Wikinativa/Sofia Souza Ferreira (vivencia Guarani 2022 - SMD - relato de experiência)
Reserva Indígena Rio Silveiras: experiência imersiva na cultura Guarani
A presente pesquisa surgiu a partir da disciplina ACH3707 - Seminários de Políticas Públicas Setoriais II - Multiculturalismo e Direitos, que propôs a estruturação dos conhecimentos sobre multiculturalismo, diversidade e direitos, através do estudo dos direitos dos povos indígenas e suas práticas tradicionais. Para tanto, foi realizada uma vivência na Aldeia Guarani Rio Silveiras, localizada em Bertioga - SP, que ocorreu no período de 04 a 06 de novembro de 2022.
A chegada a aldeia aconteceu no período noturno do dia 04 de novembro (sexta-feira), após o desembarque, a equipe de pesquisa realizou a instalação das acomodações coordenadas pelo grupo de infraestrutura. A primeira impressão neste momento foi positiva, a reserva é ampla em meio a natureza, possui clima ameno e as pessoas que aguardavam nossa chegada foram receptivas. Em um segundo momento a equipe se reuniu para uma conversa introdutória em uma das ocas, sendo esta maior que as demais, este espaço é denominado como “Casa de Reza” lugar sagrado voltado à realização dos ritos e tradições espirituais. Após, foi servido o jantar, preparado pelo grupo da alimentação e em seguida encerramos nossas atividades para o descanso.
O segundo dia, 05 de novembro (sábado), foi marcado pela recreação que envolveu principalmente a interação com as crianças da aldeia, estas que demonstraram uma crescente abertura à nossa imersão e nos acolheram com muito afeto. Muitas brincadeiras foram realizadas, como por exemplo: pular corda, amarelinha, aviãozinho com bambolês, toquinho, gol a gol, rouba-bandeira e pega-pega. Este momento foi enriquecedor, considerando que ao brincar com os pequenos tupi-guarani eles nos ensinaram questões valiosas como: solidariedade, relação de respeito com a natureza, senso de comunidade, acolhimento entre outras.
Nesta data, um ponto importante da pesquisa foi a visita a cachoeira da reserva, onde o acesso se deu através de uma trilha e durante o percurso ocorreram várias conversações que objetivaram entender como se dá a relação desta comunidade com o meio em que se vive. A população da reserva vive uma relação de simbiose com a natureza, à medida que extrai os recursos naturais necessários para sobrevivência os indígenas preservam os ciclos naturais, isso acontece por exemplo nos momentos de caça e pesca, sempre respeitando os limites do meio ambiente.
Neste sentido, a compreensão do estilo de vida tupi-guarani se tornou a cada momento mais interessante. Em uma conversa com a filha do Pajé, que foi a pessoa responsável pela nossa recepção, ela nos explicou como funcionam as relações de poder dentro da comunidade da Aldeia Rio Silveiras, que no total contam com 7 Pajés, em seus diferentes núcleos que praticam a mesma língua e religião, compartilham da etnia Tupi-guarani e seguem a cultura Guarani.
Ela explica que o cargo de Pajé é o mais importante, pois este assume papel de líder espiritual, que tem o dom de conversar com Nhanderu - ser criador na mitologia tupi-guarani. Esclarece que esta posição não é passada necessariamente por geração, ou seja, de pai para filho. Acredita-se que a criança quando nasce já vem com o dom de ser pajé e para tanto e deve ter habilidades como: boa oratória, aconselhamento, facilidade de assimilação da tradição, organização e liderança. Segundo nossa anfitriã, a posição de pajé pode ser exercida por mulheres, e a criança detentora do dom é revelada através de um ritual.
Ainda nesta conversa, ela nos apresentou alguns rituais praticados, como por exemplo o ritual de passagem: quando as meninas passam para a fase adulta, assim, passam a ser consideradas mulheres. Quando se chega na fase da Menarca - primeira menstruação - a comunidade já considera a transição de menina (criança) para mulher (adulta), então é realizado um ritual de passagem onde são alguns dos costumes: cortar o cabelo da menina e levá-la ao isolamento em uma das casas onde a mesma só poderá ter contato com mulheres mais experientes da aldeia, e neste contexto lhe é ensinado algumas funções, como: fazer artesanato, como cuidar da casa, como cuidar dos filhos etc.
