Wikinativa/Thalles Moreira de Oliveira (vivencia Guarani 2019 - SMD - relato de experiência)

Introdução

Por meio da disciplina ACH3648 - Seminários de Políticas Públicas Setoriais III - Multiculturalismo e Direitos, ministrada pelo Prof. Jorge Machado na Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo, foram realizadas diversas dinâmicas que visavam o aprofundamento dos alunos em diversas questões relacionadas aos povos indígenas. Dentre as atividades, foi proposta uma viagem para a Aldeia Rio Silveiras, localizada entre os municípios de Boraceia e São Sebastião, povoada por povos indígenas Tupi e Guarani.


Aulas

Desde a primeira aula, os alunos tiveram contatos com materiais em diversos formatos que apresentaram as dificuldades na manutenção das culturas indígenas pelos seus povos, bem como as belezas por trás de sua organização social pautada no coletivismo e na fraternidade. Algumas aulas teóricas foram substituídas por seminários apresentados por representantes dos povos indígenas e/ou antropólogos e práticas dinâmicas, o que tornou todo o processo de aprendizagem muito mais rico e imersivo.


Preparação

Além de todas as atividades realizadas em sala de aula, o professor propôs uma viagem de campo para uma aldeia indígena, com o intuito de nos aproximar ainda mais da cultura dos povos originários e podermos compreender melhor o porquê de continuarem, até os dias atuais, lutando pela conservação de seus costumes. A sala foi divida em 5 grupos, onde cada um ficou responsável pelo planejamento de atividades distintas que seriam realizadas na aldeia. Eu me inseri no grupo de infraestrutura, pois, por ser a minha segunda vivência na Aldeia Rio Silveiras, senti que podia auxiliar melhor os demais alunos que, porventura, se sentissem inseguros sobre como aproveitar melhor a experiência. O nosso grupo ficou responsável pelo planejamento do cronograma da vivência, pela montagem e desmontagem de equipamentos audiovisuais, pela acessibilidade dos alunos que apresentassem alguma dificuldade infraestrutural e pela manutenção dos resíduos produzidos pelo grupo de visitantes. Uma semana antes da viagem, realizamos uma aula para ajustes no cronograma desenvolvido coletivamente e o professor transmitiu algumas orientações sobre a nossa permanência na aldeia.


Início da Vivência

Saímos no dia 15 de Novembro, sexta-feira, por volta das 10 horas da manhã, da EACH em direção à Reserva Indígena Rio Silveiras. O tempo estava nublado, chuvoso e um pouco frio. Foram mais de seis horas de viagem, por conta do trânsito que pegamos na estrada. Apesar da demora, o grupo de alimentação se mostrou muito competente ao preparar com antecedência alguns alimentos, o que me ajudou a suportar a viagem. As brincadeiras que fizemos no ônibus também foram muito importantes para que eu me sentisse confortável e pertencente ao coletivo. Eu curso Gestão Ambiental e a maior parte dos alunos eram de outro curso, Gestão de Políticas Públicas, porém, apesar da maioria estar em semestres mais avançados e se conhecerem a bastante tempo, eu fui muito bem recebido por todos e me percebi em um ambiente acolhedor. A viagem mal tinha começado e eu já notei que muitos sentimentos bons estariam por vir. Ao chegarmos na aldeia, tiramos nossas malas do ônibus e nos direcionamos para os locais onde iríamos montar nossas barracas de acampamento. Fizemos uma roda para receber orientações do professor, e logo em seguida o pajé daquele núcleo ofereceu uma antiga casa de reza para que alguns armassem suas barracas lá dentro. Eu escolhi o local pois não tinha levado nem colchão nem lona para proteger a barraca da humidade, muito comum no clima local. Após a montagem das barracas, me reuni com alguns membros do meu grupo para montarmos as tendas que seriam usadas para proteger as pessoas e os aparelhos eletrônicos de possíveis chuvas. Em seguida, fizemos a instalação e a montagem dos equipamentos audiovisuais para que alguns vídeos fossem apresentados pelo Grupo de Arte e Música. Durante a exibição, reparei que muitas crianças se interessaram e se aproximaram do projetor para nos acompanhar durante a atividade. Após o fim dos vídeos, fizemos uma rápida refeição e fomos participar da primeira reza da vivência.


