Educação Aberta/A vigilância na educação

Introdução

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A pandemia de COVID-19 trouxe inúmeros desafios para professores e alunos, bem como instituições educativas. Um dos temas menos discutidos nesse período foi a crescente adoção de plataformas de tecnologia, particularmente de grandes empresas de software estrangeiras - conhecidas pelo acrônimo GAFAM (Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft) - por instituições e redes de ensino públicas e privadas, do ensino básico ao superior. O projeto Educação Vigiada têm mapeado essa adesão, e demonstra que mais de 65% de instituições e redes (considerando instituições públicas ensino superior, redes de ensino estaduais e redes municipais com mais de 500 mil habitantes) expõe seus alunos, professores e gestores ao chamado "capitalismo de vigilância".

Nesse texto, escrito de forma colaborativa ao longo de um semestre por alunos de Pedagogia da Universidade de Brasília (Prof. Tel Amiel) e Universidade do Estado de Minas Gerais (Profa. Janaina Diniz), são discutidos alguns dos principais problemas que surgem na adoção dessas plataformas, no âmbito da educação.

Coleta e análise de dados e metadados

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No Brasil, como em diversos outros países, grandes empresas de tecnologias, como Google e Microsoft são cada vez mais utilizadas por instituições e redes de ensino por oferecerem pacotes de serviços "gratuitos" à alunos e aos professores. Estes pacotes de serviços são promovidos como plataformas e soluções tecnológicas para educação. A Google oferece o G Suite for Education (que inclui serviços como Gmail, Meet, Classroom, Drive e outros) e a Microsoft oferece o serviço o Microsoft 365 (que inclui Word, Powerpoint, Outlook, OneNote, Forms, Teams, dentre outros). No entanto, a gratuidade torna-se apenas uma estratégia por trás de um discurso comercial. Oculta-se, com isso, o real preço desses serviços, ou seja: a coleta de dados e metadados das comunidades educacionais.

Parra[1] define dados e metadados como:

[...] duas camadas de dados. Uma relativa ao conteúdo de nossa comunicação: as palavras que lemos e escrevemos fornecem um vocabulário que pode se relacionar a objetos e temas de interesse, e seu contexto semântico, passível de ser analisado por sistemas de correlação computacional. Uma segunda camada diz respeito aos metadados, que fornecem informações sobre nossas conexões (de onde acessamos, com quais máquinas ou serviços nos conectamos, o nosso deslocamento físico); sobre nossa rede de interações, nosso grafo (quem interage com quem); sobre padrões de acesso e navegação (duração dos acessos, quais sites e serviços utilizados), características de nossas máquinas (sistema operacional utilizado, softwares instalados), entre outros. [...]

Notamos, pois, que a partir da adesão à serviços para uso dos pacotes educacionais, as instituições de ensino geram e armazenam metadados e dados de usuário, à medida que estes são incluídos ou aderem aos diversos serviços oferecidos (de forma compulsória ou sugerida). Uma análise mais profunda nos leva à conclusão de que empresas de tecnologia de informação, sob o pretexto de utilizarem os dados obtidos com a finalidade de criar novos serviços, melhorar os que já são ofertados e oferecer aos usuários um conteúdo personalizado, utilizam os dados dos usuários, na verdade, para favorecer aos próprios interesses econômicos.

Empresas podem usar as interações dos estudantes em suas plataforma, por exemplo, para coletar dados sobre padrões de comportamento e de consumo que são passíveis de tratamento e podem ser vendidos ou utilizados para efeitos de publicidade direcionada[2]. As empresas possuem grandes interesses nesse tipo de informação, já que têm como parte (maior ou menor) de seus negócios, a venda de propaganda bem como produtos de consumo. Ou seja, ao aderirmos a serviços "gratuitos" revelamos nossos dados pessoais, gostos, interesses, interações, hábitos e comportamentos. Tudo que fazemos quando conectados a estas plataformas transforma-se em dados que são coletados, armazenados e processados. Para além disso, essas plataformas também podem, potencialmente, já que armazenam dados sensíveis, acessar dados de projetos e pesquisas científicas das instituições contratantes (como no caso de pressão de algum Estado). Tal ação traria prejuízos a pesquisadores e instituições de pesquisa no que diz respeito à confidencialidade e possíveis benefícios financeiros ao país.

