Sociologia e Comunicação Cásper/Linguagem e Sociedade/Modernidade II

O problema do nosso tempo é que o futuro não é o que costumava ser” (Paul Valéry)

̽Quem me dera, ao menos uma vez/ Explicar o que ninguém consegue entender:/Que o que aconteceu ainda está por vir/ E o futuro não é mais como era antigamente ... E é só você que tem/ a cura pro meu vício de insistir/ Nessa saudade que eu sinto/De tudo que eu ainda não vi (Índios – Legião Urbana)


Eu vejo o futuro repetir o passado. Eu vejo um museu de grandes novidades. O tempo não pára. ("O tempo não pára" - Cazuza)


Ulrick Beck
Ulrich Beck (1944-2015)

Para o sociólogo alemão, Ulrich Beck, o mundo moderno foi caracterizado por uma simbiose histórica entre capitalismo e democracia que se apresentou como um modelo civilizatório dominante. No entanto, ele tenta avaliar os riscos que a ampliação desse modelo civilizatório em escala global pode trazer sobre a exploração de recursos naturais, sobre as culturais locais e as formas sociais de existência dos demais povos.

Nossa modernidade produziu um modelo de sociedade na qual os riscos sociais, políticos, econômicos, culturais e individuais tendem a escapar do controle e da proteção oferecido, até um certo momento, pelas instituições modernas.

Em um primeiro momento, esse modelo de sociedade produziu efeitos que não eram vistos, imediatamente, como ameaças à sua própria existência (o desmatamento, a poluição etc.). Essas ameaças e riscos, algumas vezes vislumbrados, não chegavam a se tornar questões públicas e não apareciam no centro dos conflitos políticos.

Mas, há um segundo momento, quando os perigos desse modelo de sociedade industrial aparecem na agenda do debate público e dão início a uma série de conflitos não somente em termos políticos mas como uma série de decisões individuais que devemos tomar em nossa vida privada.

Essas preocupações assumem, então, a forma de uma teoria social e de um diagnóstico da cultura: a noção de “Sociedade de Risco”.

Esse termo passa a designar um estágio da modernidade em que essas ameaças tornam-se não apenas visíveis como são alvos de debate público. Além disso, os padrões de desenvolvimento que vigoraram até esse momento passam a ser questionados.

Precisamos definir, então, uma autolimitação a eles e reconfigurar todos os parâmetros até então conhecidos de responsabilidade, segurança, avaliação, controle de danos e distribuição das responsabilidades.

No entanto, uma questão torna-se fundamental: como avaliar as ameaças e os danos uma vez que eles, muitas vezes, escapam à nossa percepção, à nossa imaginação ou, até mesmo, à própria ciência.

Isso nos faz pensar que a própria noção de "ameaça" e "perigo" é uma construção histórica e social.

Essa construção só se torna possível a partir do momento que a sociedade e suas instituições tornam-se reflexivas, transformando-se em um “problema” para elas mesmas. Uma sociedade que precisa imaginar os riscos que gera, encontrar formas de dimensioná-los e avaliar os controles possíveis que serão exigidos para enfrentá-los. Inclusive por meio de Convenções e Tratados Internacionais ("cosmopolitização" dos problemas no nosso dia a dia).


Sociedade de Risco

Para Beck, a primeira modernidade e a modernidade da sociedade de risco estão se chocando sem que uma parte possa ser representada na outra. Isso se traduz em políticas sem direção, muitas vezes, caóticas, marcadas por jogos de poder (com interesses de curto prazo), em práticas e arenas institucionais desgastadas (crise das formas tradicionais de participação política). Por outro lado, essa condição abre espaço para novas formas de acordos e coalizões que ele chama de "sub-política".

Há um esvaziamento das formas tradicionais da representação política, enquanto há um renascimento do político sob novas formas.

Assim, entramos em uma sociedade onde tudo deve ser escrutinado, as polêmicas estão em todos os níveis, tudo deve ser inspecionado, analisado em detalhes, discutido e debatido incansavelmente para que, no final, nenhuma das partes participantes do processo considere-se satisfeita com o resultado. No pior dos casos, enfrenta-se uma paralisia geral.

É como se a sociedade de risco anunciasse a possibilidade de muitas modernidades nas quais seriam possíveis novas articulações entre a verdade e beleza, entre a tecnologia e arte, entre os negócios e a política etc., mas que,  no fundo, gera uma profunda indecisão sobre a direção coletiva que deveríamos tomar.

Se tudo é política, como estamos acostumados a dizer, é preciso lembrar, que na modernização reflexiva, tudo é cultura e economia também.


Achille Mbembe
Achille Mbembe (1957- )

Achille Mbembe, a exemplo de Frantz Fanon [1], procura trazer para dentro do movimento que entendemos por modernidade, as visões, ações e experimentos que forjaram o racismo e a visão colonizadora que a sustentaram[2]. Se nos chocamos com a existência de um sistema de deportação de judeus, ciganos, homossexuais, comunistas, entre outros para os campos de concentração e de extermínio na II Gerra Mundial, não podemos esquecer que o modelo colonizador - assentado no trabalho escravo negro - formou as primeiras bases da lógica da deportação, concentração forçada e extermínio tanto físico quanto simbólico de certos agrupamentos humanos.