Primeira Reza

Como já tive experiências anteriores com povos indígenas, eu já conhecia a dinâmica da casa de reza. Muita fumaça, músicas simples e calmas e orações abrem o período de celebração religiosa da comunidade. Após um certo tempo, a casa começa a encher, tanto de indígenas quanto de alunos, e as orações do pajé, em Guarani, se iniciam. Aos poucos a música vai se intensificando e de maneira muito orgânica mais membros da comunidade vão se inserindo nas cantigas. Quando dei por mim, já estava em pé dançando e sentindo uma vibração tão positiva que percebi que, mesmo já tendo tido experiências anteriores, aquela estava sendo diferente e mais intensa. As mulheres cantando com vozes agudas sempre me causam um arrepio inexplicável. A simplicidade das músicas não tiram o brilho de suas intenções tão amorosas, claramente perceptíveis ao se entregar às vibrações e sensações. No fim, o cacique daquele núcleo contou um pouco sobre a história de seu povo, suas lutas e seus costumes, e se pôs a responder algumas perguntas que pudessem surgir. Em seguida, o professor e o monitor Carlos se expressaram e encerramos assim a primeira reza. Percebi que, assim como eu, muitos saíram de lá emocionados e impressionados com as sensações únicas experienciadas naquele momento. Fomos jantar. A comida gostosa e saudável e o céu estrelado fecharam aquela noite com chave de ouro e com a promessa de que o próximo dia seria ensolarado e mais incrível ainda… e assim foi.