Como se não bastasse isso, os termos de privacidade da Google para o G Suite for Education, por exemplo, são disponibilizados apenas na língua inglesa, mesmo para contratantes do Brasil, sendo que a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) brasileira não admite essa prática[3], particularmente em um contexto que envolve crianças:

"as informações sobre o tratamento de dados [...] deverão ser fornecidas de maneira simples, clara e acessível, consideradas as características físico-motoras, perceptivas, sensoriais, intelectuais e mentais do usuário, com uso de recursos audiovisuais quando adequado, de forma a proporcionar a informação necessária aos pais ou ao responsável legal e adequada ao entendimento da criança" (BRASIL, 2018)[4].

As empresas têm termos de uso gerais e termos específicos que devem ser analisados. A Microsoft, além do termo de privacidade geral, possui os que se aplicam a alguns dos serviços compatíveis com seu pacote Microsoft 365 Educação (como os GitHub, LinkedIn Sales Navigator, Azure Stack). A proliferação de termos dificulta a interpretação desses documentos por parte dos usuários. O mesmo ocorre com alguns serviços do pacote G Suite for Education. Afora, existe a dificuldade de interpretação dos termos "dados" e "informação" contidos nestes contratos, como nos apontam Lindh e Nolin (2016, p. 8 apud PARRA et al., 2018, tradução livre[5]):

[…] por um lado, o Google frequentemente se refere às práticas relativas aos 'dados do usuário', 'dados pessoais', 'dados do cliente', etc. Por outro lado, atribui-se um significado completamente diferente às 'informações coletadas', 'informações que coletamos' ou 'informações que você nos fornece'. Essa distinção nunca é esclarecida, pois esses conceitos, embora aparentemente frequentes, nunca são definidos. Isso é crucial, pois esses conceitos desempenham um papel vital na estruturação dos textos das políticas da empresa.

De igual modo, a Google afirma em sua política de privacidade "que compartilha informações pessoais com empresas, organizações e indivíduos quando tem o consentimento do usuário final ou de seus pais ou responsáveis legais" (p.43)[3] em caso de estudantes menores de idade. Além de se apresentarem como meras operadoras dos dados dos usuários finais, a Google atua com a permissão das Secretarias de Educação ou instituições de ensino - estas últimas sendo as controladoras desses dados, que deveriam interferir no escopo das informações coletadas e são corresponsáveis pela privacidade dos dados[3]. Com isso, essas plataformas transferem responsabilidades maiores e delegam às escolas a competência de proteger a privacidade de seus alunos.

Predição de comportamento e fake news

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A partir de uma análise e tratamento dos dados coletados sobre nossas atividades em aplicativos e sites, empresas que têm como modelo central de negócios a venda de anúncios, como Google e Facebook, podem prever, influenciar comportamentos, além de direcionar o que consumimos. Um exemplo dessa influência são as informações que recebemos através de feeds das redes sociais - sequência de postagens, links e informações que têm a sua distribuição definida por algoritmos não transparentes. A opacidade dos algoritmos permite que as empresas de tecnologia da informação realizem processos obscuros e inacessíveis a sociedade[6].

Os sistemas algoritmos se tornaram alvo de atenção pela proliferação das chamadas fake news. Fake news são "informações falsas, imprecisas e/ou tendenciosas, divulgadas como se fossem notícias reais e podem até acabar com a reputação de uma pessoa ou organização"[7]. As fake news são usadas para prejudicar grupos de pessoas, instituições e até mesmo uma nação através da propagação de mentiras convenientes.

Com a coleta e tratamento de dados, uma porta se abre para que estes sejam organizados em perfis e para o disseminação de conteúdos falsos direcionados ao público-alvo. Os sistemas algoritmos dos aplicativos selecionam os usuários que receberão os conteúdos. Nessa lógica, nem todos tem acesso a todas as informações disponibilizadas na sua rede social. Acessamos mensagens direta ou indiretamente relacionadas ao perfil definido anteriormente pelos algoritmos. Esse modelo traz consigo o perigo de vivenciarmos uma realidade unidimensional no mundo online, vivendo em "bolhas" de informação ou desinformação - o que colabora para afetar a nossa visão de mundo e da realidade.

Como exemplo, em meio a pandemia do COVID-19, milhares de notícias falsas foram disseminadas por meio das mídias sociais. Com a intenção de esclarecer a população sobre a falsidade de algumas dessas notícias, a Fiocruz, em parceria com a iniciativa Eu fiscalizo, desmitificou 10 notícias falsas veiculadas sobre a pandemia[8]. Nesse sentido, percebemos que a propagação dessas fake news pode afetar muito mais do que a vida online. Pode influenciar diretamente a saúde pública do país.

