Wikinativa/Natalia Basseto Rufino (vivencia Guarani 2022 - SMD - relato de experiência)


Natália Basseto Rufino

N°USP: 11206282

O Bem Viver:  Desconstruções e Construções.

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A matéria Seminários de Políticas Públicas Setoriais II, possui como método de aprendizagem a realização de viagens didáticas para visitas guiadas e pesquisas de campo, a fim de realizar análise e sistematização de informações sobre práticas de Gestão e Políticas Públicas, nesse caso, questões relativas à importância dos grupos originários serem incorporados nas políticas públicas brasileiras. Para isso, a matéria prevê a realização de uma vivência em uma reserva indígena, para que os estudantes tenham contato com a cultura e realidade da aldeia, fortalecendo o pensamento crítico e conhecimento acerca dessas questões;

Nossa vivência foi na Aldeia Indígena do Rio Silveira, em Bertioga- São Paulo, uma reserva com cerca de 948 hectares de terra. A preparação para a vivência começou no início do semestre com as aulas. Elas foram essenciais para o meu aprendizado e desenvolvimento sobre a importância de respeitar e aprender com os indígenas. Com as suas particularidades, cada aula proporcionou uma percepção sobre como seria a vivência. Mas, na prática, essa experiência foi muito além das expectativas geradas, tornando- se um momento único, singular e ao mesmo tempo plural. Um grande aprendizado que, com toda certeza, mudou o meu modo de pensar e de viver. Nossa vivência foi na Aldeia Indígena do Rio Silveira, em Bertioga- São Paulo, uma reserva com cerca de 948 hectares de terra.

Particularmente, apenas tinha tido contato com a cultura indígenas poucas vezes. Me recordo de ter presenciado algumas apresentações esporádicas em centros culturais e feiras de artesanato no litoral, mas, no início da faculdade pude presenciar uma aula de Sociologia na qual o docente levou alguns integrantes da tribo indígena para nos ensinarmos um pouco de sua cultura e vivência. Esse primeiro contato me instigou a querer conhecer melhor sobre esses povos originários, e, consequentemente, a me matricular nessa disciplina.

Partimos para a aldeia, por volta das 15h00 do dia 4 de novembro de 2022. Chegamos por volta das 19h00. Retiramos as malas e suprimentos do ônibus e começamos a arrumar o acampamento. Havia chovido e estava frio, mas todos estavam animados e dispostos. Depois de arrumarmos o acampamento, partimos para a casa de reza.

O local ficava próximo ao acampamento, um lugar repleto de natureza, com as suas particularidades. Havia entrado em uma casa de reza em uma aula da disciplina, então não fiquei tão surpresa. Mas, a casa de reza da aldeia era um pouco diferente. Era maior, retangular e mais iluminada. Ao entrarmos, pude observar que no canto, tinha uma concentração de alguns povos originários ao fundo, em volta de uma fogueira. Percebi também que havia diversos instrumentos e objetos espalhados na casa de reza, e que havia uma divisão para sentarmos, mulheres de um lado, homens do outro.

Ao centro, havia um espaço para as lideranças sentarem. E logo percebi que havia uma mulher nos esperando, a filha do Pajé.

Infelizmente, fomos avisados que o Pajé precisou se ausentar por conta de problemas pessoais, mas que sua filha estaria ali para nos orientar e compartilhar seus aprendizados. Nesse primeiro momento, realizamos uma roda de conversa, um espaço no qual pudemos conhecer a distribuição territorial da aldeia e de seus núcleos. Aprender um pouco sua tradição, costumes, interesses. Foi um momento muito importante para compreender onde eu estava sendo inserida, e, principalmente para perceber que eu tinha muito o que aprender com eles.

