, política e econômica dos povos Guarani que vivem no estado de São Paulo. O contato com essas comunidades tiveram um papel de descolonizar o olhar sobre o qual muitos de nós possui em relação aos povos originários e tradicionais. Antes de qualquer um desses contatos, eu nunca tinha entrado num debate sobre as reais e atuais condições de vida dos indígenas, esses povos são omitidos e silenciados das escolas e espaços públicos, e afirmo que, intencionalmente não se discute, no Brasil,o contexto social dos povos indígenas. Nesse documento gostaria de relatar algumas impressões e críticas que tive durante os períodos que estive nas Aldeias. Além disso, acho importante mencionar que acumulo uma certa bagagem literária e prática pois faço parte do Projeto de Extensão Aliança USP Leste e Povos Indígenas (AULPI), o mesmo que apoia a disciplina aqui tratada, há quase um ano. Assim, meus relatos terão embasamento em outros momentos que convivi com e estudei sobre essas comunidades e povos.
Relatos e percepções das vivências
editarPrimeiro, é importante destacar as diferenças e semelhanças entre as duas Aldeias mencionadas. A Aldeia do Jaraguá, da etnia Guarani, é localizada no município de Osasco - região metropolitana de São Paulo -, ao lado do Parque Estadual do Pico do Jaraguá. Tem regularizados 1,7 hectares de terra (FUNAI) e, segundo o IBGE (2010), 98 indígenas vivem na terra do Jaraguá. Porém, os moradores da Aldeia dizem que cerca de 250 famílias residem no local, e basta visitar a Aldeia que fica bem claro que esse número é muito mais alto do que os 98 declarados pela FUNAI. A comunidade vive num contexto urbano e de extrema vulnerabilidade: os núcleos são divididos por estradas e ruas muito movimentadas, as casas são pequenas e os 1,7 hectares não comportam todos os indígenas que moram naquela terra e muito menos conseguem ter espaços de cultivo de plantas, vegetação nativa, e de acesso à água.
A partir disso, podemos entender como fica comprometida a autonomia da comunidade do Jaraguá. A sua aproximação com o meio urbano é física e cultural, muitas crianças frequentam escolas regulares (em vez de escolas diferenciadas), a alimentação é completamente adquirida de fora da aldeia, os indígenas têm necessidade do uso de eletrodomésticos, precisam de água encanada, saneamento básico e energia elétrica. Além disso, o contato com a população urbana provoca conflitos envolvendo a manifestação cultural e religiosa dos indígenas do Jaraguá, são diversos os relatos de grupos religiosos que se aproximam das comunidades indígenas na intenção de convertê-los religiosamente. Nesse processo, esses grupos religiosos tanto praticam escambo - oferecendo cesta básica e outras doações pela participação dos indígenas nos cultos e missas -, quanto discriminam e condenam as práticas religiosas da Aldeia para os Guaranis e comunidade em volta.
Já a Aldeia Rio Silveiras, também da etnia Guarani, está localizada dentro do Parque Estadual da Serra do Mar, em um território de 984,4 hectares regularizados (FUNAI). O certo isolamento geográfico, a dimensão do território e o acesso à vegetação nativa preservada da Mata Atlântica, diferencia o grau de vulnerabilidade e a preservação da cultura Guarani entre a Aldeia Rio Silveiras e a Aldeia do Jaraguá. Porém, esses fatores não mudam o quadro de vulnerabilidade por completo. Em relato, umas das lideranças da Aldeia nos contou sobre o processo de mudança que ocorreu nas últimas décadas. Com a chegada da Escola e da Unidade Básica de Saúde, localizados logo na entrada da aldeia, os núcleos mudaram para mais perto na cidade a fim de se aproximarem desses serviços. Nesse processo de interação com a escola, foram incorporados hábitos alimentares e familiares dos Juruás ("não-indígenas" em Guarani). Além disso, o uso da energia elétrica se tornou cada vez mais importante e presente na comunidade. Estar mais próximo da cidade e mais distante da mata e do rio, acarretou na necessidade do uso de eletrodomésticos, gás, na compra de utensílios e alimentos, ou seja, fez com que a comunidade precisa-se gerar renda para sua manutenção.
Assim como a Aldeia do Jaraguá, a Aldeia Rio Silveiras sofre com as intervenções de grupos religiosos. Além dos relatos dos próprios moradores, pudemos presenciar, durante nossa vivência, a visita de um grupo de evangélicos, de aproximadamente 30 pessoas, que distribuíram presentes e Bíblias aos indígenas, cantaram e realizaram orações na Aldeia. Essa aproximação é pacífica, aceita pela comunidade, mas é uma cena que carrega muitos significados, ela reafirma a imposição da cultura ocidental e a vulnerabilidade que o povos indígenas enfrentam. Ainda arrisco a dizer que essa relação só existe uma vez que a Aldeia precisa das doações que esses grupos oferecem.
Outro ponto que merece destaque, e que é presente nas duas Aldeias, é o problema relação à produção e coleta de lixo. Ao que me parece, se formos pensar no problema com fundamento antropológico, no modo de vida Guarani não existe lixo, tudo que vem da natureza para ela volta, não precisa de tratamento, separação ou destino específicos. O lixo aparece quando se introduz a cultural Ocidental moderna nas Aldeias, surgem embalagens, brinquedos, roupas, eletrodomésticos, eletroeletronicos, itens de higiene, limpeza, ou seja, manufaturados em geral, que não são descartados corretamente. O motivo para isso, creio eu, é a falta de costume por parte dos moradores em relação a lidar com a sua produção de lixo e de atendimento correto por parte do Município quanto à coleta adequada do mesmo. No caso da Aldeia do Jaraguá, a situação é um pouco diferente, os moradores têm o hábito de separação de lixo e existe a coleta realizada pela prefeitura, porém, o número de animais - principalmente cachorros e gatos - é muito alto, o que acarreta na “bagunça” do lixo. Segundo os indígenas, o número de cachorros chega a ser maior do que o número de pessoas, que já é muito alto para o tamanho do território. Ainda segundo eles, esses animais são abandonados lá por moradores de áreas vizinhas, que sabem que os indígenas aceitam os animais por uma questão cultural, de respeito a natureza e tudo que habita nela.
Conclusão
editarNesse relatório tive a intenção de expor minhas percepções, enquanto aluna graduanda de Gestão de Políticas Públicas, sobre o contexto político, social e econômico em que vivem os Guaranis das Aldeia Rio Silveiras e Jaraguá. Ao que posso destacar a partir das minhas experiências é que o Estado é falho no oferecimento de educação e saúde diferenciadas e na garantia da autonomia dos povos indígenas. A situação de vulnerabilidade econômica e social está estritamente ligada com a perda de autonomia e expressão cultural dos Guarani. Esse contexto é grave, se expande para outros povos indígenas do Brasil e revela que não são cumpridas as proteções garantidas pela Constituição Federal de 1988, da qual podemos destacar os Art. 215, Art. 215 § 1º, Art. 231 e Art. 232:
Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.
§ 1º O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional.
Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
Art. 232. Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo.
Para além do cumprimento da Constituição Federal vigente no Brasil, precisamos entender os processos históricos e sociais que ocorreram e ocorrem no país em relação aos povos indígenas. Centenas de etnias sofreram um verdadeiro genocídio, que se estende aos dias de hoje, principalmente na forma de opressão da cultura, autonomia e liberdade de expressão de seu modo de vida, por todo o Brasil.