O desenvolvimento do pensamento crítico é essencial para saber avaliar o que é fato, o que é mentira e quais as intenções daqueles que criam e disseminam as fake news. Nesse sentido, vale refletir: quais interesses políticos e econômicos estão por trás das fake news?

Fidelização dos usuários

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A fidelização de usuário é um processo que ocorre de forma gradual e imperceptível e, aos poucos, vai gerando familiaridade e dependência do “cliente” a determinado produto. A exemplo, podemos citar a barra de pesquisa Google que já vem programada como navegador padrão de computadores, smartphones e tablets. Para muitos, não ocorre usarmos outro navegador ou até mesmo a existência de um diferente[9][10].

Outra forma de fidelização de usuários é a prática do zero rating realizada em parceria entre operadoras de telefonia e algumas empresas de tecnologia. Consiste em permitir o acesso de forma ilimitada ou sem cobrar o tráfego de dados móveis a alguns serviços online, como apps de rede sociais e mensagens[11] . Assim, quando expira a franquia do usuário, há acesso livre à apenas alguns aplicativos e serviços, como Facebook, Whatsapp ou Netflix. A prática do zero rating conduz os usuários a utilizarem, muitas vezes, somente estes softwares e plataformas, particularmente os mais pobres, que têm planos pré-pagos ou com menor franquia.

Na contexto educacional existem movimentos na mesma direção. Como afirmou o diretor de educação do Google Brasil o Estado de São Paulo: “Uma das vantagens de oferecer serviço para escolas é fidelizar o usuário desde cedo”[12]. Notamos, então, que ao oferecerem seus serviços de forma “gratuita” para instituições escolares e acadêmicas, essas corporações têm como parte de sua estratégia, que usuários se acostumem com seus serviços e continuem à demandá-los ou utilizá-los no futuro.

A fidelização dos usuários implica, também, uma dependência tecnológica por parte das instituições educacionais. Ao utilizarem estes recursos “gratuitos” na educação – alunos, professores e gestores vão, gradualmente, se habituando com essas ferramentas e serviços. Potencialmente terão menor ímpeto de conhecer, experimentar ou se familiarizar com outras, dado o status institucional desses sistemas.

Esse tendência na educação está na contra mão do que é previsto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) que destaca em sua competência geral 5°: "Compreender, utilizar e criar tecnologias digitais de informação e comunicação de forma crítica, significativa, reflexiva e ética nas diversas práticas sociais (incluindo as escolares) para se comunicar, acessar e disseminar informações, produzir conhecimentos, resolver problemas e exercer protagonismo e autoria na vida pessoal e coletiva." [13]

Há uma tentativa de credibilizar esta tendência de mercado. Muitos acordos firmados, entre estas stacks e escolas ou universidades, usam a imagem de algumas instituições nacionais prestigiadas para se autopromover. Através do discurso de que instituições de renome utilizam suas plataformas, atraindo dessa forma outros “clientes” e, ao longo do tempo, os fidelizando aos seu software. Há uma transferência de credibilidade "...quando uma instituição como a Unicamp ou a USP, aderem a um serviço como o GSuite, instituições de menor porte podem identificar nessa ação um aval ou uma garantia. Ao mesmo tempo, a Google poderá apontar à potenciais clientes/parceiros que instituições de renome já aderiram à plataforma, o que certamente reduzirá preocupações de novos e potenciais clientes"[1].

Autonomia tecnológica institucional (redes, escolas), docente e discente

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A autonomia tecnológica pode ser definida como a capacidade de produzir e reproduzir tecnologia avançada[14]. Essa autonomia é de suma importância para as instituições públicas de educação e para a comunidade escolar e acadêmica e é um elemento importante para o desenvolvimento da nação.

A adoção de plataformas das grandes corporações estrangeiras para viabilizar a educação pública compromete a autonomia tecnológica institucional. Com um olhar mais amplo, tendo em vista o alto número de instituições de educação que utilizam plataformas estrangeiras, a educação pública brasileira está consideravelmente submissa às tecnologias de informação fornecidas por empresas estrangeiras.

O uso de plataformas corporativas na educação também interfere na autonomia docente e discente. O processo pedagógico fica submetido às funcionalidades das plataformas, ou seja, o professor deve adaptar o seu fazer docente aos recursos das plataformas. Recursos estes que não foram desenhados ou desenvolvidos para atender as necessidades dos docentes ou dos discentes. Lembremos que o Brasil é um país com uma grande diversidade cultural e com profundas diferenças sociais e econômicas. Essas questões afetam diretamente o processo pedagógico. Quando apenas duas plataformas passam a viabilizar a educação em 65% das instituições públicas de ensino do país, é claro que as diferenças e diversidades do povo brasileiro não serão consideradas. Além disso, muitas vezes, a escolha dessas plataformas não conta com a participação dos professores e alunos. Elas são impostas pelas secretarias de educação ou reitorias das universidades aos principais usuários dessas tecnologias.