Antigamente este ritual era mais rigoroso e durava cerca de 1 ano, e nesta época não se considerava o período da adolescência, era comum ver meninas de 13/14 anos grávidas e casadas após sua realização. Até hoje algumas famílias mais tradicionais seguem este modelo e casam as filhas cedo. Atualmente este ritual dura cerca de 1 mês, essa adaptação foi necessária principalmente por conta do calendário escolar considerando o ano letivo.
Uma das principais diferenças do ritual antigo para o mais atual é que antes após sua realização as meninas já eram direcionadas ao ritual de casamento, coordenados por sua família incluindo a escolha do parceiro, hoje as meninas podem escolher se querem ou não se casar neste momento e com quem se casarão. Essa liberdade de escolha advém muito da introdução da escola na comunidade, pois neste ambiente as meninas aprendem uma série de direitos que lhe são garantidos e entendem que não são obrigadas a casar independentemente da idade e que podem escolher seus parceiros caso optem por isso.
O ritual de transição da vida infantil à vida adulta dos meninos também é marcado pelo período da puberdade, por volta de 12/13 anos, quando alguns sinais apontam para esta transição, como o engrossamento da voz. Este ritual também ocorre na casa de reza, e após sua realização o menino é direcionado ao líder dos guerreiros que tem o papel de transmitir alguns ensinamentos, como por exemplo a construção de casas.
Uma outra questão interessante, trazida pela nossa anfitriã, foi a concepção do papel do Cacique. Ela explica que antigamente não se tinha cacique, foi uma construção que veio através da cultura não indígena, o termo “cacique” era como os homens brancos se referiam aos indígenas que mais se relacionavam com as questões de fora da aldeia, com o passar do tempo o próprio povo indígena adotou o termo para intitular aqueles que cumpriam o papel de representá-los no ambiente externo, por exemplo: meio político, na mídia etc. Assim, o cacique atualmente assume papel de grande importância, sendo que ao conhecer as leis ele pode melhor representar e garantir o direito dos povos indígenas. Escolhido através de uma reunião da comunidade, que elege o cacique, exerce durante todo seu tempo de vida.
Foi curioso observar que dentro do território da aldeia fica localizada a Escola Estadual Indígena Txeru Ba e kua-i que é destinada à formação escolar da população indígena, a escola conta tanto com o ensino tradicional não indígena da Base Nacional Comum Curricular brasileira, quanto com os saberes tradicionais tupi-guarani, e neste sentido, a língua portuguesa e a tupi-guarani são ensinadas. Sendo que o time de professores é formado por professores guaranis e não indígenas. A reserva conta também com um Posto de Saúde localizado dentro da aldeia que presta serviço exclusivamente a população indígena e tem sua manutenção também realizada pelo município de São Sebastião, que faz divisa com o município de Bertioga nos limites da reserva.
O último dia, 06 de novembro (domingo), foi marcado pela nossa visita à Praia da Boracéia no período da manhã, onde a equipe se encontrou em confraternização e fez algumas reflexões sobre a experiência imersiva vivida. Neste momento, realizei grandes reflexões sobre a vivência, entre elas a importância de sair de uma posição etnocêntrica e visualizar a riqueza de conhecer outras culturas.
Considerando minha formação como gestora pública, esta pauta se torna ainda mais fundamental em um contexto de ataque a culturas indígenas, como vem ocorrendo de forma intensa no Brasil nos últimos anos. Me fez questionar que tipo de gestora pública quero ser, entendendo que a proximidade com a população promove um melhor entendimento das verdadeiras demandas das regiões e que estas se alteram em grande escala a depender da cultura, localidade e disposição de recursos.
Por fim, gostaria de registrar meus agradecimentos à toda equipe, formada por alunos e professores, especialmente ao docente Jorge Alberto Silva Machado que promove o oferecimento da disciplina. Agradeço ainda à toda comunidade da Reserva Indígena Rio Silveiras pela excelente recepção.