O professor havia comentado em aula sobre o “Bem Viver”, o modo de vida Guarani. Uma filosofia na qual o contato com a simplicidade da natureza estrutura todas as ações dos indígenas, se preocupando com a importância do presente, do agora, sem as preocupações com o tempo de agir e as pressões intermitentes do nosso cotidiano. Mas, como diria o prefácio da disciplina, “Diga-me e eu esquecerei, Ensina-me e eu poderei lembrar Envolva-me e eu aprenderei... (Benjamin Franklin)”, apenas pude compreender o que de fato significava esse modo de viver com a minha imersão na vivência, e, esse primeiro momento de roda de conversa, foi o despertar da experiência.

Um ponto que me chamou muita atenção, foi quando a filha do pajé mencionou que mulheres também poderiam se tornar lideranças indígenas e também quando ela explicou a importância do Cacique na representação dos povos originários indígenas, na defesa de seus interesses perante à sociedade. Isso ressalta a importância de termos representações indígenas nas instituições brasileiras, como por exemplo, na câmara de deputados federais e estaduais.

Logo após, fomos jantar e também foi um momento importante de compartilhamento e confraternização. Tivemos contatos com algumas mulheres indígenas e  também com algumas crianças. Um ponto que acredito que fez a diferença foi que a alimentação que tivemos era vegana. Particularmente, não sou vegana, mas pude perceber ainda mais a importância de ter uma alimentação que respeite a natureza, os alimentos, os próprios seres humanos. Senti que os momentos de alimentação serviram para nos unir, uns com os outros e com a reserva, tínhamos um propósito para além de apenas comer.

No dia seguinte, a vivência se intensificou. Começamos tomando café da manhã. Nele, participaram alguns adultos e crianças, pudemos experimentar uma comida típica, o "Tipá", preparado por mulheres indígenas e com um sabor extremamente particular e maravilhoso. Como estava de dia, pude observar melhor a paisagem ao redor, as construções e suas distribuições no território. Como já mencionado nas aulas, as construções indígenas têm suas particularidades, todas são pensadas conforme suas necessidades e as especificidades da natureza, são feitas não de caráter duradouro, mas sim funcional fisicamente e espiritualmente.

Logo após o café, tivemos um momento de recreação com as crianças, foram realizadas diversas brincadeiras, foi um momento muito especial e simbólico.

Depois, a turma de odontologia chegou e fomos para a trilha. Como havia chovido um pouco no dia anterior, a trilha estava um pouco lamacenta, mas não impediu nosso caminho. Passamos pela escola indígena. Esse foi um ponto que também me chamou muita atenção, pois os indígenas relataram que tinham professores indígenas e que também era ensinado a cultura nas disciplinas ofertadas, Além disso, também passamos por outros núcleos dentro da aldeia, tendo contado com outras construções e outros núcleos familiares.

A trilha para cachoeira foi um momento bem especial, o grupo ficou mais unido, foi um momento de troca e de companheirismo, pois, apesar de ser um trilha “leve”, tivemos alguns obstáculos e momentos difíceis como por exemplo a travessia no rio Silveira e a travessia na própria cachoeira. Todo mundo se ajudou e se apoiou, e, conseguimos chegar no final da trilha, com uma vista incrível da natureza. Nesse caminho, também fomos guiados por dois guerreiros que foram bem solícitos e nos ensinaram muito sobre o caminho, significado das disposições e curiosidades pontuais.

Depois, ao retornarmos para o núcleo porteira (local do acampamento), almoçamos junto com alguns membros do núcleo e tivemos um momento de recreação com as crianças. Novamente, foi um momento especial, de muita troca. Brincamos de pular corda, bambolê, amarelinha, corrida, pique bandeira. As crianças ficaram felizes com as brincadeiras e também pude perceber que todos estavam animados e entregues para viver esse momento de troca de energia e carinho.

Depois, fomos nos arrumar para a casa de reza. Acredito que, por conta da ausência do Pajé, a dinâmica foi um pouco diferente. Mas, foi muito especial também. A disposição do lugar permaneceu a mesma, e fomos recebidos pela liderança feminina, convidada para conduzir essa experiência.