Sobre a autonomia discente, especificamente, ressaltemos que as plataformas da Google e Microsoft são utilizadas também na educação básica, por crianças e adolescentes. Além das implicações sobre a fidelização dos usuários, expostas no item acima, há o comprometimento no desenvolvimento da criticidade do estudante. Freire[15] defende que desenvolvimento da autonomia do sujeito perpassa pela superação da curiosidade ingênua para o alcance da curiosidade epistemológica. Esta última, é preconizada pelo autor como sendo a

curiosidade que podemos nos defender de 'irracionalismos' decorrentes do ou produzidos por certo excesso de 'racionalidade' de nosso tempo altamente tecnologizado. E não vai nesta consideração nenhuma arrancada falsamente humanista de negação da tecnologia e da ciência. Ao contrário, é consideração de quem, de um lado não diviniza a tecnologia, mas, de outro, não a diaboliza. De quem a olha ou mesmo a espreita de forma criticamente curiosa (p. 33-34).

Ao usar plataformas corporativas desde a infância ou durante toda a formação acadêmica, é possível que o aluno fique suficientemente adaptado à essas ferramentas a ponto de não considerar viável conhecer e usar outras tecnologias. Nesse cenário as tecnologias são usadas de forma acrítica e consequentemente não há a superação da curiosidade ingênua. E se essa superação não acontece, o desenvolvimento da autonomia do sujeito fica comprometida. Vale ressaltar que a fidelização dos usuários realizada pelas plataformas corporativas compromete também a autonomia dos professores e dos alunos.

Outro ponto que devemos destacar é que a precarização das instituições públicas de educação do Brasil, intensificada nos últimos anos, reflete nos contingenciamentos de gastos na educação pública e também nos cortes de investimento público para as áreas de tecnologia de informação. Ao propor uma redução de gastos com a adesão à serviços de empresas estrangeiras, são desconsiderados os custos operacionais e de manutenção, que oneram as instituições de educação de forma permanente[1]. A crescente dependência desses sistemas acarreta um desinvestimento em serviços controlados por instituições e governos.

Frisamos que as tecnologias de informação usadas no ensino público devem estar a serviço da educação, e não o contrário.

Venda e compra de dados entre empresas e 'big data'

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Big Data é a análise e a interpretação de grandes volumes de dados de grande variedade. São necessárias soluções específicas para Big Data que permitam aos profissionais de TI trabalharem com informações não-estruturadas a uma grande velocidade. Big Data é também definido como uma forma de captar e interpretar dados coletados de usuários, seja através de sites, aplicativos ou redes sociais.

Zuboff (p. 18)[16], afirma que o Big Data é um rolo compressor tecnológico com "vida própria" e que somos apenas telespectadores desse processo. Para a autora, Big Data é tratado como se fosse um objeto, um efeito ou uma capacidade tecnológica, mas, em sua perspectiva, o Big Data tem uma origem no social e sua consequência é o que ela chama de "capitalismo de vigilância". Uma segunda perspectiva é a de Mayer-Schönberger e Cukier (p. 13) apresentada no artigo de Antunes e Maia[17]. Para os autores, o Big Data é descrito como “a capacidade da sociedade de aproveitar a informação de formas novas, para obter percepções úteis ou bens e serviços de valor significativo” (p. 03). Segundo a interpretação dos autores, isto coloca em questão a maneira como vivemos e interagimos, utilizando de meios digitais que capturam e processam dados numa escala global, em um universo com informações em um volume de constante crescimento.