Segundo dia

O dia amanheceu quente e acompanhado de sons de diversos pássaros diferentes. Nada melhor do que se levantar e perceber que está tão próximo da Mata Atlântica e de suas belezas naturais. Pensar que há milhares de anos atrás nossos ancestrais conviviam com essa realidade cotidianamente, mas alguns preferiram se rodear de concreto, fez com que eu quisesse estar lá para sempre, e se caso não pudesse, que conseguisse lutar para que mais pessoas tivessem essa catarse, e compreendessem que a verdadeira felicidade não está em se apropriar da natureza e alterá-la tanto, mas sim em se permitir ser apropriado por ela e deixar que ela altere a sua percepção sobre a vida. Após o café da manhã, nos preparamos para a realização de uma trilha, por meio da mata, em direção a dois lugares: ao local onde o pajé pretende reerguer um núcleo onde ele já viveu quando criança, e, posteriormente, para uma das cachoeiras do Rio Silveira. Também levamos algumas mudas de árvores frutíferas para plantar em alguns locais durante a trilha. Percebi que todos apresentavam semblantes muito felizes, alguns, como eu, andando descalços. Eu estava me sentindo tão tranquilo e completo desde o primeiro dia que esqueci de carregar o meu celular, pois eu realmente não senti falta de utilizá-lo. O ponto negativo nisso foi que estava limitado a tirar poucas fotos para registrar o momento. Entretanto, não olhar para o relógio, não checar notificações das redes sociais e não me lembrar de problemas que deixei na capital me fez muito bem. Foi a segunda vez que estive lá, mas foi tão bom que parecia a primeira. Desta vez eu pude observar detalhes que tinham passado despercebido anteriormente. O impacto positivo que aquela imersão tinha sobre mim, as demais pessoas e os povos locais só aumentavam a minha gratificação por estar lá. Após chegarmos no antigo núcleo e ouvirmos do pajé um pouco sobre a história local, nós plantamos a mudas e nos dirigimos para a cachoeira. Chegando lá, alguns já ligaram suas câmeras para registrar a beleza única do local e outros já pularam dentro da água gelada do rio. Eu, fui para o rio e não quis mais sair de lá. A sensação de purificação e de contato com a natureza me fez retornar aos mesmos pensamentos. Aquele lugar parecia fazer parte de mim. E fazia. Na verdade, ele faz parte de todos. Alguns enxergam e tentam mantê-lo, assim como os povos originários locais. Se todos abraçassem essa causa, o mundo seria muito melhor. Ao retornarmos à aldeia, fomos almoçar e realizar as atividades planejadas. Apesar do cansaço da caminhada, estava me sentindo com muita energia para muitas coisas. Não é normal eu me sentir assim na capital. Creio que lá na aldeia eu me sentia carregado de energias boas a cada minuto em vez de as sentir sendo “sugadas” como ocorre em meio a tanto concreto da cidade. Alguns realizaram oficinas, outros se ocupavam de atividades diferentes. Naquele momento eu sentia que precisava parar para refletir sobre as minhas escolhas e sobre como eu tinha vivido até então. O lugar era perfeito para que a reflexão fosse efetiva. Andei sem rumo, percebendo os olhares brilhando, os sorrisos sinceros, as crianças da aldeia felizes e interagindo com todos como se fossemos irmãos. Para eles, nós somos irmãos; somos nós, Juruá, que fomos criados em uma sociedade individualista. Resolvi participar de algumas brincadeiras com as crianças e com os bambolês. Todos nos divertimos muito. Me senti criança de novo, sem vergonha de agir segundo o meu coração. Como é bom ser criança! Ver as outras crianças grandes como eu sendo felizes também. Ver as crianças pequenas nos abraçando, sorrindo muito e, mesmo sem trocar muitas palavras, trocando informações por meio de gestos e olhares. Brincamos até a hora da reza. Às 7 horas da noite começou a reza do segundo dia. Não esperava que seria ainda mais impactante e emocionante do que a do dia anterior. Foi quase tudo como da primeira vez, porém, dessa vez o pajé se ofereceu para fazer uma pajelança em algumas pessoas que se mostrassem interessadas. É como uma reza, com o intuito de afastar vibrações negativas e enfermidades e atrair boas energias para a vida da pessoa. Eu estava há muito tempo sentindo essa necessidade e fui até o local para passar pelo processo. É inexplicável. Uma sensação única. Não é algo milagroso e instantâneo, mas é possível sentir a liberação de vibrações negativas ao perceber uma crescente paz interior. Após o processo, eu me senti tão cheio de amor que percebi o quão poderosa é a fé. Quando temos fé, conseguimos lidar muito melhor com as adversidades da vida. Além da conexão com a natureza e com os nossos ancestrais que eu senti naquele momento. No final, fui convidado para pitar um cachimbo usado para atrair bons espíritos e para purificar o ambiente e os objetos. Naquele momento me senti completo. Como se não precisasse de mais nada, apenas da música e da fumaça que dominava o ambiente trazendo limpeza e fortificação para o espírito. No fim, dançamos uma última música e não consegui segurar a emoção. Chorei, mas foi de alegria por estar sentindo algo tão único e tão bom. Foi um dia tão perfeito que só podia terminar de uma única forma: com uma socialização em volta da fogueira, com comida, muita música e, claro, sorrisos.


Terceiro Dia

No domingo, último dia da vivência, foi difícil não pensar que o fim estava próximo. Mas isso não me impediu de tentar aproveitar ainda mais aquele lugar tão especial. Tomamos café da manhã e nos preparamos para ir à praia. Foi uma passagem rápida, pois tínhamos que ir embora cedo para não chegarmos muito tarde na EACH caso o trânsito se igualasse ao da sexta-feira. Fomos de ônibus para não demorarmos muito, apesar de não ficar muito longe do local onde estávamos acampados. Nos acomodamos na areia e conversamos sobre diversos assuntos. Como sempre, demos muitas risadas, trocamos experiências e pensamentos sobre como estava sendo a vivência. Não ouvi nenhum ponto negativo sendo apresentado. Muitos disseram que se impressionaram, pois não esperavam que fosse tão bom. Eu concordei, afinal, aquela experiência estava sendo uma das melhores da minha vida. Alguns de nós entramos um pouco no mar. Em seguida, voltamos para a aldeia e nos preparamos para a viagem de volta. Desmontei minha barraca com um leve sentimento de decepção por estar indo embora; mas ao mesmo tempo estava realizado e satisfeito pela carga de bons sentimentos que experienciei nesses dias. Antes de ir embora, conheci um rapaz chamado Ricardo. Foi uma conversa muito agradável, pois era a primeira vez que estava conversando com um indígena sozinho - eu sempre tive vergonha de puxar algum assunto - e pude compreendê-los melhor. Falamos sobre a importância dessa união entre os povos originários e os Juruá, sobre as vantagens de manter uma vida simples e espiritualmente fortificada e em como é difícil para eles lidarem com tanta pressão de pessoas que querem se apropriar de suas terras. No fim, ele me disse algo que me impactou muito, me fez refletir, e percebi que ele tinha toda a razão: que muitos de nós dizemos que eles precisam de ajuda, mas no fundo somos nós (Juruá) que precisamos de ajuda. Eles só precisam da natureza para viver, e nós temos que pagar por tudo. Pagar aluguel, água, luz, e ainda conviver com tantas doenças e tristezas”. Após guardarmos nossas bagagens no ônibus e nos despedirmos dos moradores da aldeia, seguimos viagem de volta à metrópole.


