Em uma das primeiras tentativas filosóficas de se pensar a questão, os gregos desenvolveram o conceito de tekhnè (uma espécie de arte ou ofício humano) um agir sobre o mundo que é diferente do modo pelo qual a natureza (phisis) faz as coisas existirem (LEMOS, 2004). A tekhnè é um ato tipicamente humano de se fazer nascer uma obra. Essa capacidade humana é chamada, também, de poièsis.

Os gregos também faziam uma distinção entre a épistemè, que era a contemplação filosófica do mundo, voltada para a relação entre o pensamento e a produção da verdade e a tekhnè, que como vimos, é um tipo de arte, um saber prático de trazer coisas ao mundo.

Mas, como observa Gilbert Simondon[1], quando tentamos separar cultura e técnica ou o humano e o não-humano (a "máquina" p. ex.), o que revelamos é um certo ressentimento ou, simplesmente, ignorância com relação a essa questão.

Não devemos tratar os objetos técnicos como se fossem uma espécie de "estrangeiro" que invade a nossa a vida ou como uma espécie de “escravo” dos humanos. Se as máquinas podem ser consideradas estrangeiras - por existirem fora de nós mesmos - devemos lembrar que, nelas, está sempre aprisionado algo de humano. As máquinas incorporam e exteriorizam de um modo complexo os valores e as relações sociais .

Para Simondon, nós somos uma espécie de maestro deste arranjo homem-máquina-homem. Somos os organizadores de uma sociedade de objetos e a tecnologia pode ser vista como essa sociedade de objetos técnicos .Nesse sentido, o uso da expressão "Impacto da tecnologia" mostra-se equivocada.

Para Kenakouche (1999), "...o que importa é desmistificar a falsa autonomia da técnica, rejeitar a noção de impacto tecnológico, reconhecer, sobretudo, a trama de relações - culturais, sociais, econômicas, políticas... - que envolve sua produção, difusão e uso.".

Nosso posicionamento com relação à técnica tem consequências muito concretas. Não é por outro motivo que alguns autores preferem usar a expressão "dispositivos sociotécnicos" ou "tecnopolíticas" para falar de seu desenvolvimento, do planejamento de sua adoção e dos usos/apropriações (muitas vezes imprevistos) que fazemos dela.


A informação

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Claude E. Shannon
 
Norbert Wiener

É impossível pensar a tecnologia no mundo contemporâneo sem entender os estudos de Claude E. Shannon sobre a teoria da informação, que é a base do pensamento computacional que conhecemos.

 
Teoria Matemática da Comunicação

Ao seu lado, encontramos Norbert Wiener, que desenvolveu a teoria cibernética, que cuida do estudo da comunicação entre seres humanos e máquinas. A Cibernética cresceu em meio às demandas militares impostas pela Segunda Guerra Mundial. No campo militar, a comunicação é um problema central. A sigla C3i é usada para explicar que nas operações militares três coisas estão em jogo de modo integrado: comando-controle-comunicação (+inteligência). Nesse período, a imagem do soldado "perfeito" ficou cada vez mais associada ao que seria chamado de ciborgue (LAFONTAINE, 2007)

Nesse período, destaca-se o fundador da computação moderna, Alan Turing, o matemático que ajudou a quebrar o código de uma máquina chamada “Enigma”, usada pelos alemães para criptografar suas mensagens.

 
Alan Turing

A sociedade cibernética vista por Norbert Wiener era um tipo de sociedade ideal, com uma nova visão antropológica do homem e que tinha na comunicação sem restrições um valor a ser defendido (BRETON, 1991).

Em 1946, foram organizadas diversas conferências interdisciplinares para discutir a importância dessas ideias. Elas ficaram conhecidas como as “Conferências Macy” (em homenagem à fundação Josiah Macy).