Para esclarecer como ocorre o processo de organização dos dados pessoais, trouxemos Silveiro, Avelino e Souza[18] que expõem quatro camadas do mercado de dados: "a primeira é a de coleta e armazenamento de dados; a segunda pode ser denominada de processamento e mineração de dados; a terceira é a de análise e de formação de amostras; por fim, a quarta é a de modulação." (p. 223, grifo nosso). Na modulação, por exemplo, os dados que foram analisados e processados permitem realizar táticas de oferta e venda final do produto para aquele público especifico. O Big Data é então uma forma de gerar, captar e interpretar dados das pessoas que utilizam as tecnologias de informação e comunicação. Para notar esse efeito é possível verificar que sites oferecem produtos, informações ou serviços de acordo com nossas pesquisas e comportamentos online. Como exemplo, temos a Amazon que nos recomenda um produto dependendo de padrões de compra e busca; a Google nos apresenta propaganda e recomendações baseadas no seu perfil nos diversos serviços; o Instagram conhece nossos gostos por meios dos perfis curtidos; e o Facebook faz predição de certos comportamentos. Notamos também efeito do Big Data quando nos são oferecidos serviços pelos quais estávamos pensando em adquirir, ou quando, nas redes sociais, surgem sugestões de amizades ou produtos de pessoas que acabamos de conhecer. Há um cruzamento de dados a partir daquilo que pesquisamos com a localização e o aparelho utilizado, por exemplo, e assim, alguma coisa é sugerida, pela qual podemos nos interessar.

Por um lado, empresas podem usar os dados de uma maneira positiva, para melhorar serviços ou garantir a satisfação dos clientes; entretanto não é apenas isso que acontece. Dados se tornaram importantes bens econômicos que podem ser usados como moeda de troca pelo uso de plataformas, sites e/ou serviços gratuitos, de acordo com Silveiro, Avelino e Souza (p. 220)[18]. Como empresas que oferecem serviços gratuitos, muitas vezes, elas não obtém receita por meios tradicionais (como pagamento por serviços). Sua receita se dá através da venda de dados ou a publicidade segmentada.

A revista The Economist, na publicação de 2017, compara as grandes empresas de tecnologia às petrolíferas e mostra a valiosidade dos dados coletados online, consideradas como o novo petróleo. Hoje vemos a relação conflituosa pelo controle e extração de dados quando comparamos um evento histórico como o de 2003 em que tropas americanas e aliadas invadiram o Iraque com o pretexto de proteção a possíveis ameaças ao Kuwait, mas o real interesse estava no petróleo, recurso natural muito valioso. Esse evento pode ser comparado (não na mesma proporção de guerra), no contexto do capitalismo de vigilância, com o caso em que a gigante da tecnologia Apple acusou, em 2020, o império das redes sociais, Facebook, de tentar coletar o máximo de dados dos usuários do iPhone. A Apple se posiciona nesse mercado como uma defensora da privacidade, contudo, vale notar que se trata de uma disputa de interesses por modelos de negócios e por quem irá controlar essas informações (TecMundo, 2020). Logo, como no caso do petróleo e as lutas por sua detenção, vemos as tensões instauradas pelo controle dos dados pelas grandes empresas de tecnologia.

Quando nossos dados são coletados e processados por grandes empresas do ramo da tecnologia eles podem ter seu uso terceirizado, com intenção de manipulação ou direcionamento de comportamento individual e coletivo. O documentário Privacidade Hackeada[19], de 2019, apresenta esse problema ao retratar a coleta e a monetização dos dados pessoais de milhares de eleitores nas eleições estadunidenses, em 2016. Nesse contexto, o professor David Carroll fez uma requisição de dados que foram acessados de forma indevida pela extinta empresa Cambridge Analytica. A empresa realizou um quiz onde solicitava informações dos usuários e através disso usou uma brecha do Facebook para acessar os dados dos usuários da rede social e traçar o perfil comportamental dos mesmos. Isso foi revelado após processos judiciais contra a extinta empresa e o presidente da Facebook admitiu a falha no sistema, e mostrando ao mundo a vulnerabilidade na qual nossos dados se encontram. O documentário aponta como esses dados foram usados pra indução de comportamento em massa, e como interferiam em algo tão importante, como eleições, em vários países do mundo.

A partir disto, há uma exclamação presente nos produtos digitais oferecidos por essas empresas e em nossos pensamentos que é o free! Até que ponto os aplicativos vinculados à internet são verdadeiramente gratuitos? Cabe questionarmos também sobre produtos que são muito usados por jovens estudantes. Ao aceitarmos o uso gratuito sem entendermos os termos, não sabemos o que essas empresas fazem com nossas informações.

Censura e controle (remoção de conteúdos, contas)

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Censura é rejeição que gera remoção de informações retirando conteúdos de circulação. Tudo que seja contrário aos interesses de um Estado, organização ou indivíduo é suprimido com o intuito de impedir a criação de opiniões que sejam opostas às ideias de quem está no poder[20] . Segundo a Eletronic Frontier Foundiation (EFF), organização americana que luta pela liberdade expressão na internet, há diversos casos de censura na rede, como a de jornalistas que publicam escândalos envolvendo políticos, crimes de guerra ou pessoas que militam no movimento negro.

O artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, diz que "todo indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e ideias por qualquer meio de expressão”[21].

É crucial esclarecer a população sobre a censura na internet. Em se tratando das redes sociais, a prática da censura é ruim porque elimina perfis verdadeiros e conteúdos de usuários, muitas vezes de forma automática pelos sistemas algoritmos. Para ter censura na internet, há necessidade da vigilância. Assim, quem censura, pode ver e gravar o comportamento dos usuários que fazem uso dos serviços[20]. A internet é um espaço plural que permite a liberdade de expressão, mas que, por causa do domínio de grandes plataformas que ditam normas de publicação que não são transparentes, acontece a censura. Isso se dá quando o usuário não segue as regras das redes - regras que muitas vezes não são transparentes - ao publicar seu conteúdo. Assim, o conteúdo é removido da plataforma, mesmo que as exigências legais do país sejam maiores que as regras das redes sociais[22] .

A censura está presente no dia a dia na medida em que conteúdos são removidos das plataformas, ou não são exibidos em nossas timelines. Como exemplo citamos o caso da britânica Kaya Wright que, ao compartilhar uma imagem amamentando seu filho em um grupo fechado do Facebook, teve a foto removida. A empresa alegou que estava "revendo" a imagem por violações de nudez. A página é voltada para maternidade e amamentação e, somente depois de inúmeros protestos de outras mães, a rede social voltou atrás em sua decisão[23]. Outro caso de censura que podemos citar é a denuncia realizada pelo professor Sérgio Amadeu da Silveira, que possui o canal de podcasts Tecnopolítica. Ele revela a censura feita pelo Youtube ao canal que traz discussões sobre tecnologias, política e vigilância em massa. Segundo Silveira, os conteúdos dos podcasts foram considerados "sensíveis ou chocantes", mas o Youtube não informa qual ponto ou porque foi identificado dessa forma; o sistema bloqueia ou reduz as visualizações dos podcasts. Nos casos exemplificados os algoritmos retiram os conteúdos sem maiores explicações, impedindo a circulação de informações verdadeiras e úteis para sociedade. Por outro lado, temos canais de extrema direita e divulgadores de desinformação que cresceram consideravelmente no youtube, nas eleições de 2018. O impulsionamento do sistema algoritmo da plataforma foram determinantes para o crescimento desses canais, como revela a pesquisa realizada pelo Intercept e pelo Manual do Usuário[24].

Mais recentemente, assistimos o Twitter e o Facebook desativarem as contas do, até então, presidente dos Estados Unidos Donald Trump, com a alegação de incitação à violência pelo dirigente. Outro caso recente de censura das redes sociais ocorreu em fevereiro de 2021. Em um contexto de protestos de agricultores da Índia, 250 perfis de organizações camponesas tiveram suas contas removidas pelo Twitter [25]. Os parâmetros utilizados pelas empresas de tecnologia não são claros, mas é perceptível que a censura realizada pelos oligopólios de tecnologia não tem a intenção de resguardar a democracia ou combater o fascismo. Muitas dessas práticas de censura se dá contra aqueles que vão contra os interesses políticos e econômicos dessas empresas de tecnologia.

Portanto, acreditamos ser de suma importância que a população seja esclarecida sobre a censura praticada pelas grandes empresas de tecnologia. Com o olhar para a educação, achamos ser primordial que a população não aceite a censura. Censura lesa o aprendizado, restringe e controla o acesso à informação e fere a liberdade de expressão de várias pessoas que estão inseridas em um ensino devastado por um governo que visa bloquear ou até mesmo reduzir as informações necessárias para a formação crítica da população.

Concentração de poder em poucas empresas (GAFAM)

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Empresas que constituem um oligopólio tecnológico - a GAFAM (Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft) - vão muito além da ideia de corporações que simplesmente detêm grande fatia do mercado[26]. Elas “fagocitam” todas as possibilidades de inovação e criação por parte de outras empresas menores e/ou pessoas, restringindo a concorrência, copiando e inibindo o surgimento de novos produtos e serviços. Além disso, elas se beneficiam com a captura e armazenagem de dados de seus usuários. Apesar de parecer uma benfeitoria, muitas vezes, essas empresas oferecem serviços com a falsa ideia de serem gratuitos para nós, usuários. Na realidade essa é uma estratégia comercial utilizada por essas empresas para nos aprisionar aos seus hardwares, softwares e plataformas. Desta forma, quando aderimos a esses "ecossistemas" somos direcionados a acreditar que eles são únicos e insubstituíveis.