Enfrentar as contradições da formação do mundo moderno, significa enfrentar a lógica que esse mesmo mundo sempre insistiu em tornar invisível como condição de sua existência: o racismo, a opressão contra aqueles que, em determinado momento de sua existência social, passaram a ser classificados como "negros" frente ao colonizador "branco".

Mbembe observa que o maior experimento humano que antecedeu os campos de concentração foi a organização econômica, social, política e cultural que sustentou a plantation que predominou nas Américas. Nela, o "negro" é expropriado de seu lar, dos direitos sobre o seu corpo, sobre sua vontade e sobre sua vida, e isto o transforma em uma espécie de 'morto-vivo" social. Uma "coisa" que pode ser explorada sem limite. Um ser que precisa estar submetido constantemente à alienação de si mesmo.

Modernidade: Capitalismo, Colonialismo e Racismo


Capitalismo, colonialismo e racismo escondem-se atrás da "missão civilizatória" ocidental moderna na qual o colonizador em "nome da paz" - que é a garantia de seus interesses - desencadeia sobre o colonizado uma guerra sem fim.

Esse modelo de modernidade introduz no mundo colonizado a Necropolítica, o poder de administração da exploração do corpo negro (até a morte) ou o seu puro e simples exterminío.

Se, em um primeiro momento, esse outro era o "negro", a ação da necropolítica expande-se sobre os colonizados de um modo geral, sobre os desempregados, os imigrantes, os favelados, aqueles para os quais quase ninguém mais liga, diminuindo muito o custo moral do seu "descarte". É sobre essa condição que a sobrevivência desse outro torna-se um esforço cotidiano.

A escravidão negra não era um tipo de escravidão qualquer, como sempre houve em outros tempos na Europa, na Ásia ou no Oriente Médio. Ela foi um modo de produção econômico, um empreendimento lucrativo que transferiu algo em torno de 7 milhões de pessoas da África para o outro lado do Atlântico, para as Antilhas, o Caribe, Brasil e EUA. Esse empreendedorismo escravocrata era extremamente lucrativo para os nobres ou burgueses que quisessem investir seus recursos. Mas, junto com o comércio desses homens-mercadoria/homens-moeda estão línguas, culturas, religões, tecnologias transferidas de um continente a outro e que precisaram se reinventar, que se misturaram, gerando um processo nunca visto nessas proporções. Ele é um desafio à "missão civilizadora" e higienizadora do colonizador.

Hoje, o neoliberalismo produz novas ordens de colonizados ou de "negros". Esse modelo passa a jogar diversos indivíduos nesse "devir-negro"[3], por meio do qual passam de trabalhadores a "nõmades do trabalho" ou, até mesmo, à condição de ameaçadoras figuras descartáveis tanto física quanto simbólicamente. Os 'mortos-vivos" de uma sociedade que não precisa mais deles a não ser na condição de exploração incansável de suas energias.

Referências

  1. FANON, Frantz. Pele negra máscaras brancas SalvadorːUFBA, 2008
  2. MBEMBE, Achille. A ideia de um mundo sem fronteiras IMSːSerrote,34,2020
  3. O devir-negro do mundo - Peter Pál Pelbartdisse, Dossiê: Achille Mbembe- Revista Cult, 5 de novembro de 2018


ATIVIDADE I


Referências

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed. , 2001

BECK, Ulrich . A reinvenção da política: rumo a uma teoria da modernização reflexiva” In: GIDDENS, Anthony, BECK, Ulrick, LASH, Scott. Modernização reflexiva. São Paulo: Unesp, 1997

BORTOLUCCI, José H. Para além das Múltiplas Modernidades: Eurocentrismo, Modernidade e as Sociedades Periféricas. PLURAL, Revista do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da USP, São Paulo, v. 16, n. 1, pp. 53-80, 2009

CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre o colonialismo. Lisboa: Sá da Costa, 1978

DIAS, Bruno Nascimento S. América Latina por uma Epistemologia Decolonial da Comunicação. Cadernos Prolam/USP-Brazilian Journal of Latin American Studies, v. 19, n. 38, p. 46-74, jul./dez. 2020

GIDDENS, Anthony. Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002

GROSFOGUEL, Ramón. Para descolonizar os estudos de economia política e os estudos pós-coloniais: Transmodernidade, pensamento de fronteira e colonialidade global. Revista Crítica de Ciências Sociais, 80 | 2008 (Epistemologias do Sul)

HAN, Byung-chul. Sociedade do Cansaço. Petrópolis/RJː Vozes, 2015

MBEMBE, Achille. Necropolítica. 3. ed. São Paulo: n-1 edições, 2018

QUINTEIRO, Pablo, FIGUEIRA, Patricia, ELIZALDE, Paz Concha. Uma breve história dos estudos decoloniais. São Paulo: MASP, 2019