O homem, nesta sociedade, seria um ser reduzido a informação, um ser que não precisaria mais de um corpo e que não teria mais nenhuma de suas ações guardadas em segredo. A vida deixou de ser uma questão biológica para tornar-se algo sob domínio da ordem informacional e a vida passou a ser vista como um “código”. Essa ideia influencia muito a biologia molecular e a descoberta do DNA.

As máquinas de comunicação com as quais nos integramos seriam capazes de fazer de nós um homo comunicans, baseado na constante troca de informação.

Kubernetes, é a palavra grega utilizada por Wiener (que significa piloto ou comando). Para ele, o mundo vivia sobre o risco constante de guerras e toda ordem de desequilíbrios, o que poderia leva-lo a um estado de entropia. A desordem ou o caos, que se associam (muitas vezes, indevidamente) à ideia de entropia, seriam enfrentados com a livre circulação e controle de informações. Seria preciso evitar o "ruído" a qualquer custo.

Claude Shanon & Warren Weaver desenvolveram uma teoria da informação (Teoria Matemática da Comunicação) que também pretendia enfrentar o problema do ruído. Seu modelo era baseado em um sistema linear que passava do emissor ao receptor por meio de um canal, utilizando um código cifrado, em uma ponta, e decifrado na outra.

Norbet Wiener, por sua vez, criou um modelo diferente (não-linear). Ele é funciona por meio de feedback ou retroalimentação. Os seres humanos (e as máquinas que copiam o modelo humano) agem, avaliam o resultado de sua ação e costumam corrigi-la constantemente.

A própria existência humana.dependeria dessa condição informacional, É por isso que autores como Friedrich Kittler destacam a materialidade dos meios como os modos de registro, processamento, distribuição e armazenamento dessa humanidade.

Galloway & Thacker (2007) mostram que a pergunta "Quem sou eu?" deveria ser formulada de outro modo:

De que modo um 'Eu' tornou-se necessário a um certos tipos de agenciamentos, dispositivos e materialidades da comunicação?

Um passo para o pós-humano

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Donna Haraway

De um modo mais radical, poderíamos destacar:

Assim, o "nós humanos" se revela uma condição instável e sempre negociada.  (…) Proponho, portanto, que o primeiro passo para uma Sociologia da Tecnologia consistente é a constatação de que a condição de humanidade não é um dado universal e biológico/natural mas sim um campo histórico e contingente de disputas e relações de poder. Disso decorre que o que entendemos por natureza humana não é uma essência imutável e universal mas sim uma tendência, uma virtualidade sempre em vias de atualizar-se aqui ou ali. (Ferreira, 2004 p.3-4)

Será, então, que o Humanismo vai deixar de ser uma referência para nós?

Podemos ser reduzidos a dados, padrões matemáticos e controles algorítmicos?

Estamos nos tornando seres híbridos, meio homem, meio máquina?

Os ciborgues já estão entre nós?

A palavra ciborgue (cyborg: cybernetic organism) aparece nos anos 1960, nos projetos espaciais da NASA, e foram desenvolvidos por Manfred Clynes e Nathan Kline. Como estes engenheiros estavam preocupados com a sobrevivência de seres humanos em ambientes espaciais hostis, eles precisavam automatizar um conjunto de tarefas de sobrevivência para que os exploradores espaciais pudessem estar livres para explorar, criar, pensar ou tomar decisões específicas.

Uma autora como Donna Haraway chega a nos advertir que já não se trata mais de sabermos se somos ciborgues ou não, a questão é saber que tipo de ciborgues pretendemos ser. Essa integração fundamental entre o humano e o não-humano nos obriga, cada vez mais, a refletir sobre nossa própria humanidade e a emergência de um pós-humanismo.[2]

Como dizia Jaron Lanier (2010), se quisermos saber se uma máquina está próxima ou não daquilo que define um ser humano, é preciso que tenhamos uma ideia aproximada do que é um ser humano.

Tecnologia/Sociedade: o caso do PC

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O computador é um objeto técnico? social? cultural? político?