Observamos também como estas empresas, mesmo diante de um período de recessão econômica, lucram com a pandemia. Como aborda a reportagem realizada pelo site UOL (2020):

Amazon, Facebook e Apple anunciam números robustos no segundo trimestre, superando positivamente as estimativas do mercado em meio à pandemia de Covid-19. Amazon chegou a dobrar seu lucro líquido no período. Desafiando a crise generalizada provocada pela pandemia de coronavírus que tem pressionado milhares de empresas, gigantes da tecnologia exibiram ontem resultados trimestrais que superaram positivamente as expectativas de analistas.[27]

Os lucros impressionam e levantam a questão de um enriquecimento e fortalecimento dos oligopólios tecnológicos advindos da extração de dados dos usuários, tanto para uso comercial ou para aperfeiçoamento de seus sistemas.

Um dos setores que atualmente se tornou dependente das corporações de tecnologia da informação foi a educação. Para termos acesso ao ensino público, dentro do atual contexto pandêmico, passamos pelas "mãos" da GAFAM. É quase obrigatório a utilização de alguma plataforma disponibilizada por estas empresas, para que seja viabilizado o processo de ensino e aprendizagem. Cerca de 66% das instituições públicas de educação utiliza os serviços desses oligopólios[28].

A comodidade, a falta de recursos das instituições de ensino ou a simples "desculpa" da facilidade e gratuidade dos serviços oferecidos pela GAFAM torna a adesão a esses ecossistemas um processo quase que instantâneo, que contribui para limitar a possibilidade de avaliação e de uso de outras possibilidades tecnológicas. Até mesmo quando uma pessoa tenta se desprender dessas empresas para utilizar outras soluções, esbarra em barreiras criadas pela GAFAM, como o zero-rating, para que o usuário retorne aos seus serviços. Um bom exemplo que temos sobre essa questão, e que também ilustra o poder econômico dessas empresas, é o lançamento de serviços de internet pela Google. A internet, cada vez mais, torna-se uma necessidade/direito básico na vida do ser humano, até mesmo para exercer sua cidadania. Agora, com o serviços internet da Google há mais um mecanismo centralizado para conexão à rede mundial de computadores. Portanto, com a aprimoramento desse sistema, a Google poderá dominar o cenário da internet e passar a valer-se de suas estratégias para minar outras possibilidades, sob o risco de se consolidar como um meio privilegiado para acessar à internet.  

Não existem diagnósticos exatos no que diz respeito aos impactos dessas plataformas na educação, tornando ainda mais incerto esse caminho, onde ferramentas e programas podem ameaçar a independência pedagógica e os dados de alunos e professores. É indispensável que nós, alunos e professores, conheçamos saídas aos oligopólios tecnológicos, de forma que a educação seja verdadeiramente livre e para todos.

Há saídas? Algumas considerações

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Finalmente, todas essas informações nos permitem compreender a gravidade do problema e os desafios nas esferas tecnológica, política e econômica enfrentados pela educação pública. Os problemas discutidos aqui estão interligados: coleta e análise de dados, venda e compra de dados e big data, predição de comportamento e fake news, fidelização de usuários, zero rating, comprometimento da autonomia tecnológica, censura e, por fim, concentração de poder dos oligopólios de tecnologia. Existem caminhos para minimizar o capitalismo de vigilância na educação. Tais caminhos ou saídas perpassam pelas esferas política, econômica e educacional, enfim, por investimentos econômico e tecnológico na educação e pela formação dos educadores e educandos, bem como de toda a sociedade.

Um dos caminhos que apontamos é o investimento dos governos brasileiro - estaduais e federal - na criação e no aperfeiçoamento de infraestruturas tecnológicas e de softwares livres para as instituições públicas de ensino. Os softwares livres, são importantes alternativas aos softwares privados, pois concedem liberdade ao usuário e permitem acesso e alteração do seu código-fonte. Ressaltamos que software livre não é sinônimo de software gratuito. Para um software ser considerado livre, ele deve garantir quatro "liberdades" ao usuário: 1) a liberdade de executar o programa como desejar; 2) de estudar como o programa funciona; 3) de redistribuir cópias do mesmo; e 4) distribuir cópias de versões modificadas do programa[29]. A pesquisadora Karina Menezes[30] também defende que uma das soluções para alcançar a autonomia institucional é optar por software livre, que é uma escolha ética e portanto uma escolha política, pensando no desenvolvimento com o investimento econômico cultural para fomentar e manter um ecossistema sustentável e inovador de produção tecnológica com software livre “isso deveria ser foco de investimento do Estado fazendo parcerias públicas/privadas em várias áreas com o intuito de preservar nossa soberania tecnológica dos dados das instituições que é um direito fundamental que deveria ser resguardado e preservado pelo nosso governo”.