Última Aula

No dia 22 de Novembro, realizamos a última aula da disciplina. Nesse dia, nós trocamos experiências e pensamentos sobre a viagem e levantamos pontos positivos e negativos sobre as atividades que foram realizadas pelos grupos. Num geral tivemos mais feedbacks positivos. Eu consegui concluir com toda essa experiência que os povos indígenas precisam da nossa ajuda; mas não para sobreviver, porque isso eles fazem melhor do que nós Juruá, mas para manterem sua cultura viva e para a preservação do meio ambiente. Eles possuem um papel de extrema importância no mundo, uma vez que eles não detêm hábitos e costumes tão prejudiciais à natureza. Para os povos indígenas, a natureza é a mãe que deve ser cuidada para que possa cuidar de todos os seus filhos. E eu concordo plenamente. Além disso, percebi que as experiências nunca serão iguais. Sempre há algo novo a se aprender com esses povos tão sábios. Nós, Juruá, nos sentimos às vezes tão superiores intelectualmente, mas ao nos permitirmos ouvir o que eles têm a dizer, fica claro que nós que estamos fazendo errado. Pelo menos muitos de nós. Mas alguns estão lutando para que as culturas indígenas não se acabem, e que possam, até mesmo, crescer e se espalhar. Sinto que ao direcionar os meus estudos à uma compreensão cada vez maior dos pensamentos tradicionais, estarei contribuindo a mim mesmo, me enchendo de cultura e sabedoria milenar; e se puder transmitir tais conhecimentos em políticas públicas ambientais, o benefício será sentido por todos. É uma luta difícil e constante, contra o capitalismo selvagem, contra os meios hegemônicos de extração e produção de energia e contra líderes mundiais totalmente alheios às necessidades das populações socioeconomicamente vulneráveis. Mas se puder fazer minha parte, sei que outros enxergarão o que eu enxerguei. Os Juruá conseguiram causar impactos negativos na natureza em décadas, com uma proporção que os povos originários com seus costumes nunca fariam, exatamente por serem sustentáveis e viver em harmonia com a natureza.


Considerações Finais

Agradeço ao Professor Jorge pela disponibilização dessa disciplina e pela vivência que foi de extrema importância para o aprendizado de todos. Melhor do que ler sobre, é viver. Estar lá dentro fez com que todo o conteúdo da disciplina se fixasse de forma mais efetiva, e trouxe um olhar mais crítico sobre como a humanidade enxerga os povos indígenas. Vejo essa quebra de paradigmas como algo necessário para a evolução da humanidade. Agradeço, também, ao monitor Carlos, pois sua relação com os povos da Aldeia Rio Silveiras foi o que deu início a esse projeto tão lindo e especial. Agradeço também aos integrantes da AUPI (Aliança Universidade e Povos Indígenas) que estiveram lá conosco auxiliando para o sucesso da vivência e a todos os alunos por me tratarem como um irmão. Posso não ter tirado fotos por (felizmente) não lembrar de mexer no celular, mas levo na mente e no coração experiências inesquecíveis, e é isso que considero o mais válido.