Vamos chamar atenção para o fato de que não havia nada nos computadores dos anos 1940 que pudesse associá-los a máquinas de representação, expressão cultural ou comunicação, Foi o conceito de PC (Personal Computer) que mudou totalmente essa visão. Foram alguns engenheiros como Douglas Engelbart, Ivan Sutherland e Ted Nelson, Richard Stallmann, entre outros, que passaram criar os fundamentos dessa mudança (MANOVICH. 2013).

A visão contracultural de pessoas que viviam na Califórnia, nos anos 1960-1970 (retratadas por Tom Wolfe no seu livro The Electric Kool-Aid Acid Test), como Stewart Brand, também foram fundamentais. Esse biólogo e ex-paraquedista do exército estadunidense, muito envolvido com as ideias de Engelbart, foi o criador da revista Whole Earth Catalogue e co-fundador da primeira comunidade online nos anos 1980 (a WELL “Whole Earth ‘Lectronic Link).

A mudança conceitual a respeito do computador pode ser encontrada, também, nas pesquisas de Alan Kay e seu grupo no projeto PARC da Xerox. Foi nesse laboratório que um dos primeiros modelos de interface para PCs surgiu: a interface gráfica do usuário (GUI – graphic user interface). Foi a partir dela, que os computadores passaram a se tornar acessíveis a pessoas sem nenhum conhecimento de computação.

Em meio a essas questões, será que poderíamos falar de uma Cultural Engineering ou Cultural Techniques para representar a existência humana?


Referências

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Ler:

KIM, Joon Ho. Cibernética, ciborgues e ciberespaço: notas sobre as origens da cibernética e sua reinvenção cultural. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 10, n. 21, p. 199-219, jan./jun. 2004

KENAKOUCHE, Tamara. Tecnologia é sociedade: contra a noção de impacto tecnológico. Cadernos de Pesquisa do PPGSP, v. 1, n. 17, set. 1999.

Complemento:

GUNKEL, D. J. Beyond mediation: thinking the computer otherwise. Interactions, Bristol, v. l, n. 1, p. 53-70, 2009.

GIRARDI Jr, Liráucio. O estranho mundo da informação - e da materialidade - no campo da comunicação. Revista da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação | E-compós, Brasília, v.20, n.1, jan./abr. 2017

EVANGELISTA, Rafael. Singularidade: de humanos feitos simples máquinas em rede. ComCiência, 10/09/2011

MAZLISH, Bruce. The Fourth Discontinuity: The Co-Evolution of Humans and Machines. New Haven: Yale University Press, 1993.

RÜDIGER, Francisco. A tragédia da cultura na era da técnica: Georg Simmel. Intexto, Porto Alegre: UFRGS, v. 1, n. 5, p. 1-12, janeiro/junho 1999.

MARTINO, Luís Mauro Sá. Teoria das Mídias Digitais. Petrópolis: Vozes, 2014

SILVERSTONE, Roger. Domesticando a domesticação. Reflexões sobre a vida de um conceito. (Este texto de Roger Silverstone com o título original ‘Domesticating domestication. Reflections on the life of a concept’, foi retirado da obra editada por Thomas Berker et al. (2006). In Domestication of Media and Technology, UK: Open University Press.)

Especial Gilbert Simondon. Eco-Pós, v. 20, n. 1 (2017)


Outras leituras complementares:

Máquinas Sociais: o Filo Maquínico e a Sociologia da Tecnologia - Pedro Peixoto Ferreira - CTeMe – IFCH/Unicamp – FAPESP, 2004

Dossiê: How metaphors shape the digital society - Open Knowledge Brasil

Em nome do lucro, o YouTube abriu os portões do inferno da desinformação – GUILHERME FELITTI – Manual do Usuário, 31/7/19

The Soviet InterNyet - Benjamin Peters - AEON, 17/10/2016


  1. Ver Simpósio "Informação, tecnicidade, individuação: a urgência do pensamento de Gilbert Simondon"
  2. Ver: Slides