Nesse sentido, também apontamos como uma das saídas para essa problemática a migração de servidores que possuem o código-fonte fechado para possibilidades seguras - com o código aberto - que possuem garantia de proteção de dados. Algumas plataformas e softwares livres oferecem serviços gratuitos. Como exemplo, podemos citar os sistemas operacionais GNU/Linux, a plataforma Nextcloud e software LibreOffice. Dessa forma, as universidades e escolas podem adotar essas alternativas, para manter a privacidade e a segurança de dados dos alunos e funcionários.

Neste aspecto, é necessário deixarmos de ser uma colônia digital, muito bem colocado pelo professor Sérgio Amadeu da Silveira. Sem os devidos investimentos em tecnologias próprias, continuaremos perdendo autonomia - submissos às corporações estrangeiras de tecnologia da informação. A construção de uma soberania tecnológica se faz necessária para que possamos reduzir a exploração comercial dos nossos dados e ter maior independência. As próprias instituições de ensino deveriam gerenciar os dados de seus usuários, sem intermediações de empresas privadas. Em síntese, o desenvolvimento público-democrático de tecnologias de informação para a educação, a exemplo de softwares livres, seria a base para a independência das instituições de ensino, algo de extrema importância para se pensar e se implementar, o mais rápido possível.

Outra possibilidade para enfrentar o problema é a implantação de leis eficientes de proteção de dados pessoais para que as grandes empresas sejam responsabilizadas no caso de abusar de seu poder, poder esse advindo da posse de dados dos cidadãos. Em 2020, entrou em vigor no Brasil a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD)[4] - Lei 13.709/2018. A referida lei deve ser compreendida e cumprida pelos gestores da educação pública. No entanto, a regulamentação dos oligopólios de tecnologias é um desafio, pois são empresas que estão acima das legislações dos países que atuam.

Ações mais pontuais também devem ser realizadas por nós, professores. Devemos conscientizar nossos alunos de que proteção de dados não é apenas questão de privacidade, mas em muitos casos a proteção à vida. Como educadores, devemos ensinar: sobre prevenção à desinformação; práticas para proteção de dados; como funcionam os sistemas algoritmos de timeline; soluções livres e abertas; quais são os problemas que podem ocorrer com propagação de notícias falsas e sobre a importância da ética no ciberespaço. É essencial que, como educadores, saibamos os melhores caminhos para prevenir e combater tanto a predição de comportamento quanto a desinformação. O papel do professor é conscientizar os alunos sobre os riscos no uso das plataformas corporativas e denunciar todos os tipos de controle, monitoramento e vigilância exercidos por elas. Orientar, trazer informações sobre os recursos que existem, como exemplo, o Jitsi (videoconferência), o Etherpad (escrita colaborativa), entre outros. Devemos também ensinar como utilizar e fomentar a curiosidade sobre plataformas e soluções livres e abertas. A baixa divulgação de saídas livres e abertas, é um dos aspectos que contribui para que os usuários sejam reféns desses oligopólios tecnológicos. Percebemos ser necessária a discussão e aplicação do ensino do uso crítico e consciente das tecnologias. É preciso levar as pessoas a reflexão, antes de instalarem e recomendarem aplicativos e serviços na internet, incentivar o uso de softwares livres, para potencializar o desenvolvimento de novas possibilidades e almejar uma sociedade mais crítica e reflexiva sobre o uso das tecnologias de informação. Para além disso, é importante termos clareza que a saída não é individual, ela é coletiva. Por isso é essencial nos organizarmos para enfrentar esse problema.

Não podemos consentir que a educação seja fonte de negócios, renda e lucro para as grandes empresas tecnológicas internacionais. É necessário mobilização das instituições educacionais para pressionar governos a possibilitar o desenvolvimento das nossas próprias tecnologias, através de políticas e investimentos. A educação pública não pode se tornar um modelo de educação padronizado e privatizado.

Referências

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  1. 1,0 1,1 1,2 PARRA, Henrique et al. Infraestruturas, economia e política informacional: o caso do google suite for education. Mediações: Revista de Ciências Sociais, Londrina, v. 23, n. 1, p. 63-99, jan./abr. 2018. Disponível em: http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/mediacoes/article/view/32320. Acesso em: 15 dez. 2020.
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