A cerimônia começou com alguns indígenas fazendo um processo de saudação e troca com os objetos do “altar” da casa de reza. Logo após foi a vez da liderança feminina, a Pará, de realizar esse processo. Ela abriu com uma fala de boas-vindas e também começou a cantar em guarani. Foi um momento muito especial, sua voz foi envolvendo meus pensamentos, me trazendo um combo de sentimentos, calma, esperança, força…mesmo não entendo o significado, pude sentir a força que aquela canção transmitia. Nesse momento, havia um homem indígena tocando violão, meninas e mulheres cantando e fazendo uma dança no ritmo da melodia e alguns homens com o chocalho. Foi bem interessante, pois conforme a cerimônia andava, outras pessoas foram se levantando, pegando os instrumentos e se juntando com os grupos para somar na cerimônia. Fechei meus olhos e fui sendo conduzida com a melodia, foi um momento indescritível. No final, fechamos a cerimônia com uma outra roda de conversa e de mais troca de energias, experiências e agradecimentos. Nesse momento, eu pude sentir a força e um pouco do significado e da importância que a casa de reza tem e proporciona naquele lugar. É realmente mágico, místico, especial e sincero.

Ao longo da cerimônia, também pude observar características intrínsecas da cultura Guarani. A própria casa de reza é por si só um esboço da cultura, ela possui uma disposição espacial específica, mulheres de um lado, homens do outro. Possui um altar com objetos sagrados, imagens de ancestrais, objetos indígenas e também “estrangeiros”. Cantos com significados diversos, que apesar de não compreender seu verdadeiro significado, pude sentir a espiritualidade.  Também pude observar o modo de vida guarani, um pouco mais recuado, introspectivos com nosso grupo, fala serena, mas muito receptivos e acolhedores.  Essa experiência na casa de reza realmente mostrou o relativismo cultural atuando na prática. Conforme expresso Meneses (1999), o etnocentrismo é totalmente oposto ao relativismo cultural, pois com ele podemos observar o respeito pela cultura do “diferente”, suas características intrínsecas e necessárias para a sua preservação e continuidade.

No final da noite, fomos jantar e tivemos mais um momento de troca com os povos originários e entre o próprio grupo de estudantes, monitores e professores.

No dia seguinte, planejamos visitar a praia local. Tivemos um momento de recreação com as crianças e partimos para praia. Fomos acompanhados de um guerreiro e de uma criança indígena. No caminho, podemos perceber mais sobre a disposição territorial da reserva. Também observamos seus arredores, como o mercadinho próximo da aldeia, com preços relativamente acessíveis e a unidade de saúde básica. O guerreiro (Josias), também nos explicou um pouco sobre a vegetação local e mencionou que a tribo quase não frequenta a praia. Como a própria filha do Pajé havia mencionado, eles preferem a cachoeira.

Na praia, tivemos um momento de confraternização, jogamos bola com a criança indígena e retornamos à aldeia. No caminho, viemos conversando e uma ex-estudante da EACH- USP, que realiza projetos com a aldeia, nos explicou um pouco mais sobre o território indígena, que a reserva na verdade era até a beira da praia, mas que com o desenvolvimento urbano, eles foram perdendo esse território, e, isso ocasionou a criação do núcleo “Porteira”, para fortalecer essa demarcação territorial na região.  Essa questão é bem importante, porque mostra que a aldeia enfrenta diversas questões políticas internas e externas. O fato do acampamento está situado no núcleo da Porteira, faz com que intensifique alguns conflitos de interesse interno, pois consequentemente, este núcleo recebe mais recursos do turismo local, infraestrutura, entre outros. Além disso, também ressalta os conflitos externos à aldeia, como a importância da demarcação de terra e preservação do seu território.

No caminho, também tivemos contato com o Josias e mais algumas crianças indígenas. Conversamos sobre TikTok e redes sociais, pude observar que a tecnologia está presente na aldeia, diversas crianças indígenas utilizam as redes sociais como forma de diversão. Achei curioso, pois não tenho contato com indígenas nas minhas redes sociais, mas pude observar que é bem disseminado entre eles, mas, ao que parece, é realmente utilizado como uma forma de diversão e não de dependência.

O conceito do tempo também foi algo que percebi e refleti no caminho para a aldeia. Ao longo das aulas, refletia sobre como seria a experiência, o professor comentou diversas vezes que tempo não era uma preocupação na vivência. E, realmente não foi. Minha relação com o tempo não é favorável para o meu bem-estar. Estou a todo momento preocupada com prazos, falta de tempo para realizar as tarefas, próximos passos, entre outros. E, com essa experiência, pude observar que o conceito de tempo é relativo, muitas vezes perdemos nosso tempo nos preocupando justamente com a sua falta. Essa vivência me mostrou que o que realmente importa é viver o presente, porque as coisas acontecem exatamente quando precisam acontecer. E, viver o presente, o agora,  é importante para nos prepararmos para o amanhã. Sem dúvidas, esse é um dos maiores aprendizados que levarei. O “Bem Viver” é o agora, é sentir o momento presente, a natureza e a troca de energias e conexão com a ancestralidade.

Ao retornarmos ao local do acampamento, guardamos as barracas no ônibus, nos arrumamos e fomos assistir a apresentação preliminar do CD que está sendo desenvolvido sobre a aldeia. O vídeo que assistimos foi com o coral da aldeia, novamente com um cântico muito contagiante e cheio de significado, que apesar de não compreender, pudemos sentir a energia e importância daquela canção para os povos originários.

Depois, fomos almoçar e pudemos observar e conversar um pouco com as crianças sobre a importância de irem ao dentista. Como fomos acompanhados pela equipe de odontologia da USP Bauru, foi instalado um posto temporário de atendimento dentário para os indígenas. No primeiro momento, as crianças se mostraram animadas para realizarem essas consultas iniciais. Uma delas, comentou comigo que já tinha ido ao dentista uma vez e que iria novamente. Para mim, essa ação é muito importante, pois são serviços essenciais que ajudam e melhoram a qualidade de vida da população. E, a maneira que foi realizado, organicamente, sem imposição, foi bem interessante. Mas, também, pude observar que existia uma certa resistência de alguns indígenas à essa ação. Pude observar que a equipe tentou de diversas maneiras se aproximar da aldeia, explicam como seria a dinâmica dos procedimentos por meio de um canal de diálogo, e, sobretudo, respeito entre os estudantes de odontologia e os membros da aldeia.

No final da tarde, retornamos para São Paulo. Ir embora não foi um momento feliz, acredito que o sentimento generalizado era de permanecer um pouco mais nessa vivência única. Mas, foi um momento de muita gratidão, gratidão por toda essa troca de conhecimento, energia, amor e carinho.

Percebi que foi um momento importante e muito diferente do que estava imaginando. Acredito que não tem como explicar o que a vivência significa, mas, com toda certeza é algo que marcou a vida de cada um dos integrantes, expandiu os horizontes de perspectiva de vida e de importância de apreciar o momento, viver o agora e aprender com a natureza e os povos originários. Para mim, foi um momento incrível, de muita troca e aprendizado, não diria mútuo 100%, pois acredito que aprendemos muito mais com eles do que com a gente. Realmente, vivenciar a vivência é a melhor maneira de aprender e crescer com essa experiência, muito mais do que ler artigos e livros, que também possuem suas particularidades.

  • Meneses, Paulo. Etnocentrismo e relativismo cultural: algumas reflexões. Revista Symposium. Ano 3 • Número Especial • dezembro, 1999. Disponível em: https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/3152/3152.PDF. Acesso em 14 nov. 2022.


 
Rio Silveira, Travessia para Trilha